segunda-feira, 25 de outubro de 2021

                        ESTADO E PARTIDO NO MARXISMO-LENINISMO


                                                                                                                                      Noé Martins de Sousa 

                                                                            Professor de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará, Ex-Coordenador dos Cursos de Filosofia da UECE. E atual Chefe do Departamento de Filosofia (1990-1994)


(Em breve, reprodução de um artigo de minha autoria, já publicado pela Editora da UECE - EdUECE)

quinta-feira, 7 de junho de 2018

A Filosofia de BERKELEY



A FILOSOFIA DE BERKELEY
A FILOSOFIA DE BERKELEY









NOÉ MARTINS DE SOUSA
Professor de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará
UECE - de 12/08/1981 a 26/05/2012














Fortaleza – 11/04/2018










A FILOSOFIA DE BERKELEY


George Berkeley nasceu perto Thomastown, Irlanda, em 1685 e faleceu em Oxford no ano de 1753. Foi bispo da Igreja Anglicana e viajou pela Inglaterra, França e Itália. Em 1721, mudou-se para a América do Norte onde pretendia fundar uma Seminário, mas fracassou por falta de recursos. No entanto, a cidade de Berkeley, na Califórnia, às margens da baía de San Francisco, recebeu este nome em sua homenagem.

            Sua filosofia combate radicalmente o materialismo e acaba por cair no idealismo objetivo, reduzindo o mundo exterior a puras ideias eternas que se originam da inteligência de Deus.

            Principais obras: Treatise concerning the Principles of Human Knowledge (“Tratado sobre os princípios do conhecimento humano” – 1710. Esta obra ficou inacabada); Dialogues betwen Hylas and Philonous in opposition to Sceptics and Arheists (“Diálogos entre Hylas e Filonus em oposição aos céticos e ateístas” - 1712), sendo, evidentemente, pelos nomes, Hylas o defensor da matéria e Filonus o defensor do espírito”. E outras obras.


QUALIDADES SECUNDÁRIAS E QUALIDADES PRIMÁRIAS


George Berkeley nega a existência da matéria a fim de mostrar a necessidade da existência de Deus. Sua conclusão final é de que só existem Deus e espíritos. Além disso, existem as ideias na mente de Deus, de onde se projetam em direção à mente dos homens. Ao invés de cair, coerentemente, no idealismo subjetivo (e, ainda mais coerentemente, no solipsismo), Berkeley acaba desembocando no idealismo objetivo e, portanto, numa espécie de platonismo.

            Começa ele estudando as qualidades dos objetos, especialmente no início do “Tratado sobre os Princípios do Conhecimento Humano” e no primeiro dos “Três diálogos entre Hylas e Filonous”.

            As qualidades secundárias (dos “objetos”) são as ideias sensíveis, como a cor, o cheiro (odor), o calor etc. (São aquelas que correspondem diretamente aos nossos cinco sentidos: visão, olfação etc.). Elas não correspondem a nenhum arquétipo ou modelo externo, existente “fora do espírito”. Já as qualidades primárias deveriam – pelo menos segundo alguns sábios – corresponder a modelos externos e serem objetivas. Essas qualidades, juntas, seriam, conforme a tradição, sustentadas por objetos externos, que são os suportes desses modos ou acidentes: “está assente que as qualidades ou modos das coisas nunca existem realmente cada uma por si em separado, mas em conjunto, várias no mesmo objeto” (Tratado, 1980, 7, p. 6).

            Mas Berkeley afiança que as qualidades primárias são formadas a partir das qualidades secundárias e, portanto, são subjetivas também, não havendo razão para qualquer diferença entre umas e outras:

“houve quem fizesse distinção entre qualidades primárias e secundárias, contando nas primeiras a extensão, forma, movimento, repouso, solidez ou impenetrabilidades e o número, nas segundas, as qualidades sensíveis, como cor, som, sabor, etc. Destas concordam não terem semelhança com algo existente fora do espírito, ou impercebido, mas pretendem que as qualidades primárias sejam imagens de coisas existentes fora do espírito em uma substância e que dão o nome de matéria. Por matéria há de entender-se uma substância inerte e não sensível em que subsistem atualmente extensão, figura e movimento. Mas, como vimos, é evidente que a extensão, figura e movimento são apenas ideias existentes no espírito, e a ideia só pode assemelhar-se a outra ideia; portanto, nem elas nem os seus arquétipos podem existir em uma substância incapaz de perceber. De onde a verdadeira noção da chamada matéria ou substância corpórea envolver contradição” (Tratado... 1980, 9, pp. 14-15). (Cf. Tratado, 1980, 10, p. 15). [Cf. nota 1. Ver todas essas notas, em negrito, no final deste texto. Cf. significa “confira” ou “confronte”, “compare”.].

            Por isso não deve existir distinção entre qualidades primárias e secundárias; ambas são sensíveis e particulares, não havendo em consequência ideias gerais abstratas. Isto é a aceitação do Nominalismo. Conforme o Nominalismo, uma ideia geral é apenas um nome que se aplica a uma coleção de ideias particulares da mesma espécie ou semelhança:

“Observando como as ideias vem a ser gerais mais facilmente o entenderemos das palavras. Note-se que eu não nego em absoluto a existência de ideias gerais mas apenas a de ideias gerais abstratas [negrito nosso]; nos passos citados, quando se fala de ideias gerais, supõe-se sempre formadas por abstração (...). Ora, se quisermos atribuir sentido às nossas palavras e falar somente do que podemos conceber, concordaremos – creio eu – que uma ideia particular, quando considerada em si mesma, se torna geral quando representa todas as ideias particulares da mesma espécie. Suponhamos para exemplificar, um geômetra que ensina a dividir uma linha em duas partes iguais. Traça, por exemplo, uma linha preta de uma polegada de comprimento; é uma linha particular; no entanto, pelo significado geral, representa todas as linhas possíveis; de modo que o demonstrado quanto a ela fica demonstrado para todas as linhas ou, por outras palavras, para a linha em geral. E assim como a linha particular fica geral por um símbolo, o nome linha, que em absoluto é particular, como símbolo fica sendo geral. E, como para o caso particular, a generalidade não provém de ser um sinal de uma linha geral abstrata, mas de todas as linhas particulares possíveis, também no segundo deve pensar-se que a generalidade provém da mesma causa, isto é, das várias linhas particulares indiferentemente denotadas” ( Tratado... 1980, p. 8, op. cit.) [Cf. nota 2].

            Por outro lado, se toda ideia sensível só existe no sujeito, como admitir a realidade de algo “fora de nós” (ou “fora de mim”) que provoque ou cause a sensação? A percepção sensível – como mais tarde o reafirmaria Schopenhauer – é subjetiva. Tal percepção:

“permanece como um mero processo dentro de nós, inteiramente assentado em solo subjetivo e nada inteiramente diferente dela, independente dela, pode ser introduzido como uma coisa-em-si”[1].

Deste modo, fica problemática a questão de saber se existe ou não algo fora de nós (fora da nossa mente) que corresponda às nossas ideias: “da aparência dos objetos sensíveis, ou da maneira como eles percepcionam, não há o direito de tirar a ilação de que eles tem existência sem ser na mente” (Três diálogos... 1, p. 71, 1980)[2] [Cf. nota 3].

            Somente se a mente pudesse perceber as duas coisas, a “coisa-em-si” e a “coisa-em-nós” (= sensível), para compará-las e distingui-las, é que se poderia dizer que para cada tipo de ideia [Cf. nota 4] residente no espírito, fora de nós, haveria um modelo correspondente, um paradigma “fora de nós”, no chamado “mundo exterior”.  Como tal não ocorre, não existe distinção entre percepção e coisa percebida, objeto e consciência do objeto. O que existe é uma identidade entre as ideias de sensação (imediatas) e ideias de reflexão (mediatas) e, portanto, redução das supostas ideias abstratas a ideias sensíveis. Ou melhor, as ideias universais abstratas não existem [Cf. nota 5].

            Em conclusão, não há distinção entre qualidades primárias e secundárias, as primárias são redutíveis a estas últimas, pertencendo ambas, portanto, à subjetividade pessoal (ou coletiva, a intersubjetividade, no caso de haver outra(s) mente(s) além da minha). Tais qualidades não correspondem a qualquer modelo ou arquétipo externo. Tudo que existe, existe na mente, inclusive o espaço e o tempo. “O tempo – diz Émile Bréhier, expondo Berkeley – é uma sensação e reside unicamente no espírito. O mesmo ocorre com o espaço” (História da Filosofia, II, fascículo 2, p. 36, São Paulo, Editora Mestre Jou, 1978). Isto chama-se Idealismo, que é contrário ao Materialismo, pois esta última filosofia aceita a existência efetiva de objetos subsistindo “fora” da nossa mente. É o que diz Lênin:

¹ Crítica da Filosofia Kantiana, p. 102, in “Os Pensadores”, São Paulo, Abril Cultural, 1980. (Esse texto citado pertence à obra de Arthur Schopenhauer, “O mundo como vontade e representação” – Die Welt als Wille und Vorsteilung, capítulo intitulado Kritik der kantischen Philosophie, pp. 455-580, Atlas Verlag Köln, s/d. Um exemplar deste livro, no original alemão, encontra-se na biblioteca da Casa de Cultura Germânica da Universidade Federal do Ceará – UFC -  onde o consultei no final do século passado.).
² Cf. Três diálogos... Primeiro diál., p. 72, 1980, in nota.

“as duas linhas fundamentais das concepções filosóficas ficam aqui consignadas com franqueza, a clareza e a precisão que distinguem os filósofos clássicos dos inventores dos ‘novos’ sistemas em nosso tempo. O materialismo: reconhecimento dos ‘objetos em si’ ou fora da mente; as ideias e as sensações são cópias ou reflexos destes objetos. [E] A doutrina oposta (idealismo): os objetos não existem ‘fora da mente’; os objetos são ‘combinações de sensações’ (Materialismo y empiriocriticismo”, p. 17, vol. 14 das “Obras completas, 40 vols., Madrid, Akal Editor, 1974-1977-19780).

            E mais na frente, Lênin continua: “O sofisma da filosofia idealista consiste em considerar a sensação, não um vínculo da consciência com o mundo exterior, mas como um tabique, um muro que separa a consciência do mundo exterior; não como uma imagem de um fenômeno exterior correspondente à sensação, mas como ‘o único existente’” (idem, pp. 42-43).


A NEGAÇÃO DA MATÉRIA


Como vimos, diante do exposto, a ideia de substância (substrato) material, algo que sustenta as qualidades sensíveis, ou seja, nossas representações ou ideias, fica problemática. Berkeley nega sua realidade, pois para ele toda existência, todo ente, consiste em perceber e ser percebido.

            Locke dizia: percebemos imediatamente somente nossas ideias. Berkeley, dessa afirmação, deduz: se percebemos imediatamente apenas nossas ideias, então somente elas existem. A existência do espírito consiste em perceber as coisas (= ideias) e a existência das coisas (= ideias) consiste em serem percebidas, o seu ser é a sua percepção (“o seu esse est percipi” – Tratado... 3, p. 13, 1980) [Cf. nota 6] Mais claramente escreve Berkeley no terceiro diálogo entre Hilas e Filonous:

“ que não há substância, a não ser o espírito, na qual as ideias passam a ter existência – isso é para mim uma coisa imediatamente percepcionada. É como um modo ou propriedade, pois manifesto que somente o espírito pode ser o substractum de tais qualidades, substractum esse no qual existem, não como um modo ou propriedade, mas como uma coisa percepcionada naquilo que a percepciona. Nego que exista, por conseguinte, um substractum impensante dos objetos sensíveis e que haja, portanto, nessa mesma acepção, substância material” (Três diálogos ..., p. 102, 1980). [Cf. nota 7]

Mas se a realidade das coisas consiste em serem percebidas, como explicar, por exemplo, que um homem, ao sair para a rua, tenha certeza de que sua casa continuará a ter existência para que o motive a regressar ao mesmo lugar? Poder-se-á apelar para o vizinho a fim de que aceite vigiar a casa na ausência de seu dono, para ela não desaparecer. E se não houver vizinho por perto, que poderá ocorrer com a casa em questão?

            Quer dizer, segundo essa filosofia, meus móveis e minha sala só existem quando eu os estou percebendo. Se saio da sala e vou para a cozinha tomar café, a sala e seus móveis certamente desaparecerão, o que me acarretará danosos prejuízos. Mas Berkeley resolve essa dificuldade apelando para Deus.


DEUS E A POSSIBILIDADE DE REGULARIDADE DOS ACONTECIMENTOS


Por outro lado, nem sempre os homens ficam vigiando suas casas, suas salas, seus móveis e suas propriedades. Todas as coisas, na minha ausência, não existiriam. Mas Deus, com sua onisciência e onipresença, está sempre percebendo as ideias (as coisas), pois precisamente é o criador delas e elas residem sempre em sua mente. Fica assim resolvida a questão da persistência ou permanência das coisas:

“Mas embora muitas coisas nos convençam da sua produção por agentes humanos, ninguém ignora que as chamadas obras da natureza, isto é, a maior parte das nossas sensações e ideias, não são produzidas pela vontade humana nem dependentes dela. Há, pois, algum outro Espírito que as causa, visto não poderem subsistir por si (v. § 29). Mas, consideradas atentamente a ordem, a regularidade, a concatenação das coisas naturais, a surpreendente magnificência, beleza e perfeição das maiores partes da Criação, o requintado traço das menores, a exata harmonia e correspondência do todo e principalmente as nunca bastante admiradas leis do prazer e dor, os apetites e paixões dos animais; considerando tudo isto e meditando no sentido e valor dos atributos Único, Eterno, Infinitamente Sábio, Bom e Perfeito, claramente percebemos que pertencem àquele Espírito ‘que tudo realiza em tudo’ e ‘por quem tudo existe’” ( Tratado, 146, p. 42, 1980) [Cf. nota 8].

Entretanto, o problema não é somente a existência, mas também o da coerência e regularidade dos acontecimentos. Pela filosofia materialista, pressupõe-se a regularidade e coerência das ideias pela correspondência biunívoca entre elas e os objetos, já que os objetos são tidos e aceitos como existentes por si mesmos e que possuem regularidade e coerência por sua própria natureza. Os objetos consistem e persistem como autônomos em sua própria existência. Mas se eu nego a realidade externa desses objetos, o substrato material – o que então ficaria por trás das ideias para que elas tenham consistência e regularidade? Poderia acontecer que o mundo fosse um “caos”: ora eu perceberia um cavalo com quatro patas, ora com cinco, ora com asas, ora com chifres etc. Quem garantiria, portanto, as leis da natureza, a ciência, se o princípio da causalidade, por exemplo – como o próprio Berkeley admite (ver Tratado... p. 19, op. cit., 1980) [cf. nota 9] – não serve para garantir as referidas leis da natureza, isto é, as leis de relação entre as ideias? Mais uma vez, Berkeley tem que recorrer a Deus para resolver essas dificuldades:

“embora Ele [Deus] se esconda aos olhos dos sensuais e preguiçosos que não querem pensar nada é mais legível para um espírito imparcial e atento do que a presença íntima de um Espírito onisciente que modela, regula e sustenta o sistema dos seres” (idem, 151, p. 43).

            Deus não precisaria criar a matéria como algo intermediário entre Ele e os homens, certamente por razões de economia, de racionalidade. Mais prático seria Deus colocar as ideias em nós, diretamente (cf. Tratado, 150-151, p. 43, 1980).

            Se a mente humana é um mero receptor dos sentires, dos signos postos em nós por Deus, se somos “somente um sistema de ideias flutuantes” (como objeta Hilas contra Filonous, nos Diálogos...), então não existe um sujeito epistêmico e não passamos, nós, seres humanos, de simples receptores (passivos), como um aparelho de televisão. Essa filosofia acarreta uma série de dificuldades, das quais mostraremos algumas a seguir.

            Berkeley faz distinção entre as ideias criadas por Deus (as ideias sensíveis) e as ideias criadas pelo homem, que são as quimeras ou ficções. As primeiras estão em nós independentemente de nossa vontade e são vivas e fortes, distintas, fixas e regulares. Tais “ideias”, relacionadas entre si, compõem as leis da Natureza e, como se disse, não dependem da vontade humana. Por outro lado, as quimeras da imaginação são confusas, fracas e irregulares e só por isso podemos distinguir [debilmente] a realidade da ficção. Ora, para sermos rigorosos, não saberíamos em verdade distinguir entre o real e sua rememoração ou entre o real e o imaginário; apenas saberíamos – como o diz Condillac – que existem “diferentes estados da alma”. Acontecem diferentes graus de “realidades” ou vivacidades e regularidades das coisas e, como consequência, ficaria difícil conhecer suficientemente essa graduação para não confundir exatamente onde termina a verdadeira realidade e começa a ficção, a imaginação, a recordação ou o sonho. Seria mais coerente dizer que possuímos diferentes estados ou modificações da alma: alguns estados fortes e distintos (distintos = diferenciados entre si com nitidez), outros mais tênues, opacos, fracos, outros mais confusos, uns mais regulares e outros menos regulares – porém tudo isso com imensa dificuldade de saber exatamente o que é realidade ou ficção.

            Outra dificuldade seria distinguir o pensamento de Berkeley do ocasionalismo de Malebranche. Em verdade, a filosofia de um não se distingue da do outro. Quando se refere ao tema das relações entre Deus e o homem. Por outro lado, como negar que o pensamento de Berkeley não passa de uma nova versão ou variedade de platonismo? Se em Platão existe um mundo das Ideias perfeitas, estática e a priori, residentes no mundo transcendente, para Berkeley essas ideias ocorrem na “mente” de Deus. Mas se é assim, cada ideia é um ente metafísico singular – apenas transmitida como se fosse um sinal (ou símbolo) dirigido para o entendimento humano – o que implicaria realmente que não existem ideias gerais abstratas, mas apenas ideias singulares, o que justificaria plenamente o nominalismo de Berkeley.

            Ademais, todas as ideias (originais) estão na mente de Deus, então a ideia de homem também está na mente de Deus; e, se é assim, então por que não dizer claramente que os homens não passam de ideias na mente de Deus? Por que não dizer que o mundo inteiro não é mais do que um sonho da Divindade – numa palavra, por que não admitir explicitamente o Panteísmo?

            Um outro ponto confuso é que se as ideias postas na mente dos homens são cópias ou signos das Ideias (originais) residentes na mente de Deus – que são perfeitas, eternas e imutáveis – então o movimento dos corpos não ocorre. Quer dizer, nossas ideias (= coisas) são inativas e consequentemente as leis da Física, inexplicáveis. Isto é, não existiria a Ciência. E, de fato, Berkeley nega, por exemplo, o princípio de causalidade, espinha dorsal da Física, alegando que ele não vale para as ideias e que somente Deus é verdadeiramente uma causa das coisas. A ciência em Berkeley é a Providência de Deus.

            Uma última dificuldade diz respeito ao problema da necessidade (na Natureza) e da liberdade humana, e consequentemente, ao problema moral do bem e do mal, especialmente para Berkeley, que era bispo. Se Deus é o responsável pela permanência e regularidade da realidade, isto é, responsável pelas leis da Natureza, pela criação e manutenção, funcionamento e destino do mundo, como então não cair na doutrina do predestinismo, do fatalismo – já que Deus é responsável pela “estabilidade, ordem e coerência (...) que formam cadeias ou série de admirável conexão”? (Tratado... 30, p. 18, op. cit., 1980). Então, Deus, como objeta Hilas no Terceiro Diálogo, é “ao mesmo tempo o autor do assassínio, do sacrilégio, adultério, e dos demais pecados igualmente atrozes” (op. cit., p. 102, 1980).

            O homem, numa palavra, não seria livre para escolher entre o bem e o mal. Para resolver esse problema, Berkeley não teve outra saída se não negar a existência do mal, reduzindo-o a mero acidente particular que, no fundo, não é realmente um mal, posto que no cômputo geral contribui para o bem, em sua totalidade:

“Quanto à mistura de dor e inutilidade do mundo, segundo as leis da natureza e as ações dos espíritos finitos e imperfeitos, é no estado atual indispensavelmente necessário ao bem-estar. Mas a nossa visão é próxima demais. Por exemplo, a ideia de uma dor particular chamamo-lhe (sic!) mal. Entretanto, se ampliarmos a visão até abranger os vários fins, conexão e dependência das coisas, ocasiões e proporções em que nos afetam a dor e o nosso prazer, a natureza da liberdade humana e o nosso fim no mundo, teremos de reconhecer, nas coisas que em si mesmas parece o mal, a natureza do bem, quando consideradas no conjunto do sistema dos seres” (Tratado..., 163, p. 44, 1980. Negrito nosso).

            Exemplo: um curativo num paciente pode doer, mas isso não é um mal, pois visa sua cura e esta dor efêmera é apenas uma passagem de uma mudança de um estado para outro, para um estado superior, visando o prazer da saúde, que é um bem maior.

            Isto é, os males particulares, no fundo, contribuem para o bem em geral, de modo que tudo vai bem, como diria Leibniz, que sustentou que esse é o melhor dos mundos possíveis [ver A Filosofia de Leibniz, de minha autoria, no meu blog Noé Martins].

            Mesmo negando a existência do mal, quem adotar a filosofia de Berkeley – ou a de Leibniz, ou ainda a de Malebranche e outras similares – não poderá escapar do fatalismo ou da predestinação. O problema aqui não é só conciliar a liberdade com a necessidade, mas a liberdade humana com a presciência de Deus, isto é, a Onisciência e a Onipotência de Deus, que tudo cria e governa. Se o homem adota essa filosofia e cai no necessitarismo, como salvar seu livre arbítrio, a responsabilidade por seus atos – enfim, como salvar a Moral?

            Em filosofia, é comum perguntarmos mais do que somos capazes de responder.



EXPRESSÃO E PALAVRA EM LATIM


Esse est percipiser é ser percebido (quer dizer, “existir é ser percebido”). Quer dizer, o objeto só existe como forma de percepção.
Substractum – substrato; o que está por baixo; aquilo que sustenta os atributos. Assim como o tronco de uma árvore sustenta os galhos e folhas.


TEXTOS SELETOS DE BERKELEY


Esses textos são selecionados como uma maneira de fundamentar o nosso escrito acima, com as próprias palavras de Berkeley, a fim de demonstrar que nossa exposição de sua filosofia não é uma interpretação meramente cerebral, mas se baseia no que ele realmente escreveu.

NOTA – 1 – “Que alguém reflita e veja se pode abstrair e conceber a extensão e movimento de um corpo sem todas as outras qualidades sensíveis. Por mim, não consigo formar ideia de um corpo móvel e extenso sem dar-lhe alguma cor ou outra qualidade sensível das que se reconhece existirem só no espírito. Em resumo, extensão, figura, movimento são inconcebíveis separados das outras qualidades. Onde existem, portanto, as outras qualidades sensíveis, essas devem existir também, isto é, no espírito e em nenhuma outra parte” (Tratado--- 10, p. 15, 1980, op. cit.). Quer dizer, para Berkeley as qualidades secundárias são inseparáveis das qualidades primárias e, se umas são subjetivas, as outras também o são. Todas essas qualidades só existem no espírito (subjetivamente).

NOTA – 2 – “Ora, a fonte desta noção privilegiada [a de ideia abstrata] parece-me ser a linguagem. Certamente nada menos do que a razão poderia ter dado origem a uma opinião universalmente aceita. Vê-se isto, além de outras razões, na clara confissão dos mais competentes defensores das ideias abstratas que as reconhecem devido à necessidade de denominar; de onde a consequência clara: se não houvesse o discurso ou os sinais universais, não teria havido ideia de abstração. Vejamos como as palavras contribuem para este erro. Primeiro, pensa-se que cada nome tem ou deve ter um significado definido e preciso, que leva o homem a pensar que há certas ideias abstratas determinadas constitutivas da verdadeira e única significação de cada nome geral; e só por intermédio dessas abstratas pode um nome geral significar uma coisa particular. Pelo contrário, não há significação precisa e definida ligada ao nome geral, todos eles próprios para significar indiferentemente grande número de ideias particulares. Isto decorre evidentemente do que ficou dito e uma breve reflexão o põe a claro. Pode objetar-se que a cada nome definível está por isso mesmo restringido a certa significação. Por exemplo, o triângulo define-se ‘uma superfície limitada por três linhas retas’ e por este nome denota-se uma certa ideia e não outra. A isto respondo que na definição não se diz se a superfície é grande ou pequena, branca ou preta, se os lados são longos ou curtos, iguais ou desiguais, nem os ângulos segundo os quais se inclinam; em tudo pode haver grande variedade, e, portanto, nenhuma ideia determinada limita a significação da palavra triângulo. Uma coisa é manter constante a definição de um nome, outra é fazer que ele represente sempre a mesma ideia; uma é necessária, outra inútil e impraticável” (Tratado... 18, p. 10, 1980). “Filonous: Porém, é uma máxima universalmente recebida que tudo que existe é particular” (Primeiro Diálogo... p. 64, 1980).

NOTA - 3 – “Como saber que um sentir é uma imagem, que ele é representação de uma coisa incógnita, que nós não podemos sentir como tal? A frase de uma coisa imagem de uma outra ou representativa dessa outra somente assumirá significado efetivo se nos for possível a operação mental de nos apresentarmos a nós mesmos as duas coisas, a fim de as podermos comparar entre si. Ora, como nos apresentaremos essa matéria abstrata, para por aí compararmos com o nosso sentir? A operação mental é aí impossível; ora, a efetiva determinação de uma coisa é a operação mental que constitui a coisa. Chega-se por argumentação análoga à noção idealista do que seja verdade: a noção da verdade como coerência interna, e não como adequação da ideia à coisa” (Primeiro Diálogo... p. 72, op. cit., in nota, 1980).

NOTA – 4 – Berkeley entende por “ideias os objetos imediatos do entendimento; se denotais por esse termo as coisas sensíveis que não podem existir impercepcionadas, fora da mente – então aquelas coisas são de fato ideias” (Terceiro diálogo..., 1980). As ideias dos sentidos são mais fortes, vivas e distintas do que as da imaginação; tem estabilidade, ordem e coerência e não são produzidas por acaso como frequentemente as que são efeito da vontade humana, senão que formam cadeias ou série de admirável conexão; prova suficiente da sabedoria e benevolência do Autor [Deus]. Ora, as regras ou métodos estabelecidos segundo os quais o espírito excita em nós as ideias dos sentidos são as chamadas leis da natureza; conhecemos pela experiência que tais ou tais ideias são acompanhadas de tais ou tais outras no curso ordinário das coisas” (Tratado..., 30, pp. 18-19, 1980). “As ideias impressas nos sentidos pelo Autor da natureza chamam-se objetos reais; e as excitadas pela imaginação, por menos regulares, vivas e consistentes, designam-se mais propriamente por ideias ou imagens de coisas que copiam ou representam. Mas as nossas, embora nunca fossem vivas e claras, são, no entanto, ideias, isto é, existem no espírito ou são por ele percebidas como as que ele mesmo forma. Às ideias dos sentidos atribui-se realidade maior, por mais fortes, ordenadas e coerentes do que as criadas pelo espírito; isso não prova que existam fora dele. São também menos dependentes do espírito ou substância pensante que as percebe porque as provoca a vontade de um espírito mais poderoso; mas são ideias e nenhuma ideia forte ou fraca pode existir senão no espírito que a percebe” (Tratado...33, p. 19, 1980. Cf. item 34 da mesma página).

NOTA – 5 – “Julgo ter mostrado a impossibilidade das ideias abstratas. Considerai o que delas disseram os seus melhores defensores. Finalmente indiquei-lhe a origem, que é evidentemente a linguagem” (Tratado... 21, p. 11, 1980). “Consideremos no parágrafo 13 a unidade em abstrato. Desse e da Introdução segue-se que não existe essa ideia. Mas, sendo o número uma ‘coleção de unidades’, conclui-se não haver unidade em abstrato; não há ideias de número em abstrato significadas por nomes numerais e figuras. Portanto, as teorias da Aritmética, se são abstratas de nomes e figuras e também de uso e de prática, assim como das coisas particulares enumeradas, pode supor-se nada terem com o objeto; donde se vê como toda a ciência dos números é subordinada à prática e como se torna vazia e pueril quando considerada mera especulação” (op. cit., 120, p. 37, 1980). (Cf; com edição desta obra, da Editora Escala, p. 101, São Paulo, s/d.)

NOTA – 6 – A uma possível crítica a essa teoria, como se bebemos e comemos ideias, Berkeley assegura: “mas afina – dir-se-á – parece bem singular dizer que comemos, bebemos ou vestimos ideias. Concordo. Não tendo a palavra ‘ideia’ no uso vulgar o sentido de combinação de qualidades chamadas ‘coisas’, é certo que tal expressão na fala corrente seria estranha e ridícula, mas isso nada tem com a verdade da proposição, correspondente apenas a firmar que comemos e vestimos coisas percebidas imediatamente, pelos sentidos. A aspereza ou suavidade, a cor, o sabor, o calor, a figura e quantidades análogas que combinadas constituem as várias espécies de víveres e de vestuários, vimos que só existem no espírito percipiente; e isto é tudo que se entende ao chamar-lhes ‘ideias’, palavra que, se fosse tão usada como ‘coisas’, não seria mais singular ou ridícula do que ela. Não discuto a propriedade, mas a verdade da expressão. Portanto, se concordardes comigo que comemos, bebemos e vestimos objetos dos sentidos, inexistentes se não percebidos ou fora do espírito, concederei logo que é mais próprio e acorde com o costume chamar-lhes coisas em vez de ideias” (Tratado..., 38, p. 20, 1980).

NOTA – 7 – Quando pensávamos que Berkeley cairia no idealismo subjetivo, eis que ele, para assegurar a realidade das ideias, deságua no idealismo objetivo, apelando para Deus em cuja mente existiriam tais ideias: “quando nego que os sensíveis existem sem ser na mente, não entendo em particular a minha mente, senão que toda e qualquer mente. As coisas têm – é bem manifesto – existência exterior à minha mente, pois acho pela experiência que não dependem dela. Há, portanto, outra mente na qual existem nos intervalos das percepções que tenho delas – assim como existiam antes de ser eu nascido e hão de continuar a existir, ainda, depois do meu suposto aniquilamento. E como a proposição é verdadeira naquilo que diz respeito a todos os outros espíritos criados e finitos, segue-se necessariamente que há uma Mente onipresente e eterna, que conhece e compreende todas as coisas e no-las apresenta à vista de uma certa maneira, e de acordo com certas regras – regras assim por ela constituída, às quais nós outros damos o nome de leis da natureza ( Terceiro diálogo..., pp. 97-98, op. cit., 1980).

            Como se nota, a mente de Deus, onde estão essas ideias (objetivas, como no platonismo, mas não sendo materiais), funciona em relação ao homem como as categorias kantianas, categorias estas que impõem regras e leis à natureza, garantindo assim a regularidade desse mundo, dotando-o de inteligibilidade, e, portanto, garantindo a legitimidade da ciência, que é derivada da onisciência de Deus.

NOTA – 8 – “Assim é evidente que conhecemos Deus imediatamente como outro espírito, distinto de nós. Podemos afirmar [que] a sua existência é mais evidente que a dos homens, porque os efeitos da natureza são infinitamente mais numerosos e consideráveis que os dos agentes humanos. Nenhum sinal revela um homem ou efeito por ele produzido que não revele mais fortemente o ser de um Espírito, autor da natureza. Porque é evidente que em relação a outras pessoas a vontade só tem por objeto o movimento corpóreo; mas que esse movimento seja acompanhado por uma ideia ou a excite no espírito de outro, depende inteiramente da vontade de Criador. Só Ele ‘que tudo sustenta com o verbo do seu poder’, mantém a correlação entre espíritos, capacitando-os para receberem a existência uns dos outros. E esta pura e clara luz tudo ilumina e permanece invisível” (Tratado..., 147, p. 42, 1980. Cf. os itens 150, 151, etc., pp. 43-44 desta obra citada. Cf. Segundo diálogo, op. cit., p. 81, 1980).

NOTA – 9 – As leis da natureza nos dão “uma espécie de antevisão que nos permite regular a nossa ação para utilidade da vida. Do contrário estaríamos sempre perplexos; não saberíamos como proceder para conseguir o menor prazer ou evitar a menor dor dos sentidos; que o alimento nutre, o sono restaura e o fogo aquece; que semear no tempo próprio é o caminho para fazer a colheita; e em geral que certos meios são adequados para chegar a certos fins, sabemo-lo não por alguma conexão entre as ideias, mas por observações de leis regulares da natureza, sem o que tudo seria confusão, e o adulto não saberia conduzir-se melhor nos negócios do que um recém-nascido” (Tratado..., 31, p. 19, 1980). “Este trabalho insistente e uniforme que tão claro mostra a bondade e sabedoria do espírito soberano cuja vontade constitui as leis da natureza, está tão longe de conduzir para Ele os nossos pensamentos, que antes os leva a perseguir causas segundas. Quando vemos certas ideias dos sentidos constantemente seguidas por outras, sem o termos feito nós, atribuímos poder e atividade às ideias e julgamos ser uma causa de outra, embora nada seja mais absurdo e ininteligível. Assim, por exemplo, tendo visto certa figura luminosa e redonda e ao mesmo tempo recebida a ideia de sensação chamada calor, concluímos que o sol é a causa do calor. Do mesmo modo ao perceber o movimento e colisão de corpos acompanhada de som, pendemos a crer seja este o efeito daqueles” (Tratado..., 32, p. 19, 1980).
            Posteriormente, David Hume, dando continuidade a este tema de Berkeley, também disse que as impressões (sensíveis) não causam outras e, quando as vemos juntas, não é por conexão causal, mas por mera justaposição, negando assim o princípio de causalidade. Ora, o princípio de causalidade é a base da ciência. Negá-lo é destruir a ciência.


BIBLIOGRAFIA

Berkeley, George – Tratado sobre os princípios do conhecimento humano. Três diálogos entre Hilas e Filonous em oposição aos céticos e ateus. In “Os Pensadores”, São Paulo, Abril Cultural, 1980.

Berkeley, George – Princípios do conhecimento humano (A Treatise Concerning the Principles of Human Knowledge), São Paulo, editora ESCALA, sem data (s/d).

Berkeley, G. - Tres Diálogos entre Hilas y Filonús, Espasa-Calpe, Buenos Aires, 1952.

LêninMaterialismo y Empiriocriticismo, in “Obras Completas” (40 volumes: a obra mencionada é o volume 14), Madrid-Espanha, Akal Editor, 1974-1977-1978. (Obra monumental, doada pelo Autor à Biblioteca do Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará – UECE -, juntamente com as obras anteriores, com exceção da obra publicada pela editora ESCALA).

segunda-feira, 26 de junho de 2017

A Filosofia de DESCARTES


A FILOSOFIA DE DESCARTES
A FILOSOFIA DE DESCARTES














NOÉ MARTINS DE SOUSA
(Professor de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará
 de 12-08-1981 a 26-05-2012)





























Fortaleza-Ceará - 2017






  













A FILOSOFIA DE DESCARTES





Noé Martins de Sousa
(Professor de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará - aposentado)



1-DESCARTES – VIDA E OBRAS

 René Descartes, filósofo e matemático francês, nasceu em La Haye (hoje, La Haye-Descartes), Touraine, em 1596. Em 1617, querendo viajar e conhecer o mundo - mesmo tendo recursos para fazê-lo de modo independente - alistou-se como soldado no Exército de Maurício de Nassau (* 1567 - + 1625 – evidentemente, não é o que veio para o Brasil em 1637, embora sejam ambos da mesma e ilustre família), e, dois anos depois, no Exército do Eleitor da Baviera (1619) e, em 1621, no Exército do conde de Bucquoy. Viajou pela Hungria, Alemanha, Polônia, Holanda, Suíça e Itália. Regressando à Holanda em 1629 aí se estabeleceu, permanecendo por vinte anos, até 1649. Nesta data, a convite da rainha Cristina da Suécia, viajou para Estocolmo onde, não resistindo aos rigores do frio, faleceu em 1650.
Obras principais: “Regras para a direção do espírito” (Regulae ad directionem ingenii - Règles pour la direction de l’esprit – 1627-1628 – publicação póstuma em 1701); “Tratado do mundo e da luz” (Traité du monde ou de la lumière – 1633 – publicação póstuma em 1664); “Discurso do método” (Discours de la méthode – 1637); “Meditações metafísicas” (Meditationes de prima philosophia – 1641, em latim e traduzida para o francês em 1647 sob o título de Méditations métaphysiques); “Princípios de filosofia”  (Principia philosophieae – 1644, em latim e traduzida para o francês em 1647, sob o título de Principes de la philosophie). “Paixões da alma” (Passions de l’âme – 1649).

Indicamos uma edição monumental (que utilizaremos neste trabalho) das obras de Descartes, publicada no final do século XIX e início do século XX: – Oeuvres Complètes, publiées par Charles Adam et Paul Tannery, sous les auspices DU MINISTÈRE DE L’INSTRUCTION PUBLIQUE, Léopold CERF, imprimeur, Éditeur, Paris, 1891-1909, havendo uma edição desta obra no acervo da biblioteca do Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará[1]. Vou fornecer o conteúdo de cada tomo:

- Tome I – Correspondance  – avril 1622 – février 1638. - Tome II – Correspondance – mars 1638 – décembre 1639. – Tome III – Correspondance – janvier 1640 – juin 1643. – Tome IV – Correspondance – juillet 1643 – avril 1647. – Tome V – Correspondance - mai 1647.


 [1] Quando consultei essa obra, ela estava em péssimo estado de conservação, certamente pelo constante  manuseio e por ser uma edição antiga, com mais de cem anos de existência.

– février 1650. – Tome VI – Discours de la méthode et essais. – Tome VII – Meditationes de prima filosophia. – Tome VIII (1) – Principia philosophiae. – Tome VIII (2) – Epistolae ad Voetium. Lettre apologétique. Notae in programa. Tome IX (1) – Méditations métaphysique (traduction). – Tome IX (2) – Principes (traduction). – Tome X – Physico-mathematica. Compendium musicae. Regulae ad directionem ingenii. Recherche de la vérité. Supplément à la correspondance.  – Tome XI – Le monde. Description du corps humain. Passions de l’âme. Anatomica. Varia. Acompanha esta obra um Étude historique de Charles Adam, publicado em 1910. Esta obra foi republicada pela Librairie Philosophique J. Vrin, Paris, 1978 em diante. Relembramos: usaremos esta obra neste escrito.

            Não poderíamos deixar de indicar o livro de Spinoza, “Princípios da filosofia de René Descartes demonstrados à maneira geométrica”[2], obra original, pertencente à biblioteca pessoa do filósofo cearense Alcântara Nogueira, de quem fui aluno de filosofia e, depois, colega professor, na Universidade Estadual do Ceará.



[2] Benedictum de Spinoza – Renati Des Cartes Principiorum philosophiae, Pars I, & II, More Geométrico demonstratae. Per BENEDICTUM de SPINOZA Amistelodamensem. Accesserunt Ejusdem COGITATA METAPHYSICA, In quibus difficiliores, quaetam in parte Mataphysices generali, quam speciali occurrunt, quaestiones breviter explicantur. Amstelodami, Apud Johannem Riewerts, in vico vulgo, de Dirk van Affen-fteeg, sub signo martyrologii, 1663. Esta obra histórica, original, de Spinoza, pertence à biblioteca pessoal do saudoso filósofo Francisco Alcântara Nogueira. Tive a satisfação de manusear esta obra, em  visitas que fiz  à sua residência, no bairro Aldeota, Fortaleza-Ceará.  [Há tradução desta obra em língua portuguesa, não sei se tradução completa. Mencionamos a do professor da USP, Homero Santiago, parte I, publicada na Revista CONATUS (editor:  Dr. Emanuel Ângelo da Rocha Fragoso), EDUCECE-Fortaleza-Ceará, vol. 2. Número 4, dezembro de 2008.].


2- DESCARTES E O RACIONALISMO

René Descartes é considerado o pai do Racionalismo moderno. Sobre o que é Racionalismo, consultamos o mestre Alcântara Nogueira [3] que afirma:

“Em todas as épocas o que se chamou de racionalismo no sentido rigoroso da expressão, procurou alcançar o conhecimento através da concepção de que o mais poderoso argumento se



[3] Alcântara Nogueira (Francisco Alcântara Nogueira: Iguatu-Ce. – 1918-Fortaleza-Ce.-1989) foi professor da Universidade Federal do Ceará e da Universidade Estadual do Ceará (além de outras instituições de ensino, no Rio de Janeiro). Escreveu várias obras, especialmente na área de ciências jurídicas e filosofia, e foi um renomado estudioso do pensamento de Spinoza. Fui seu aluno de filosofia e colega de magistério na Universidade Estadual do Ceará – UECE, e tenho a satisfação de ter fruído de sua amizade pessoal. Escrevi um artigo sobre a interpretação que Alcântara Nogueira faz de Spinoza, que foi publicado pela revista CONATUS - parte I, in Vol. 5, nº 9, de julho de 2011 e parte II, in Vol. 5, nº 10, de dezembro de 2011, Editor:  professor, Dr. Emanuel Ângelo da Rocha Fragoso, Fortaleza-Ceará, EDUECE. O editor da revista CONATUS, professor Emanuel Ângelo, deu-me notícia de que envia constantemente os números desta Revista para a Casa de Spinoza, na Holanda, onde se encontram vários escritos do nosso filósofo cearense, dentre os quais seu livro “O método Racionalista-Histórico em Spinoza”. O Dr. Emanuel, que é professor da UECE, continua, bravamente e com entusiasmo, editando a Revista CONATUS, sobre o pensamento de Spinoza.





encontrava como forma de raciocínio que dispensava limitações condicionadas aos dados da ciência e especialmente ao tempo como fator necessário ao aperfeiçoamento ( evolução) desse conhecimento. Quer dizer que o raciocínio, desde que atendesse a regras que não pecassem contra a lógica, bastava para atingir o que o conhecimento aspirava, estando tudo o mais apenas como ajuda complementar. O raciocínio, portanto, não pressupunha outro instrumento que não o seu próprio poder criador em torno do qual tudo teria que acomodar-se ou explicar-se” ( “O método racionalista-histórico em Spinoza”, p. 166, São Paulo, Editora Mestre Jou, 1976).



O Racionalismo inspira-se na matemática[4] e só admite como verdadeiros princípios evidentes a priori. Aceitam-se também as ideias inatas, isto é, o conhecimento válido não é aquele que é adquirido através dos sentidos, mas o que se encontra inato na alma. A verdade não é a conformidade da inteligência que conhece com a coisa conhecida (ou seja, a relação de concordância ou de discordância do sujeito com o objeto), mas a clareza e a coerência entre ideias. Seus maiores representantes foram Descartes, Leibniz e Spinoza, sendo que a interpretação de Alcântara Nogueira sobre o racionalismo de Spinoza faz deste último um racionalista diferente, historicista.



Com Descartes (e Francis Bacon) inicia-se o Pensamento Moderno. Descartes é, na realidade, o fundador do racionalismo moderno.

Em seu projeto de construir uma nova e consistente filosofia, procura encontrar um princípio sólido para nele fundamentar os alicerces de seu pensamento. Para encontrar tal princípio ele usa a dúvida como método. Supõe que tudo que aprendera até aquele momento era falso. Afirma ele:


[Duvido] “Por exemplo que eu esteja aqui, sentado junto ao fogo, vestido de chambre, tendo este papel entre as mãos e outras coisas desta natureza. E como poderei eu negar que estas mãos e este corpo sejam meus? A não ser talvez que eu me compare a esses insensatos. Cujo cérebro está de tal modo perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bile que constantemente asseguram são reis quando são muito pobres; que estão vestidos de ouro e de púrpura quando estão inteiramente nus (...). Todavia, devo aqui considerar que sou homem e, por conseguinte, que tenho o costume de dormir e de representar, em meus sonhos, as mesmas coisas, ou algumas vezes menos verossímeis, que esses insensatos em vigília. Quantas vezes ocorreu-me sonhar, durante a noite, que estava neste lugar, que estava vestido, que estava junto ao fogo, embora estivesse inteiramente nu dentro de meu leito?” (Meditações Metafísicas, Primeira, §§ 4-5, pp. 118-119, in Obra Escolhida, São Paulo, Difusão Europeia do Livro, 1973/Oeuvres Complètes, tomo IX, 9-10, p. 14, edição já mencionada no início deste escrito).

 [4] Descartes foi considerado um grande matemático em sua época, especialmente por ter inventado a “geometria analítica”. Sobre Isso, escreve Bertrand Russell: “Sua grande contribuição para a geometria foi a invenção das geometria coordenada, embora não de todo em sua forma final. Empregava o método analítico, que supõe solucionado um problema e examina as consequências da suposição, e aplicou a álgebra à geometria. Em ambas essas coisas havia tido predecessores – e, com respeito à primeira, mesmo entre os antigos. O que havia de original nele foi o emprego das coordenadas, isto é, a determinação da posição de um ponto em um plano por sua distância de duas linhas fixadas. Ele próprio não descobriu todo o poder deste método, mas fez o bastante para tornar fácil um progresso maior. Esta não foi, de modo algum, sua única contribuição, mas é a mais importante” ( Historia da Filosofia Ocidental, livro 3, cap. IX, p. 84, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1968).

Portanto, os sentidos humanos são falhos e, em consequência, as ciências que tratam das coisas sensíveis, como a Física, a Astronomia, a Medicina etc., são todas duvidosas. Entretanto, a Matemática poderia ser verdadeira: “dois mais dois são e serão sempre quatro”, quer eu esteja acordado ou dormindo. Todavia, eu não posso confiar nem mesmo na Matemática, pois é possível que um gênio maligno exista e encontre prazer em me iludir, fazendo-se errar até numa simples adição de dois mais dois (cf. final da Primeira Meditação).



Porém, mesmo duvidando de tudo, de que não há Terra, estrelas, movimentos, figura, corpos ou extensão etc., existe pelo menos uma coisa de que eu não posso duvidar: da existência do próprio pensamento que duvida.





“Mas logo percebi – continua Descartes – que, quando pensava que tudo era falso, necessário se tornava que eu – eu que pensava – era alguma coisa. E notando que esta verdade – penso, logo existo [Cogito, ergo sum = Je pense, donc je suis] – era tão firme que todas as extravagantes suposições dos céticos não eram capazes de abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como primeiro princípio da filosofia que procurava” (Discurso do método, 4ª parte, trad. De João Cruz Costa, Rio de Janeiro, Edições de Ouro, 1968. A tradução é confiável).





            E – assegura Descartes – “...Por isso reconheci que eu era uma substância cuja essência ou natureza não é outra cousa senão pensamento que, para existir, não tem necessidade de nenhum lugar nem depende de cousa alguma material” (idem).





            Eu sou, portanto, uma substância que pensa: “Je suis une chose qui pense” (Terceira Meditação, in Oeuvres Complètes, tomo IX, § 55, p. 39. O tomo VIII traz a edição em latim). “Penso, logo existo” é, por conseguinte, o princípio primordial da Filosofia Cartesiana.




            Os críticos de Descartes – dentre os quais, Bertrand Russell - dizem que sua conclusão de que existe uma “coisa” (uma “substância”), deduzida do ato de pensar, é ilógica. Não se pode deduzir logicamente da ação de pensar que existam corpos, coisas, a matéria. Sua conclusão não deriva da premissa do silogismo que está implícito. Senão, vejamos: “eu penso; ora, tudo que pensa existe [na realidade]; logo, eu existo realmente (como uma “coisa” que pensa)”. O penso não demonstra necessariamente a existência de um eu, pois a exigência de um eu para o verbo penso (no presente do indicativo) é apenas uma exigência gramatical e não uma necessidade ontológica. O correto, logicamente, seria dizer: “penso, logo há pensamento”, ficando de lado, como uma questão problemática, a existências das coisas.




            Depois de Descartes (supostamente) estabelecer a existência do eu pensante, este serve como fundamento de toda a sua filosofia. Mas mesmo que o EU exista, como possa garantir a existência do mundo externo, que dizer, dos corpos e de outros sujeitos pensantes? Descartes tenta então provar a existência objetiva do mundo material, pois sem sua existência real, efetiva, o pensamento seria apenas um sonho, uma  fantasmagoria. Para fazê-lo, resolve apelar para Deus. Mas para que Deus possa garantir a realidade do mundo, é preciso que o próprio Deus exista. Logo, é necessário provar a sua existência. Assim, podemos já antecipar que o sistema cartesiano admite três substâncias: o Pensamento (que é algo inextenso), o Mundo ( que é uma coisa extensa) e Deus ( que é inextenso). Descartes, no fundo, acha que substância, no sentido rigoroso da palavra, é termo que só se aplica a Deus, pois Ele é o criador das outras duas substâncias. Em verdade, se substância é aquilo que existe por si mesmo, então Descartes teria sido mais coerente  – como mais tarde o fez Spinoza – se tivesse rejeitado a pluralidade das substâncias e aceito somente uma – Deus.



Descartes diz que descobriu sua filosofia, de repente, em 1619: ao se aquecer dentro de uma estufa, teve uma visão dos fundamentos de toda a sua filosofia. Sobre isso, diz Émile Bréhier:




“A 10 de novembro de 1619, em uma aldeia alemã das proximidades de Ulm, ‘cheio de entusiasmo, diz ele, descobriu os fundamentos de uma ciência admirável’ (...) expressão que designa, sem dúvida, um método universal, capaz de introduzir a unidade nas ciências. Descartes atravessou, naquele momento, um período de entusiasmo místico. Filiou-se, talvez por intermédio do matemático de Ulm, Faulhaber, à associação dos Rosa-Cruzes” (Historia da Filosofia, Tomo II, fascículo 1, III, “Descartes e o Cartesianismo”, p. 50, São Paulo, Editora Mestre Jou, 1979).



           Daí surgiu, de repente, a visão de seu método, se quisermos acreditar nas palavras do nosso filósofo, escritas em seu Discurso do método.



            Descartes, através de sua dúvida, criou um método científico rigoroso que aconselha a evitar a precipitação e a imprudência, admitindo como verdadeiro somente aquilo que for claro e distinto. Clareza e distinção, para ele, são critérios da verdade. Para Descartes, a aquisição do conhecimento exige um método rigoroso, cujas regras ou preceitos exporemos a seguir:



“O primeiro [preceito do método] consiste em nunca aceitar, por verdadeira, cousa nenhuma que não conhecesse como evidente; isto é, devia evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção; e nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente ao meu espírito que não tivesse ocasião de o por em dúvida. O segundo [preceito consiste em] dividir cada uma das dificuldades que examinasse em tantas parcelas quantas pudessem ser e fossem exigidas para melhor compreendê-las. O terceiro [preceito consiste em] conduzir por ordem os meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de serem conhecidos, para subir, pouco a pouco, como por degrau, até o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo certa ordem entre os que não se procedem naturalmente uns aos outros. E o último [quarto preceito, consiste em] fazer sempre enumerações tão completas e revisões tão gerais, que ficasse certo de nada omitir” (Discurso do método, segunda parte, pp. 85-, trad. João Cruz Costa, op. cit.).



            Método, em definição genérica, é um conjunto de processos que se usa na busca e aquisição da verdade. Antoine Arnauld e Pierre Nicole assim escrevem sobre o método: “Pode-se chamar em geral de método à arte de bem dispor uma série de muitos pensamentos, ou para descobrir a verdade quando a ignoramos, ou para provar aos outros, quando nós já a conhecemos” ( in La Logique ou L’Art de Penser, apud Emanuel Angelo da Rocha Fragoso, em seu livro O método geométrico em Descartes e Spinoza, Introdução, p. 18, Fortaleza-Ceará, EDUECE, 2011). 

          Quer dizer, o método é um conjunto de procedimentos para a pesquisa e ordenamento do conhecimento. Esses procedimentos, para Descartes, consistiam em evidência, divisão ou análise das tarefas ou objeto, condução do pensamento por ordem (síntese) e enumerações com revisões gerais.

            Uma vez estabelecidas a regras de seu método, Descartes dedica-se a estudar o mundo. Mas para fazer isso, precisa primeiro provar que o mundo material existe. A para provar isso, precisa provar a existência de Deus, que é autosubsistente e criador de tudo o que existe.

3 - AS PROVAS DA EXISTÊNCIA DE DEUS

Descartes promete, com seu método, só aceitar como verdadeira a ideia que se apresentasse ao espírito clara e distintamente, procurando evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção. Ele expõe três provas da existência de Deus, contidas especialmente nas Meditações. As duas primeiras provas estão na Terceira meditação, e a outra, a que ele considera mais importante, na Quinta medicação.


1-A PRIMEIRA PROVA – Esta prova se baseia na existência de um tipo de ideias, as quais vamos explicitar a seguir. Descartes distingue claramente três classes de ideias. Afirma ele: “ora, destas ideias, umas me parecem ter nascido comigo, outras ser estranhas e vir de fora, outras feitas e inventadas por mim mesmo” ( Meditação terceira, 10, p. 140, p. cit. / ed. Francesa, t. IX, 38, p. 29).

            As ideias estranhas, que vêm “de fora”, são as ideias sensíveis (correspondem às chamadas “qualidades secundárias”) que são produzidas pelos objetos “externos” (supondo antecipadamente que existam objetos externos) e são obscuras e confusas. Tais ideias, na hipótese de corresponderem aos objetos externos, não são semelhantes a eles.

“Pelo contrário, notei amiúde, em muitos exemplos, haver uma grande diferença entre o objeto e sua ideia. Como, por exemplo, encontro em meu espírito duas ideias do Sol inteiramente diversas: uma, toma sua origem nos sentidos, e deve ser colocada no gênero daquelas que disse acima provirem de fora, pela qual ele [o Sol] me parece extremamente pequeno; e a outra é tomada nas razões da Astronomia, isto é, em certas noções nascidas comigo [5], ou enfim é formada por mim mesmo, de qualquer modo que seja, e pela qual o Sol me parece muitas [plusieurs] vezes maior do que a terra inteira. Por certo, essas duas ideias que concebo do Sol não podem ser ambas semelhantes ao mesmo Sol; e a razão me faz crer que aquela que vem imediatamente de sua aparência é a que lhe é a mais dessemelhante” ( Medit. terc., 13, p. 142/ed. Francesa., IX, 40-41, p. 31).

  
      Assim, as ideias que dependem das qualidades sensíveis não tem tanta realidade (ou veracidade) quanto as que são elaboradas pelo meu espírito ou as ideias inatas, que são claras e distintas. Estas últimas são verdades eternas, criadas por Deus (eternas ou coeternas)[6].


            Dessas ideias claras e distintas, podemos citar a ideia de substância, duração, número etc., que são, apesar de claras e distintas, complexas (compostas); a seguir, temos as ideias simples como a de extensão, figura, situação (lugar), movimento de lugar etc. Tais ideias, que não vem de fora, são produzidas por mim mesmo. Mas existem ideias que não vem de fora nem são produzidas por mim mesmo. A ideia de “substância”, produzida por mim, com base na suposta realidade objetiva das coisas, é finita. Entretanto, existe uma ideia de substância infinita. Então, como é que eu, que sou uma substância finita, posso ter conhecimento (verdadeiro) de uma substância infinita? Isso somente seria possível se tal ideia tivesse sido colocada em mim por alguma substância infinita – Deus.



             Logo, tal ideia de substância infinita é posta em mim por Deus. E se Ele é causa dela, deve ser muito perfeito, visto que a causa é sempre mais perfeita do que o efeito[7].



“Portanto, resta tão-somente a ideia de Deus, na qual é preciso considerar se há algo [quelque chose] que não possa ter provindo de mim mesmo. Pelo nome de Deus entendo uma substância 



[5] Descartes se refere às ideias inatas, que também são eternas.
[6] E sobre as ideias inatas: “Desde 1630, Descartes precisava [definia com exatidão]: ‘as verdades matemáticas’, ditas eternas, foram estabelecidas por Deus e dele depende inteiramente, assim como o resto das criaturas... Foi Deus que estabeleceu estas leis na natureza, assim como um rei estabelece leis no seu reinado’ ( [carta] a Mersenne, 15-4-1630). Tal é o sentido pleno de ‘fonte soberana’. Esta criação das verdades eternas, largamente proclamada em várias cartas a Mersenne, no próprio momento em que Descartes acaba de fundamentar solidamente as bases de sua metafísica, aparece apenas na sequência das MEDITAÇÕES, em que se estende ao bem como ao verdadeiro: ‘não há ordem, nem lei, nem razão de bondade e de verdade que dele [Dele] não dependa’ (6as. RESPOSTAS, § 8)”. (Apud G. Rodis-Lewis, Descartes e o Racionalismo, pp. 47-8, Porto-Portugal, Rés, s/d).
[7] Como notam os críticos de Descartes (Bertrand Russell, verbi gratia), a aceitação  da tese de que “a causa é sempre mais perfeita do que o efeito” era um preconceito herdado da Escolástica, que Descartes incorporou ao seu pensamento, apesar de empregar um método que recomenda bastante a prudência.infinita, eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente e pela qual eu próprio e todas as coisas que são (se é verdade que há coisas que existem) foram criadas e produzidas. Ora, essas vantagens são tão grandes e tão eminentes que quanto mais atentamente as considero, menos me persuado de que essa ideia possa tirar sua origem de mim tão-somente. E, por conseguinte, é preciso necessariamente concluir, de tudo o que foi dito antes, que Deus existe; pois, ainda que a ideia de substância esteja em mim, pelo próprio fato de [eu] ser uma substância, eu não teria, todavia, a ideia de uma substância infinita, eu que sou um ser finito, se ela não tivesse sido colocada em mim por alguma substância que fosse verdadeiramente infinita” (Meditação Terceira, 22, pp. 149/150/ed. Franc., IX, 48-49, pp. 35-36).



           Eis, portanto, a primeira prova da existência de Deus. A existência das ideias que não foram criadas por mim, mas por Deus, prova sua existência. Em outras palavras a existências das verdades eternas prova que Deus existe. 



É aqui que os críticos de Descartes dizem que ele cai num círculo vicioso. Como se pode notar, Descartes parte de seus estados subjetivos para concluir pela objetividade de Deus, ou seja, parte da ideia (portanto, subjetiva) de substância infinita para provar a existência (objetiva) de Deus que, por sua vez, é causa dessa ideia. Ora, ou a substância de Deus não passa de uma mera “ideia” de existência de Deus, ou então Descartes cai no seu terceiro argumento (o ontológico, que veremos adiante), procurando provar o real pelo ideal, como fizeram todos os defensores desse argumento, desde Santo Anselmo.


2- A SEGUNDA PROVA – Esta prova pode ser resumida assim: eu (Descartes) sou imperfeito e finito. Tenho consciência desta imperfeição e das minhas limitações, sei que sou contingente, que não tenho em mim mesmo a causa da minha existência. Consequentemente, Deus é a causa da minha existência (da existência do meu pensamento ou do meu “eu que pensa”).


Este argumento, no fundo, pode também ser reduzido ao argumento ontológico, porque Deus pode ser causa de mim, mas para que eu possa atribuir a Ele a causa da minha existência, eu haveria de possuir em mim mesmo, antecipadamente, a ideia de Deus. E, na verdade, Descartes afirma que esta ideia (cf. Meditação Terceira, 39, p. 157, ed. em língua portuguesa, citada) foi colocada em mim pelo próprio Deus, como um selo do seu Criador em sua criatura. Aqui, seria de perguntar-se: se Deus depositou em mim tal ideia, então por que não teria posto as outras? Malebranche, posteriormente, foi muito mais consequente ao afirmar que vemos todas as ideias, todas as coisas em Deus...


3-TERCEIRA PROVA – Esta prova chama-se “argumento ontológico” ou “prova ontológica”. É apresentado por Descartes na Quinta Medicação. Aqui, Descartes assegura que Deus é um ser soberano e perfeito, em cuja ideia, e somente nela, a sua  existência é necessária (cf. Quinta medicação, 10, p. 157, ed. Em port., op. cit.). Em seus Princípios de filosofia, Descartes assim se expressa a esse respeito:

“quando, posteriormente, passa em revista as diversas ideias ou noções que estão em si, e encontra a noção de um ser onisciente, todo-poderoso e extremamente perfeito, ajuíza facilmente através do que apreende em tal ideia, que Deus, que é esse Ser todo perfeito, é ou existe. Com efeito [car] embora o pensamento possua distintas ideias de muitas outras coisas, não mostra aí nada que lhe certifique a existência de seu objeto; ao passo que observa nessa ideia não somente uma existência possível, como nas outras, mas uma ideia absolutamente necessária e eterna” (op. cit., p. 65. Lisboa, Guimarães Editores, 1985/ed. Franc., tomo IX, § 14)[8]


            Com este argumento ou prova, Descartes na realidade, cai num círculo vicioso: explica a existência de Deus pela ideia de perfeito e a ideia de perfeito pela existência de Deus. A tese de que em Deus a essência exige sua existência chama-se “argumento ontológico” e sobre isso esperamos ter a oportunidade de dizer algumas palavras em outra ocasião.





4- O MUNDO OU COSMOGONIA CARTESIANA

A argumentação que Descartes faz para provar a existência objetiva das coisas corpóreas pode ser vista na Sexta medicação, juntamente com várias considerações acerca da distinção entre corpo e alma.

            Reconhecendo a realidade de uma capacidade sensitiva (em que o sujeito é passivo, recebe algo “de fora” de si mesmo), conclui que a sensação é produzida por algo distinto de mim. As ideias sensíveis originam-se de algo distinto de mim e por isso podem vir de corpos, pois é evidente que Deus, como ser honesto, de modo algum iria me enganar, fazendo-me perceber corpos que não existem. Assim argumenta Descartes:

  
“Ora, não sendo Deus de modo algum enganador, é muito patente que ele não me envia essas ideias imediatamente por ele mesmo, nem também por intermédio de alguma criatura, na qual a realidade das ideias não esteja contida formalmente, mas eminentemente. Pois, não me tendo dado nenhuma faculdade para conhecer que isto seja assim, mas, ao contrário, uma fortíssima inclinação para crer que elas me são enviadas pelas coisas corporais ou parte delas, não vejo como se poderia desculpá-lo [a Deus] de embaimento [tromperie] se, com efeito, essas ideias partissem de outras causas que não coisas corpóreas, ou fossem por elas [coisas não corpóreas]produzidas[9]. E, portanto, é preciso confessar que as coisas corpóreas existem” (Med. Sexta, 20, p. 188/ed. Francesa, IX, 98-99, p. 63),




 [8] E Descartes continua na mesma página: “e, como vê que na ideia que fez do triângulo, se encontra [necessariamente] estabelecido que os seus três ângulos são iguais a dois ângulos retos, persuade-se, de forma absoluta, que o triângulo possui três ângulos iguais a dois retos: por isso que se percebe de que a existência necessária e eterna está compreendida na ideia de um Ser perfeito, deve concluir que um tal Ser, todo perfeito, é ou existe” (ed. fr., IX, 14, p. 31).




        Assim, Descartes “demonstra” a existência das coisas materiais. Esta “fortíssima inclinação para crer” ( três-grande inclination à croire) não parece um argumento sólido ou algo “claro e distinto” para quem tanto proclamou a prudência como regra de seu método... Mas Descartes admite que uma das verdades eternas, incriada, é esta: Deus não pode ser enganador.





              Demonstrada a existência do mundo material, graças ao poder de Deus, Descartes segue em frente, passando a explicar a formação e o movimento das coisas materiais, mecanicamente, pelo autodinamismo do mundo físico.  Para Descartes, o movimento no mundo físico se transmite por choque, o que se convencionou chamar de “física de impacto”. A esse respeito, diz Bertrand Russell:





“Supondo-se – como se supunha, em geral, na escola cartesiana – que toda ação física é da natureza do impacto, as leis dinâmicas bastam para determinar os movimentos da matéria, não havendo lugar para qualquer influência da mente” (Historia da Filosofia Ocidental, vol. 3, Cap. IX, “Descartes”, p. 86, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1968).

Quer dizer, Deus criou o mundo e depois o abandonou para se reger por suas próprias leis, deterministicamente.



Neste ponto, Descartes assemelha-se a Anaxágoras, este acusado por Platão e Aristóteles[10] de haver tido a inteligência de conceber um Nous para ordenar o caos e constituir o mundo físico, para, logo depois, cometer a burrice de deixar de lado esse


[9] Maria Ermantina de Almeida Prado Galvâo traduz essa passagem com mais clareza: “... não vejo como se poderia desculpá-lo pelo engano, se de fato tais ideias partissem ou fossem produzidas por outras causas que não as coisas corporais” ( Meditação sexta, 20, p.104,  in Descartes, “Coleção Folha Grandes Pensadores”, volume 5, São Paulo, 2015).
[10] Afirma Aristóteles: “Anaxágoras, em efecto, usa el Entendimiento [Nous] como recurso para la formación del mundo, y sólo cuando desconoce la causa de algo necessário echa mano del Entendimiento; pero, em los demás casos, cualquer cosa le parece causa de lo que deviene, antes que el Entendimiento” (Metafísica, Liv. I, 985ª, 15-20, p. 31, edição trilíngue – grego, latim, espanhol – de Valentin Garcia Yebra, 2ª edição, Madrid, Editorial Gredos, 1982. Outra tradução: Anaxágoras serve-se da inteligência para a geração do Universo como de um ex-machina; e quando se vê embaraçado pela causa de algum fenômeno necessário, então é que ele o atrai. Nos. Nos demais casos, é a tudo o mais, salvo à inteligência, que ele atribui o que acontece” (Tradução, também direta do grego por Vizenzo Cocco e notas de Joaquim de Carvalho, in “Os Pensadores”, “Aristóteles (II)”, p. 19, São Paulo, Abril Cultural, 1984). A palavra grega Nous, ora traduzida por Entendimento, ora por Inteligência, ora por Espírito, foi traduzida por nós por Espírito Inteligente. Esperamos não cometer redundância, pois o termo encerra a ideia de inteligência, algo que põe ordem no caos e, ao mesmo tempo, a noção de um ser espiritual. Traduzimos por Espírito Inteligente, prevendo a possibilidade de que talvez existam espíritos que não sejam inteligentes...

Espírito Inteligente (Nous) a fim de explicar o encadeamento das coisas pelas rígidas e necessárias leis da mecânica, sem qualquer intervenção da Providência. Leibniz refere-se a Anaxágoras (e, certamente,  a Descartes), quando diz: “é desarrazoado introduzir uma inteligência ordenadora das coisas, para logo em seguida, em vez de recorrer à sua sabedoria, servir-se exclusivamente das propriedades da matéria para explicar os fenômenos” (Newton/Leibniz - Discurso de metafísica, 19, p. 136, São Paulo, Abril Cultural, 1979,  in coleção “Os Pensadores”, obra reimpressa na edição de 1983).


           Blaise Pascal, em sua obra Pensamentos, diz a mesma coisa, criticando Descartes diretamente: “Não posso perdoar Descartes; bem quisera ele, em toda sua filosofia, passar sem Deus, mas não pôde evitar de fazê-lo dar um piparote para pôr o mundo em movimento; depois do que, não precisa mais de Deus” ( Pensamentos, 77, p. 92, trad. De Sérgio Milliet, Rio de Janeiro, Edições de Ouro, 1966. Esta tradição traz a biografia de Pascal, escrita por sua irmã mais velha, Gilberte Périer).[11]


             Isto significa dizer que Descarte só recorre a Deus para criar o mundo e colocar nele as leis da Física. Depois, passa a explicar tudo sem a intervenção da Providência, razão por que foi considerado o pai do mecanicismo moderno. Em consequência, os seres orgânicos são autômatos, simples máquinas, como bem o diz Bertrand Russell:

[Descartes] “Considerava os corpos dos homens e dos animais como máquinas: encarava os animais como autômatos [“robôs”, na linguagem atual], governados inteiramente pelas leis da física e destituídos de sentimentos ou consciência. Os homens são diferentes: têm uma alma, que reside na glândula pineal. Lá, a alma entra em contacto com os ‘espíritos vitais’ e, mediante esse contacto, há uma interação entre a alma e o corpo. A quantidade total do movimento no universo é constante e, portanto, a alma não pode afetá-lo; mas pode modificar a direção do movimento dos espíritos vitais [= “animais”, que animam, vivos] e, por isso, indiretamente, de outras partes do corpo” (idem, ibidem).

             Isso é cair totalmente no naturalismo mecanicista e dificultar a explicação do relacionamento da alma com o corpo.


5 -O HOMEM NA FILOSOFIA CARTESIANA

Estabelecida a existência, a objetividade do mundo material, graças a Deus, não há mais razão para duvidar da realidade do meu corpo. Minha alma encontra-se inserida no meu corpo – segundo Descartes – não como um piloto em seu navio (imagem essa que me lembro ter lido em Platão et al) mas, pelo contrário, confundida e misturada como ele (cf. Sexta Meditação Metafísica, ed. franc., tomo IX, 100, p. 64), pois se assim não fora, como explicar que quando aou ferido ou tenha sede ou necessidade de comer, minha alma fica triste, é afetada por esses acontecimentos? Se sente essas coisas é porque esses sentimentos dependem ou provêm da "união [12] e como que da mistura entre o espírito e o corpo" (union et comme du mélange de l'espirit avec le corps - ed. francesa, cit., 101, p. 64/ed. portuguesa, 24, p. 190. Atualizamos a grafia do francês antigo para o francês atual).

 [11] A edição de “Os Pensadores” de 1999 (São Paulo), apresenta o texto citado de Pascal na página 51. A edição mais completa que existe no Brasil é a da “Colação Folha Grandes Nomes do Pensamento”, traz o referido texto na parte “Proposições atribuídas a Pascal”, 1001, p. 373, São Paulo, 2015. Esta edição traz o prefácio da primeira edição desta obra de Pascal, de 1670, escrito por seu sobrinho, Étienne Périer, filho de Gilberte Périer, irmã mais velha de Pascal. O Texto foi recolhido pela filha de Gilberte, Marguerite Périer ( que  se tornou freira).

            É por causa desse conceito de “mistura” (mélange) entre a alma e o corpo que os defensores de Descartes tentam atenuar o seu extremo dualismo entre matéria e espírito, corpo e alma. Em verdade, a alma não se acha difundida no corpo todo, mas só recebe as impressões deste corpo em nível de cérebro, onde se localiza na glândula Pineal[13] . Isto leva a uma dificuldade em relação à Física de Descartes: como conciliar o mecanicismo do mundo material com a vontade (liberdade) da alma? Descartes nega que a alma possa aumentar ou diminuir a quantidade de movimento do mundo físico. Leibniz, nos "Novos
ensaios sobre o entendimento humano”, a espeito do assunto, afirma:


“quanto ao poder de produzir movimento pelo pensamento, não acredito que tenhamos alguma ideia sobre isso, como não possuímos qualquer experiência. Os próprios Cartesianos reconhecem que as almas não podem dar uma força nova à matéria, mas pretendem que lhes dão uma nova determinação ou direção da que já possui. Quando a mim, mantenho que as almas não mudam nada na força nem na direção dos corpos; mantenho outrossim que uma coisa seria tão inconcebível quanto a outra, e que é necessário recorrer à harmonia pré-estabelecida para explicar a união da alma e do corpo” (Liv. II, XXIII, p. 166, São Paulo, Abril Cultural, 1980).


            Poderíamos objetar que Leibniz critica Descartes com base na sua própria teoria da Harmonia pré-estabelecida. Mas Leibniz chegou à doutrina da Harmonia pré-

[12] “... a natureza me ensina que existem vários outros corpos ao redor do meu, entre os quais devo perseguir uns e fugir dos outros. E, por certo, por eu sentir diferentes tipos de cores, de odores, de sabores, de sons, de calor, de dureza, etc., concluo muito bem que há nos corpos, dos quais procedem todas essas diversas percepções dos sentidos, algumas variedades que lhes correspondem, embora, talvez, essas variedades não lhes sejam de fato semelhantes. E, também, do fato de que, dessas diversas percepções dos sentidos, umas me são agradáveis e outras desagradáveis, posso tirar uma consequência de todo certa: meu corpo (ou melhor, eu mesmo por inteiro, na medida em que sou composto do corpo e da alma) pode receber diversas comodidades ou incomodidades dos outros corpos que o rodeiam” (Sexta Meditação, 25, p. 105. Edição da Folha de São Paulo, 2015, op. cit.).
[13] Sobre a glândula Pineal, diz a Grande Enciclopédia Delata Larousse: “pequeno corpo situado no mesencéfalo no intervalo entre as duas metades do tálamo. (o corpo pineal, do tamanho de uma ervilha, no homem, tem forma de cone. A estrutura histológica parece a de um órgão dotado de atividade secretora; contudo, até o presente, nenhuma demonstração convincente de secreção epifisária foi realizada)”. Atualmente, sabe-se que esta glândula produz a melatonina, que é um hormônio  responsável pelo sono. Uma espécie de sonífero e a escuridão estimula a sua produção.

estabelecida exatamente tentando resolver problemas como esse de Descartes: a relação entre espírito e matéria, alma e corpo.

             Quanto ao poder da alma movimentar o corpo é motivo de controvérsias. Tanto Leibniz como Newton criticam a teoria do movimento de Descartes. (cf. Newton, O peso e o equilíbrio dos corpos, Definição IV em diante, p. 62 das edições  de 1979/1983 de “Os pensadores” “Newton/Leibniz”, São Paulo, Abril Cultural).  A teoria do movimento de Descartes defende que o corpo transmite o movimento de um para o outro por impacto (choques). Mas como uma alma pode impactar um corpo? Suponhamos, pela teoria do bom senso - que foi dado por Deus a toda a Humanidade (segundo Descartes) - que um homem medroso veja uma alma no terreiro de sua casa. Talvez, instintivamente, sem usar o bem senso que Deus lhe deu, ele corra para dentro de casa e tranque a porta. Mas, ao se lembrar de usar a razão, ele deduza que a alma pode entrar em sua casa não só pela porta fechada, como pelas paredes etc., por que uma alma não pode “impactar” numa parede. Vamos supor que este homem, em outra situação, atole seu carro na lama e, como grande devoto, peça ajuda a um anjo ou a uma alma bondosa. Ora, como poderá esse ente espiritual empurrar o seu carro se ele pode atravessar a matéria, por ser de natureza não material? Ora, o bom senso nos diz que a alma não tem qualquer poder de movimentar um corpo, nem o seu próprio e Descartes admite isso, em seu livro “As Paixões da Alma”, artigo 5, onde diz que é um erro acreditar que a alma confere o movimento e o calor ao corpo:


“Por esse meio evitaremos um erro realmente considerável em que muitos caíram, de tal modo que acredito que seja a causa principal que impediu até agora a possibilidade de explicar satisfatoriamente as paixões e as outras coisas pertencentes à alma.

         Consiste em ter imaginado que, ao ver que todos os corpos mortos são privados de calor e também de movimentos, era a ausência da alma que fazia cessar esses movimentos e esse calor. Desse modo, julgou-se, sem razão, que nosso calor natural e todos os movimentos de nossos corpos dependem da alma, ao passo que se devia pensar, ao contrário, que a alma só se ausenta quando se morre, porque esse calor cessa e os órgãos que servem para mover o corpo se corrompem” ( As paixões da alma, artigo 5 p. 33, trad. de Ciro Mioranza São Paulo, Editora Escala, s/d). 


  Isto significa dizer que a alma não provoca movimento no corpo e assim a física, digo melhor, a teoria mecanicista de Descartes, está salva. Mas embora Descartes considere que a quantidade de movimento seja sempre a mesma, fixa, constante, a alma pode alterar, ao menos, a direção desses movimentos. Leibniz, por exemplo, rejeita essa prerrogativa.

            O que é constante, segundo Leibniz e Newton, não é a quantidade de movimento, mas de Força (hoje, diríamos Energia e não força). Mas se a alma não confere movimento ao corpo (à matéria), como explicar que quando eu ordeno que meu braço se mexa, ele se mexe? Não estará obedecendo à ordem da alma e alterando a quantidade de movimento no mundo? Quer dizer, mesmo Descartes concedendo à alma essa prerrogativa de mudar a direção do movimento dos corpos, não consegue esclarecer a relação entre as ordens da alma e as respostas do corpo. Seus discípulos,  como Arnold Geulincx (1624-1669), Geraud de Cordemoy (1620-1684) Malebranche (1638-1715) e outros, no intuito de resolveram esta questão elaboraram uma teoria fantástica, chamada de “ocasionalismo”, ou “paralelismo psicofísico”, “Harmonia preestabelecida” ou  “teoria dos dois relógios”. (cf. Bertrand Russell, História da Filosofia Ocidental, Liv. Terceiro, cap. IX, p. 86, passim, São Paulo, Comp. Ed. Nacional, 1968; cf. Giovanni Reale/Dario Antiseri, História da Filosofia, vol. 2, Sexta Parte, Cap. VIII, p. 391 e segs., São Paulo, Editora Paulus, 8ª ed., 2007)[14].



             Essa “teoria” diz que Deus poderia ter sincronizado dois relógios de tal modo que sempre que o ponteiro de um marcasse o número de hora(s), o outro batesse o mesmo número de pancada(s), sem que nenhum dos relógios tivesse qualquer ligação com o outro. Do mesmo modo como poderia fazer com os relógios, Deus poderia muito bem ter sincronizado todos os estados subjetivos da alma com os estados objetivos do mundo material e, assim, sempre que a alma desse uma ordem ao corpo, ele se moveria no sentido de realizar o que a ordem prescrevesse. Quer dizer, sempre que a alma tivesse determinados estados subjetivos, o mundo simultaneamente teria um conjunto de estados objetivos, correspondentes àqueles estados da alma. Mas tudo por mera coincidência, já que a alma não manteria qualquer comércio com o corpo. Essa doutrina passou a ser conhecida mais tarde, a partir de Leibniz, por “Harmonia preestabelecida” e a própria filosofia determinística de Spinoza a pressupõe. Esta citação de Giovanni Reale & Dario Antiseri a confirma  e a esclarece ainda mais: 

“Um dos maiores problemas deixados sem solução por Descartes foi o da possibilidade de explicar a ação recíproca da res cogitans e da res extensa, da alma e do corpo. A pseudo-solução da ‘glândula pineal’ cf. acima, p. 382), na realidade, constituíra flagrante ‘retirada’ para cômodo asylum ignorantiae.

          Levando as premissas cartesianas às suas extremas consequências, alguns pensadores radicalizaram o dualismo existente entre ‘pensamento’ e ‘extensão’, negando a possibilidade de que o primeiro agisse sobre a segunda e vice-versa e propondo o recurso a Deus como a única solução para o problema da relação recíproca entre as duas substâncias. A vontade e o pensamento humano não agem diretamente sobre os corpos, mas constituem ‘ocasiões’ para que Deus intervenha na produção dos respectivos efeitos nos corpos, assim como os movimentos dos corpos são ‘causas ocasionais’ para que Deus intervenha na produção das respectivas ideias.

            Essa teoria, consequentemente, foi denominada ‘ocasionalismo’” G. Reale/D. Antiseri, Historia da Filosofia, vol. 2, Sexta Parte, Cap. VIII, p. 391, obra mencionada acima).

[14] Cf. Méditations, Sixième, 105-107, pp. 67-68, passim; cf. também com as “Meditações metafísicas”, Meditação Sexta, § 65 a 68-9, p. 105 em diante, edição da “Coleção Folha Grandes Nomes do Pensamento”, São Paulo, 2015.

                  Em sua obra As Paixões da Alma (ver ed. port., art. 10, p. 300, passim, da Difusão Europeia do Livro, São Paulo, 1973), Descartes tenta resolver esse problema da relação entre a alma e o corpo. A alma se localiza e se mantém sempre no cérebro, não em todo ele mas numa parte dele, numa glândula que os anatomistas identificaram como “glândula Pineal”. Deste seu posto de moradia a alma emite ordens para o corpo e dele recebe informações. Mas como a alma, que é espiritual, pode emitir e receber estímulos do mundo material? Descartes então, nesta obra, expõe a sua “Teoria dos espíritos animais”. Diz ele no artigo 31 de As Paixões da Alma:

                “É necessário também saber que, embora a alma esteja unida a todo o corpo, não obstante há nele alguma parte em que ela exerce suas funções mais particularmente do que em todas as outras.

                Acredita-se comumente que essa parte é o cérebro ou talvez o coração. O cérebro, porque é com ele que se relacionam os órgãos dos sentidos. O coração, porque é nele que parece que sentimos as paixões.

                 Examinando a coisa com cuidado, porém, parece-me ter reconhecido de modo evidente que a parte do corpo em que a alma exerce imediatamente suas funções não é de forma nenhuma o coração. Não é também todo o cérebro, mas somente a mais interior de suas partes, que é uma certa glândula muito pequena, situada no meio de sua substância e de tal modo suspensa por cima do conduto pelo qual os espíritos [espíritos animais] de suas cavidades anteriores têm comunicação com aqueles da posterior, que os menores movimentos que nela existem podem contribuir muito para modificar o curso desses espíritos e, reciprocamente, as menores modificações que sobrevêm ao curso dos espíritos podem contribuir muito para alterar os movimentos dessa glândula” (p. 47-48, São Paulo, Editora Escala, s/d, op. cit.).

             Os espíritos [animais] a que Descartes se refere são “os olhos e ouvidos do rei”, isto é, são mensageiros e intermediários entre a alma e o corpo e seriam produzidos em nível de cérebro: les esprits animaux sont produits dans le cerveau (ed. fr., IX, article X, p. 334, op. cit.).

              Por exemplo: se eu piso numa brasa e meu sapato esta furado, o pé poderá sofrer terríveis danos. É aqui que os espíritos animais entram em ação, que num caso desses funcionariam como guardiões do corpo. Eles iriam ao cérebro (glândula Pineal), certamente pela corrente sanguínea, e comunicariam o nefasto evento à alma. Esta então ordenaria – e isto, imediatamente! – que o pé atingido se levantasse para evitar mais queimaduras. Assim, esse pé seria salvo e continuaria sendo útil em sua função.

            Os críticos mais radicais de Descartes dizem que tudo isso é impossível, já que a alma no fundo não poderia jamais manter contato com os tais espíritos, pois o próprio Descartes afirma que os referidos espíritos “não são mais do que corpos e não tem qualquer outra propriedade, exceto a de serem corpos muito pequenos e se moverem muito depressa” (“As Paixões da Alma”, 10, p. 301, ed. port./Car ce que nome ici des esprits ne sont dque des corps, et ils n’ont point d’autre proprieté, sinon que ce son des corps três-petits, et qui se meuvent três-vite, ainsi que les parties de flamme qui sort d’un flambeau – “Les Passions de l’âme”, première partie, article X, p. 335, in Oeuvres Complètes de Descartes, Tomo IX, já citada. Atualizamos a grafia do francês).

              Ora, isso implica cair nas mesmas dificuldades, pois se tais entes são materiais, por mais sutis que sejam, permanecerão sempre materiais. E, se permanecem materiais, então a questão da relação entre espírito e matéria, entre corpo e alma, continua no ponto inicial – isto é, inexplicada. Numa carta Descartes enviada à princesa Elizabeth[15] (in ed. port. cit., p. 408) o nosso filósofo acaba por confessar a fraqueza dessa explicação e reconhece que não esperava convencer a princesa e que seria “demasiado presunçoso, se ousasse pensar que minha resposta deva satisfazê-la inteiramente”. Ainda bem...


             A esse respeito, assim se pronuncia Spinoza:


“Na verdade, não posso deixar de admirar que este filósofo, depois de ter firmemente decidido nada deduzir senão de princípios evidentes, e não afirmar coisa alguma que não pudesse perceber clara e distintamente, depois de ter tantas vezes censurado os Escolásticos por quererem explicar as coisas obscuras por qualidades ocultas, admitia uma hipótese mais oculta que toda qualidade oculta. Que entende ele, portanto, por união da alma com o corpo? Qual é a concepção clara e distinta que ele tem de um pensamento estritamente ligado a uma certa partícula de extensão? Quisera eu, na verdade, que ele tivesse explicado essa união por sua causa próxima. Mas concebera ele a alma distinta do corpo, de tal sorte que não pôde assinalar nenhuma causa singular dessa união, nem da própria alma, e que lhe foi necessário recorrer à causa de todo o Universo, isto é, Deus” (Ética, V Parte, “Da Potência do Entendimento ou da Liberdade Humana”, Prefácio, pp. 307-308, trad. Lívio Xavier, Rio de Janeiro, Edições de Ouro, 1965/ver Ética, pp. 408-409, tradução e notas de Joaquim de Carvalho, in edição “Os Pensadores”, São Paulo, Abril Cultural, 2000).


Como se pode observar, o extremo subjetivismo e a extrema dúvida de Descartes comprometeram a sanidade de todo o seu sistema. Seu grande mérito foi como matemático - criador da geometria analítica – e como criador do racionalismo moderno, destacando o valor da subjetividade humana. Teria sido mais coerente se tivesse levado a dúvida às últimas consequências, caindo no solipsismo. Não que consideremos o solipsismo uma teoria compatível com a socialidade humana, mas cair nele pode ser consequência natural das premissas de sua filosofia.

           O maior defeito do pensamento idealista cartesiano é o desconhecimento da História. Descartes faz o sujeito humano situar-se no vazio, fora do tempo, numa esfera

[15] Émile Bréhier: “A partir desse momento [1647], as questões de moral é que parecem atrair, sobretudo, a atenção de Descartes. Sua correspondência com a princesa Elisabete, filha de Frederico, rei da Boêmia, que encontrara refúgio na Holanda, foi ocasião de desenvolver as ideias sobre o soberano bem, e [o] conduziu ao tratado Des passions, sua última obra, publicada em 1649” (Historia da Filosofia. Vol. 2, fascículo 1, p. 53, São Paulo, Editora Mestre Jou, 1979).


em que os acontecimentos do passado e a ação dos outros homens não contam como forma de determinação da situação do presente e do futuro.

              Spinoza, por exemplo, conforme a interpretação do filósofo cearense, Alcântara Nogueira (ver “O método racionalista-histórico em Spinoza”, São Paulo, Editora Mestre Jou, 1976), não cometeu essa falha, não caiu nesse racionalismo puro, vazio e isolacionista, mas salvou seu pensamento adotando um racionalismo dinâmico, progressista, historicista e até mesmo, em certo aspectos, dialético.



6 – CONSIDERAÇÕES FINAIS




Não iremos tratar da “moral provisória” de Descartes, mas, por enquanto, encerraremos nosso trabalho com essas palavras de Giovanni Reale/Dario Antiseri, sobre o assunto:




            “A virtude – à qual em última análise a ‘moral provisória’ conduz – identifica-se com a vontade do bem e esta com a vontade de pensar o verdadeiro, que, sendo verdadeiro, também é bem. Com toda razão, R. Lefebre destaca que Descartes pretende ‘utilizar a ação para aperfeiçoar a razão e utilizar a razão para aperfeiçoar a ação: essa é a fórmula da sabedoria concebida como elevação do pensamento na vida e da vida no pensamento’. Se a liberdade como necessidade ‘é o mais baixo grau de liberdade’, a liberdade como necessidade é o seu grau mais elevado, porque se identifica com a verdade, alcançada e proposta pela razão. Se é verdade que é preciso pensar segundo a verdade e viver segundo a razão, para Descartes é mais triste perder a razão do que a vida, já que neste caso se perderia a razão da vida. Assim, o eixo da reflexão e da ação se desloca do ser para o pensamento, de Deus e do mundo para o homem, da revelação para a razão, novo fundamento da filosofia e constante ideal normativo da ação” ( Historia da Filosofia, Vol. 2, Quarta Parte, Cap. VII, 12, p. 387, São Paulo, Paulus, 1990, 8ª  edição, 2007).





                 Em nossas considerações finais gostaríamos de dizer algumas palavras sobre o “argumento ontológico” que Descartes usa para provar a existência de Deus. Este argumento diz que em Deus, essência e existência se identificam. Seus (de Deus) atributos implicam Sua existência. Mas, para isso, teríamos de explicar, didaticamente, o que seria uma “essência”. O que temos lido até hoje sobre “essência” pode implicar tudo, menos clareza. Espero, em outra oportunidade, fazer uma pequena exposição didática sobre o assunto, acrescentando mais algumas páginas a esse texto sobre Descartes ou em artigo inserido noutro contexto.






7- PALAVRAS E EXPRESSÕES EM LATIM E ABREVIATURAS



A priori – anterior à experiência; independente da experiência; puro, sem mescla de empiria (seu antônimo é a posteriori).

Apud – (abreviatura: ap) – em, dentre; empregamos quando damos referências ou citações que não são tiradas diretamente da fonte original.

Cf. – confira, confronte.

Cogito, ergo sum (em francês: Je pense, donc je suis) – penso, logo existo.

Idem – (abreviatura: id) – o mesmo; refere-se ao autor antes mencionado.

In – em, dentro.

Op. cit. – (plural: opp. citt.) – abreviatura de opus citatum – obra citada. Plural: opera citata – obras citadas.

Passim – e alhures, e em outros lugares; a cada passo; aqui e acolá; com frequência.


Verbi gratia – por exemplo.




8 – BIBLIOGRAFIA



Além da edição cuidada por Charles Adam et Paul Tannery, e outras, citadas no corpo deste trabalho, acrescentamos ainda:



Brochard, Victon – Do erro (tradução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso, Fortaleza-Ceará, EdUECE, 2016 ( existe uma tradução portuguesa publicada pela Atlântida Editora, Coimbra-Portugal, 1971).

Fragoso, Emanuel Angelo da Rocha – O método geométrico em Descartes e Spinoza, Fortaleza-Ceará, EdUECE, 2011.
Alquié, Ferdnand – A filosofia de Descartes -Porto-Portugal, Editorial Presença/Martins Fonte, 1980.
Rodis-Lewis, Geneviève – Descartes e o Racionalismo – Porto-Portugal, Rés, s/d.
VáriosGalileu, Descartes e o mecanicismo, Lisboa, Gradiva, 1987.
Sartre, Jean-Paul – A liberdade cartesiana, in Situações I, Publicações Europa-América, sem local, l968.
Marx/Engels – A Sagrada família (especialmente o cap. VI, letra d: Batalha crítica contra o Materialismo Francês), São Paulo, Editora Morais, 1987.

Obs:. este texto sobre Descartes estará em breve disponível ao público no meu blogger Noé Martins de Sousa, onde já estão:  “A filosofia de Locke”; “A filosofia de Leibniz”; “I Simpósio cearense de filosofia do direito” ( sobre A filosofia do direito de Kant, texto publicado também pela revista eletrônica “Praxis Jurídica”, sob a coordenação do Dr. Acelino Pontes – professor da UFC); “Monografia de Mestrado em Filosofia” (sobre  A Filosofia de Kant, também publicada em livro pela EdUECE); “Artigo sobre Alcântara
Nogueira” (sua interpretação de Spinoza, também publicado na revista  CONATUS – sob a coordenação do Dr:. Emanuel Ângelo da Rocha Fragoso - EdUECE); “Carta aberta aos professores da UECE, UVA e URCA”. Em breve, publicarei mais textos, de preferência, textos paradidáticos, especialmente no campo da Filosofia.

Professor Noé Martins de Sousa

Fortaleza, 17 agosto de 2017.

Post-scriptum - meu artigo sobre a Filosofia de Berkeley está pronto. Falta só a revisão. Em breve estará no meu blogger Noé Martins. Muitos outros virão, se minha saúde e minhas obrigações o permitirem. A finalidades desses meus escritos é apenas a divulgação da cultura filosófica, de maneira paradidática, sem o tecnicismo da academia (que conheço, porque fui professor universitário) e sem a vulgaridade de alguns divulgadores culturais. Obrigado, tudo de bom.