A FILOSOFIA DE BERKELEY
A FILOSOFIA
DE BERKELEY
NOÉ MARTINS DE SOUSA
Professor de Filosofia
da Universidade Estadual do Ceará
UECE - de 12/08/1981 a 26/05/2012
Fortaleza – 11/04/2018
A FILOSOFIA DE BERKELEY
George Berkeley nasceu perto Thomastown, Irlanda, em 1685 e
faleceu em Oxford no ano de 1753. Foi bispo da Igreja Anglicana e viajou pela
Inglaterra, França e Itália. Em 1721, mudou-se para a América do Norte onde
pretendia fundar uma Seminário, mas fracassou por falta de recursos. No
entanto, a cidade de Berkeley, na Califórnia, às margens da baía de San
Francisco, recebeu este nome em sua homenagem.
Sua
filosofia combate radicalmente o materialismo e acaba por cair no idealismo
objetivo, reduzindo o mundo exterior a puras ideias eternas que se originam da
inteligência de Deus.
Principais
obras: Treatise concerning the Principles
of Human Knowledge (“Tratado sobre os princípios do conhecimento humano” –
1710. Esta obra ficou inacabada); Dialogues
betwen Hylas and Philonous in
opposition to Sceptics and Arheists (“Diálogos entre Hylas e Filonus em
oposição aos céticos e ateístas” - 1712), sendo, evidentemente, pelos nomes,
Hylas o defensor da matéria e Filonus o defensor do espírito”. E outras obras.
QUALIDADES SECUNDÁRIAS
E QUALIDADES PRIMÁRIAS
George Berkeley nega a existência da matéria a fim de mostrar
a necessidade da existência de Deus. Sua conclusão final é de que só existem Deus e espíritos. Além disso, existem as ideias na mente de Deus, de onde
se projetam em direção à mente dos homens. Ao invés de cair, coerentemente, no idealismo
subjetivo (e, ainda mais coerentemente, no solipsismo), Berkeley acaba desembocando no idealismo objetivo
e, portanto, numa espécie de platonismo.
Começa ele estudando
as qualidades dos objetos, especialmente no início do “Tratado sobre os
Princípios do Conhecimento Humano” e no primeiro dos “Três diálogos entre Hylas
e Filonous”.
As
qualidades secundárias (dos “objetos”) são as ideias sensíveis, como a cor, o cheiro
(odor), o calor etc. (São aquelas que correspondem diretamente aos nossos cinco
sentidos: visão, olfação etc.). Elas não correspondem a nenhum arquétipo ou
modelo externo, existente “fora do espírito”. Já as qualidades primárias
deveriam – pelo menos segundo alguns sábios – corresponder a modelos externos e
serem objetivas. Essas qualidades, juntas, seriam, conforme a tradição, sustentadas
por objetos externos, que são os suportes desses modos ou acidentes: “está
assente que as qualidades ou modos das coisas nunca existem realmente cada uma
por si em separado, mas em conjunto, várias no mesmo objeto” (Tratado, 1980, 7, p. 6).
Mas Berkeley
afiança que as qualidades primárias são formadas a partir das qualidades
secundárias e, portanto, são subjetivas também, não havendo razão para qualquer
diferença entre umas e outras:
“houve quem fizesse distinção
entre qualidades primárias e secundárias, contando nas primeiras a
extensão, forma, movimento, repouso, solidez ou impenetrabilidades e o número,
nas segundas, as qualidades sensíveis, como cor, som, sabor, etc. Destas
concordam não terem semelhança com algo existente fora do espírito, ou impercebido,
mas pretendem que as qualidades primárias sejam imagens de coisas existentes
fora do espírito em uma substância e que dão o nome de matéria. Por matéria há
de entender-se uma substância inerte e não sensível em que subsistem atualmente
extensão, figura e movimento. Mas, como vimos, é evidente que a extensão,
figura e movimento são apenas ideias existentes no espírito, e a ideia só pode
assemelhar-se a outra ideia; portanto, nem elas nem os seus arquétipos podem
existir em uma substância incapaz de perceber. De onde a verdadeira noção da
chamada matéria ou substância corpórea envolver
contradição” (Tratado... 1980, 9, pp.
14-15). (Cf. Tratado, 1980, 10, p.
15). [Cf. nota 1. Ver todas essas notas,
em negrito, no final deste texto. Cf. significa “confira” ou “confronte”,
“compare”.].
Por isso não
deve existir distinção entre qualidades primárias e secundárias; ambas são
sensíveis e particulares, não havendo em
consequência ideias gerais abstratas.
Isto é a aceitação do Nominalismo.
Conforme o Nominalismo, uma ideia geral é apenas um nome que se aplica a uma coleção de ideias particulares da mesma
espécie ou semelhança:
“Observando como as ideias vem a
ser gerais mais facilmente o entenderemos das palavras. Note-se que eu não nego em absoluto a existência de
ideias gerais mas apenas a de ideias gerais abstratas [negrito nosso];
nos passos citados, quando se fala de ideias gerais, supõe-se sempre formadas
por abstração (...). Ora, se quisermos atribuir sentido às nossas palavras e
falar somente do que podemos conceber, concordaremos – creio eu – que uma ideia
particular, quando considerada em si mesma, se torna geral quando representa
todas as ideias particulares da mesma espécie. Suponhamos para exemplificar, um
geômetra que ensina a dividir uma linha em duas partes iguais. Traça, por
exemplo, uma linha preta de uma polegada de comprimento; é uma linha
particular; no entanto, pelo significado geral, representa todas as linhas
possíveis; de modo que o demonstrado quanto a ela fica demonstrado para todas
as linhas ou, por outras palavras, para a linha em geral. E assim como a linha
particular fica geral por um símbolo, o nome
linha, que em absoluto é particular,
como símbolo fica sendo geral. E, como para o caso particular, a generalidade
não provém de ser um sinal de uma linha geral abstrata, mas de todas as linhas
particulares possíveis, também no segundo deve pensar-se que a generalidade provém da
mesma causa, isto é, das várias linhas particulares indiferentemente denotadas”
( Tratado... 1980, p. 8, op. cit.) [Cf. nota 2].
Por outro
lado, se toda ideia sensível só existe no sujeito, como admitir a realidade de
algo “fora de nós” (ou “fora de mim”) que provoque ou cause a sensação? A percepção sensível – como mais tarde o reafirmaria
Schopenhauer – é subjetiva. Tal percepção:
“permanece como um mero processo
dentro de nós, inteiramente assentado em solo subjetivo e nada inteiramente
diferente dela, independente dela, pode ser introduzido como uma coisa-em-si”[1].
Deste modo, fica problemática a questão de saber se existe ou
não algo fora de nós (fora da nossa mente) que corresponda às nossas ideias:
“da aparência dos objetos sensíveis, ou da maneira como eles percepcionam, não
há o direito de tirar a ilação de que eles tem existência sem ser na mente” (Três diálogos... 1, p. 71, 1980)[2]
[Cf. nota 3].
Somente se a
mente pudesse perceber as duas coisas, a “coisa-em-si” e a “coisa-em-nós” (=
sensível), para compará-las e distingui-las, é que se poderia dizer que para
cada tipo de ideia [Cf. nota 4]
residente no espírito, fora de nós, haveria um modelo correspondente, um
paradigma “fora de nós”, no chamado “mundo exterior”. Como tal não ocorre, não existe distinção
entre percepção e coisa percebida, objeto e consciência do objeto. O que existe
é uma identidade entre as ideias de sensação (imediatas) e ideias de reflexão
(mediatas) e, portanto, redução das supostas ideias abstratas a ideias
sensíveis. Ou melhor, as ideias universais
abstratas não existem [Cf. nota 5].
Em conclusão,
não há distinção entre qualidades primárias e secundárias, as primárias são
redutíveis a estas últimas, pertencendo ambas, portanto, à subjetividade
pessoal (ou coletiva, a intersubjetividade, no caso de haver outra(s)
mente(s) além da minha). Tais qualidades não correspondem a qualquer modelo ou
arquétipo externo. Tudo que existe, existe na mente, inclusive o espaço e o
tempo. “O tempo – diz Émile Bréhier, expondo Berkeley – é uma sensação e reside
unicamente no espírito. O mesmo ocorre com o espaço” (História da Filosofia, II, fascículo 2, p. 36, São Paulo, Editora
Mestre Jou, 1978). Isto chama-se Idealismo, que é contrário ao Materialismo,
pois esta última filosofia aceita a existência efetiva de objetos subsistindo
“fora” da nossa mente. É o que diz Lênin:
¹ Crítica da Filosofia Kantiana, p.
102, in “Os Pensadores”, São Paulo,
Abril Cultural, 1980. (Esse texto citado pertence à obra de Arthur Schopenhauer,
“O mundo como vontade e representação” – Die
Welt als Wille und Vorsteilung,
capítulo intitulado Kritik der kantischen
Philosophie, pp. 455-580, Atlas Verlag Köln, s/d. Um exemplar deste livro,
no original alemão, encontra-se na biblioteca da Casa de Cultura Germânica da
Universidade Federal do Ceará – UFC - onde o consultei no final do século passado.).
² Cf. Três diálogos... Primeiro diál., p. 72, 1980, in nota.
“as duas linhas fundamentais das concepções filosóficas ficam
aqui consignadas com franqueza, a clareza e a precisão que distinguem os
filósofos clássicos dos inventores dos ‘novos’ sistemas em nosso tempo. O
materialismo: reconhecimento dos ‘objetos em si’ ou fora da mente; as ideias e
as sensações são cópias ou reflexos destes objetos. [E] A doutrina oposta
(idealismo): os objetos não existem ‘fora da mente’; os objetos são
‘combinações de sensações’ (Materialismo y empiriocriticismo”, p. 17, vol. 14
das “Obras completas, 40 vols., Madrid, Akal Editor, 1974-1977-19780).
E mais na
frente, Lênin continua: “O sofisma da filosofia idealista consiste em
considerar a sensação, não um vínculo da consciência com o mundo exterior, mas
como um tabique, um muro que separa a consciência do mundo exterior; não como
uma imagem de um fenômeno exterior correspondente à sensação, mas como ‘o único
existente’” (idem, pp. 42-43).
A NEGAÇÃO DA MATÉRIA
Como vimos, diante do exposto, a ideia de substância
(substrato) material, algo que sustenta as qualidades sensíveis, ou seja,
nossas representações ou ideias, fica problemática. Berkeley nega sua
realidade, pois para ele toda existência, todo ente, consiste em perceber e ser percebido.
Locke dizia:
percebemos imediatamente somente nossas ideias. Berkeley, dessa afirmação,
deduz: se percebemos imediatamente apenas nossas ideias, então somente elas
existem. A existência do espírito consiste em perceber as coisas (= ideias) e a
existência das coisas (= ideias) consiste em serem percebidas, o seu ser é a sua percepção (“o seu esse est percipi” – Tratado... 3, p. 13, 1980) [Cf.
nota 6] Mais claramente escreve Berkeley no terceiro diálogo entre Hilas e
Filonous:
“ que não há substância, a não
ser o espírito, na qual as ideias passam a ter existência – isso é para mim uma
coisa imediatamente percepcionada. É como um modo ou propriedade, pois
manifesto que somente o espírito pode ser o substractum de tais qualidades, substractum esse no qual existem, não como um modo ou propriedade,
mas como uma coisa percepcionada naquilo que a percepciona. Nego que exista,
por conseguinte, um substractum
impensante dos objetos sensíveis e que haja, portanto, nessa mesma acepção,
substância material” (Três diálogos
..., p. 102, 1980). [Cf. nota 7]
Mas se a realidade das coisas consiste em serem percebidas,
como explicar, por exemplo, que um homem, ao sair para a rua, tenha certeza de
que sua casa continuará a ter existência para que o motive a regressar ao mesmo
lugar? Poder-se-á apelar para o vizinho a fim de que aceite vigiar a casa na
ausência de seu dono, para ela não desaparecer. E se não houver vizinho por
perto, que poderá ocorrer com a casa em questão?
Quer dizer,
segundo essa filosofia, meus móveis e minha sala só existem quando eu os estou
percebendo. Se saio da sala e vou para a cozinha tomar café, a sala e seus
móveis certamente desaparecerão, o que me acarretará danosos prejuízos. Mas
Berkeley resolve essa dificuldade apelando para Deus.
DEUS E A POSSIBILIDADE
DE REGULARIDADE DOS ACONTECIMENTOS
Por outro lado, nem sempre os homens ficam vigiando suas
casas, suas salas, seus móveis e suas propriedades. Todas as coisas, na minha
ausência, não existiriam. Mas Deus, com sua onisciência e onipresença, está
sempre percebendo as ideias (as coisas), pois precisamente é o criador delas e
elas residem sempre em sua mente. Fica assim resolvida a questão da
persistência ou permanência das coisas:
“Mas embora muitas coisas nos
convençam da sua produção por agentes humanos, ninguém ignora que as chamadas
obras da natureza, isto é, a maior parte das nossas sensações e ideias, não são
produzidas pela vontade humana nem dependentes dela. Há, pois, algum outro
Espírito que as causa, visto não poderem subsistir por si (v. § 29). Mas,
consideradas atentamente a ordem, a regularidade, a concatenação das coisas
naturais, a surpreendente magnificência, beleza e perfeição das maiores partes
da Criação, o requintado traço das menores, a exata harmonia e correspondência
do todo e principalmente as nunca bastante admiradas leis do prazer e dor, os
apetites e paixões dos animais; considerando tudo isto e meditando no sentido e
valor dos atributos Único, Eterno, Infinitamente Sábio, Bom e Perfeito,
claramente percebemos que pertencem àquele Espírito ‘que tudo realiza em tudo’
e ‘por quem tudo existe’” ( Tratado,
146, p. 42, 1980) [Cf. nota 8].
Entretanto, o problema não é somente a existência, mas também
o da coerência e regularidade dos acontecimentos. Pela filosofia materialista,
pressupõe-se a regularidade e coerência das ideias pela correspondência
biunívoca entre elas e os objetos, já que os objetos são tidos e aceitos como
existentes por si mesmos e que possuem regularidade e coerência por sua própria
natureza. Os objetos consistem e persistem como autônomos em sua própria
existência. Mas se eu nego a realidade externa desses objetos, o substrato
material – o que então ficaria por trás das ideias para que elas tenham consistência
e regularidade? Poderia acontecer que o mundo fosse um “caos”: ora eu
perceberia um cavalo com quatro patas, ora com cinco, ora com asas, ora com
chifres etc. Quem garantiria, portanto,
as leis da natureza, a ciência, se o princípio da causalidade, por exemplo
– como o próprio Berkeley admite (ver Tratado...
p. 19, op. cit., 1980) [cf. nota 9]
– não serve para garantir as referidas leis da natureza, isto é, as leis de
relação entre as ideias? Mais uma vez, Berkeley tem que recorrer a Deus para
resolver essas dificuldades:
“embora Ele [Deus] se esconda aos
olhos dos sensuais e preguiçosos que não querem pensar nada é mais legível para
um espírito imparcial e atento do que a presença íntima de um Espírito
onisciente que modela, regula e sustenta o sistema dos seres” (idem, 151, p.
43).
Deus não
precisaria criar a matéria como algo intermediário entre Ele e os homens,
certamente por razões de economia, de racionalidade. Mais prático seria Deus
colocar as ideias em nós, diretamente (cf. Tratado,
150-151, p. 43, 1980).
Se a mente
humana é um mero receptor dos sentires, dos signos postos em nós por Deus, se
somos “somente um sistema de ideias flutuantes” (como objeta Hilas contra
Filonous, nos Diálogos...), então não
existe um sujeito epistêmico e não passamos, nós, seres humanos, de simples
receptores (passivos), como um aparelho de televisão. Essa filosofia acarreta
uma série de dificuldades, das quais mostraremos algumas a seguir.
Berkeley faz
distinção entre as ideias criadas por Deus (as ideias sensíveis) e as ideias
criadas pelo homem, que são as quimeras ou ficções. As primeiras estão em nós
independentemente de nossa vontade e são vivas e fortes, distintas, fixas e
regulares. Tais “ideias”, relacionadas entre si, compõem as leis da Natureza e,
como se disse, não dependem da vontade humana. Por outro lado, as quimeras da
imaginação são confusas, fracas e irregulares e só por isso podemos distinguir
[debilmente] a realidade da ficção. Ora, para sermos rigorosos, não saberíamos
em verdade distinguir entre o real e sua rememoração ou entre o real e o
imaginário; apenas saberíamos – como o diz Condillac – que existem “diferentes
estados da alma”. Acontecem diferentes graus de “realidades” ou vivacidades e regularidades
das coisas e, como consequência, ficaria difícil conhecer suficientemente essa
graduação para não confundir exatamente onde termina a verdadeira realidade e começa a ficção, a imaginação, a recordação
ou o sonho. Seria mais coerente dizer que possuímos diferentes estados ou
modificações da alma: alguns estados fortes e distintos (distintos =
diferenciados entre si com nitidez), outros mais tênues, opacos, fracos, outros
mais confusos, uns mais regulares e outros menos regulares – porém tudo isso
com imensa dificuldade de saber exatamente o que é realidade ou ficção.
Outra
dificuldade seria distinguir o pensamento de Berkeley do ocasionalismo de
Malebranche. Em verdade, a filosofia de um não se distingue da do outro. Quando
se refere ao tema das relações entre Deus e o homem. Por outro lado, como negar
que o pensamento de Berkeley não passa de uma nova versão ou variedade de
platonismo? Se em Platão existe um mundo das Ideias perfeitas, estática e a
priori, residentes no mundo transcendente, para Berkeley essas ideias
ocorrem na “mente” de Deus. Mas se é assim, cada ideia é um ente metafísico
singular – apenas transmitida como se fosse um sinal (ou símbolo) dirigido para
o entendimento humano – o que implicaria realmente que não existem ideias gerais
abstratas, mas apenas ideias singulares, o que justificaria plenamente o nominalismo de Berkeley.
Ademais,
todas as ideias (originais) estão na mente de Deus, então a ideia de homem também está na mente de Deus; e, se é assim, então
por que não dizer claramente que os homens não passam de ideias na mente de
Deus? Por que não dizer que o mundo inteiro não é mais do que um sonho da
Divindade – numa palavra, por que não admitir explicitamente o Panteísmo?
Um outro
ponto confuso é que se as ideias postas na mente dos homens são cópias ou
signos das Ideias (originais)
residentes na mente de Deus – que são perfeitas, eternas e imutáveis – então o
movimento dos corpos não ocorre. Quer dizer, nossas ideias (= coisas) são
inativas e consequentemente as leis da Física, inexplicáveis. Isto é, não
existiria a Ciência. E, de fato, Berkeley nega, por exemplo, o princípio de
causalidade, espinha dorsal da Física, alegando que ele não vale para as ideias
e que somente Deus é verdadeiramente uma
causa das coisas. A ciência em Berkeley é a Providência de Deus.
Uma última
dificuldade diz respeito ao problema da necessidade
(na Natureza) e da liberdade humana,
e consequentemente, ao problema moral do bem e do mal, especialmente para
Berkeley, que era bispo. Se Deus é o responsável pela permanência e
regularidade da realidade, isto é, responsável pelas leis da Natureza, pela
criação e manutenção, funcionamento e destino do mundo, como então não cair na
doutrina do predestinismo, do fatalismo – já que Deus é responsável pela
“estabilidade, ordem e coerência (...) que formam cadeias ou série de admirável
conexão”? (Tratado... 30, p. 18, op. cit., 1980). Então, Deus, como objeta
Hilas no Terceiro Diálogo, é “ao mesmo tempo o autor do assassínio, do
sacrilégio, adultério, e dos demais pecados igualmente atrozes” (op. cit., p.
102, 1980).
O homem,
numa palavra, não seria livre para escolher entre o bem e o mal. Para resolver
esse problema, Berkeley não teve outra saída se não negar a existência do mal,
reduzindo-o a mero acidente particular que, no fundo, não é realmente um mal,
posto que no cômputo geral contribui para o bem, em sua totalidade:
“Quanto à mistura de dor e
inutilidade do mundo, segundo as leis da natureza e as ações dos espíritos
finitos e imperfeitos, é no estado atual indispensavelmente necessário ao
bem-estar. Mas a nossa visão é próxima demais. Por exemplo, a ideia de uma dor
particular chamamo-lhe (sic!) mal. Entretanto, se ampliarmos a visão até
abranger os vários fins, conexão e dependência das coisas, ocasiões e
proporções em que nos afetam a dor e o nosso prazer, a natureza da liberdade
humana e o nosso fim no mundo, teremos
de reconhecer, nas coisas que em si mesmas parece o mal, a natureza do bem, quando consideradas
no conjunto do sistema dos seres” (Tratado...,
163, p. 44, 1980. Negrito nosso).
Exemplo: um
curativo num paciente pode doer, mas isso não é um mal, pois visa sua cura e
esta dor efêmera é apenas uma passagem de uma mudança de um estado para outro, para
um estado superior, visando o prazer da saúde, que é um bem maior.
Isto é, os
males particulares, no fundo, contribuem para o bem em geral, de modo que tudo
vai bem, como diria Leibniz, que sustentou que esse é o melhor dos mundos
possíveis [ver A Filosofia de Leibniz,
de minha autoria, no meu blog Noé Martins].
Mesmo
negando a existência do mal, quem adotar a filosofia de Berkeley – ou a de
Leibniz, ou ainda a de Malebranche e outras similares – não poderá escapar do
fatalismo ou da predestinação. O problema aqui não é só conciliar a liberdade
com a necessidade, mas a liberdade humana com a presciência de Deus, isto é, a
Onisciência e a Onipotência de Deus, que tudo cria e governa. Se o homem adota
essa filosofia e cai no necessitarismo,
como salvar seu livre arbítrio, a responsabilidade por seus atos – enfim, como
salvar a Moral?
Em
filosofia, é comum perguntarmos mais do que somos capazes de responder.
EXPRESSÃO E PALAVRA EM
LATIM
Esse est percipi – ser é ser
percebido (quer dizer, “existir é ser percebido”). Quer dizer, o objeto só
existe como forma de percepção.
Substractum – substrato; o que está por baixo; aquilo que sustenta
os atributos. Assim como o tronco de uma árvore sustenta os galhos e folhas.
TEXTOS SELETOS DE
BERKELEY
Esses textos são selecionados como uma maneira de fundamentar
o nosso escrito acima, com as próprias palavras de Berkeley, a fim de
demonstrar que nossa exposição de sua filosofia não é uma interpretação
meramente cerebral, mas se baseia no que ele realmente escreveu.
NOTA – 1 – “Que alguém reflita e veja se pode
abstrair e conceber a extensão e movimento de um corpo sem todas as outras
qualidades sensíveis. Por mim, não consigo formar ideia de um corpo móvel e
extenso sem dar-lhe alguma cor ou outra qualidade sensível das que se reconhece
existirem só no espírito. Em resumo, extensão, figura, movimento são
inconcebíveis separados das outras qualidades. Onde existem, portanto, as
outras qualidades sensíveis, essas devem existir também, isto é, no espírito e
em nenhuma outra parte” (Tratado---
10, p. 15, 1980, op. cit.). Quer dizer, para Berkeley as qualidades
secundárias são inseparáveis das qualidades primárias e, se umas são
subjetivas, as outras também o são. Todas essas qualidades só existem no
espírito (subjetivamente).
NOTA – 2 – “Ora, a fonte desta noção
privilegiada [a de ideia abstrata] parece-me ser a linguagem. Certamente nada
menos do que a razão poderia ter dado origem a uma opinião universalmente
aceita. Vê-se isto, além de outras razões, na clara confissão dos mais
competentes defensores das ideias abstratas que as reconhecem devido à
necessidade de denominar; de onde a consequência clara: se não houvesse o
discurso ou os sinais universais, não teria havido ideia de abstração. Vejamos
como as palavras contribuem para este erro. Primeiro, pensa-se que cada nome
tem ou deve ter um significado definido e preciso, que leva o homem a pensar
que há certas ideias abstratas determinadas constitutivas da verdadeira e única
significação de cada nome geral; e só por intermédio dessas abstratas pode um
nome geral significar uma coisa particular. Pelo contrário, não há significação
precisa e definida ligada ao nome geral, todos eles próprios para significar
indiferentemente grande número de ideias particulares. Isto decorre
evidentemente do que ficou dito e uma breve reflexão o põe a claro. Pode
objetar-se que a cada nome definível está por isso mesmo restringido a certa
significação. Por exemplo, o triângulo define-se ‘uma superfície limitada por
três linhas retas’ e por este nome denota-se uma certa ideia e não outra. A
isto respondo que na definição não se diz se a superfície é grande ou pequena,
branca ou preta, se os lados são longos ou curtos, iguais ou desiguais, nem os
ângulos segundo os quais se inclinam; em tudo pode haver grande variedade, e,
portanto, nenhuma ideia determinada limita a significação da palavra triângulo.
Uma coisa é manter constante a definição de um nome, outra é fazer que ele
represente sempre a mesma ideia; uma é necessária, outra inútil e impraticável”
(Tratado... 18, p. 10, 1980).
“Filonous: Porém, é uma máxima universalmente recebida que tudo que existe é particular” (Primeiro Diálogo... p. 64, 1980).
NOTA - 3 – “Como saber que um sentir é uma
imagem, que ele é representação de uma coisa incógnita, que nós não podemos
sentir como tal? A frase de uma coisa imagem de uma outra ou representativa
dessa outra somente assumirá significado efetivo se nos for possível a operação
mental de nos apresentarmos a nós mesmos as duas coisas, a fim de as podermos
comparar entre si. Ora, como nos apresentaremos essa matéria abstrata, para por
aí compararmos com o nosso sentir? A operação mental é aí impossível; ora, a
efetiva determinação de uma coisa é a operação mental que constitui a coisa.
Chega-se por argumentação análoga à noção idealista do que seja verdade: a
noção da verdade como coerência interna, e não como adequação da ideia à coisa”
(Primeiro Diálogo... p. 72, op. cit.,
in nota, 1980).
NOTA – 4 – Berkeley entende por “ideias os
objetos imediatos do entendimento; se denotais por esse termo as coisas
sensíveis que não podem existir impercepcionadas, fora da mente – então aquelas
coisas são de fato ideias” (Terceiro
diálogo..., 1980). As ideias dos sentidos são mais fortes, vivas e
distintas do que as da imaginação; tem estabilidade, ordem e coerência e não
são produzidas por acaso como frequentemente as que são efeito da vontade
humana, senão que formam cadeias ou série de admirável conexão; prova
suficiente da sabedoria e benevolência do Autor [Deus]. Ora, as regras ou
métodos estabelecidos segundo os quais o espírito excita em nós as ideias dos
sentidos são as chamadas leis da
natureza; conhecemos pela experiência que tais ou tais ideias são
acompanhadas de tais ou tais outras no curso ordinário das coisas” (Tratado..., 30, pp. 18-19, 1980). “As
ideias impressas nos sentidos pelo Autor da natureza chamam-se objetos reais; e
as excitadas pela imaginação, por menos regulares, vivas e consistentes,
designam-se mais propriamente por ideias
ou imagens de coisas que copiam ou
representam. Mas as nossas, embora nunca fossem vivas e claras, são, no
entanto, ideias, isto é, existem no espírito ou são por ele percebidas como as
que ele mesmo forma. Às ideias dos sentidos atribui-se realidade maior, por
mais fortes, ordenadas e coerentes do que as criadas pelo espírito; isso não
prova que existam fora dele. São também menos dependentes do espírito ou
substância pensante que as percebe porque as provoca a vontade de um espírito
mais poderoso; mas são ideias e nenhuma ideia forte ou fraca pode existir senão
no espírito que a percebe” (Tratado...33,
p. 19, 1980. Cf. item 34 da mesma página).
NOTA – 5 – “Julgo ter mostrado a
impossibilidade das ideias abstratas. Considerai o que delas disseram os seus
melhores defensores. Finalmente indiquei-lhe a origem, que é evidentemente a
linguagem” (Tratado... 21, p. 11,
1980). “Consideremos no parágrafo 13 a unidade em abstrato. Desse e da
Introdução segue-se que não existe essa ideia. Mas, sendo o número uma ‘coleção
de unidades’, conclui-se não haver unidade em abstrato; não há ideias de número
em abstrato significadas por nomes numerais e figuras. Portanto, as teorias da
Aritmética, se são abstratas de nomes e figuras e também de uso e de prática,
assim como das coisas particulares enumeradas, pode supor-se nada terem com o
objeto; donde se vê como toda a ciência dos números é subordinada à prática e
como se torna vazia e pueril quando considerada mera especulação” (op. cit.,
120, p. 37, 1980). (Cf; com edição desta obra, da Editora Escala, p. 101, São
Paulo, s/d.)
NOTA – 6 – A uma possível crítica a essa teoria,
como se bebemos e comemos ideias, Berkeley assegura: “mas afina – dir-se-á –
parece bem singular dizer que comemos, bebemos ou vestimos ideias. Concordo.
Não tendo a palavra ‘ideia’ no uso vulgar o sentido de combinação de qualidades
chamadas ‘coisas’, é certo que tal expressão na fala corrente seria estranha e ridícula,
mas isso nada tem com a verdade da proposição, correspondente apenas a firmar
que comemos e vestimos coisas percebidas imediatamente, pelos sentidos. A
aspereza ou suavidade, a cor, o sabor, o calor, a figura e quantidades análogas
que combinadas constituem as várias espécies de víveres e de vestuários, vimos
que só existem no espírito percipiente; e isto é tudo que se entende ao
chamar-lhes ‘ideias’, palavra que, se fosse tão usada como ‘coisas’, não seria
mais singular ou ridícula do que ela. Não discuto a propriedade, mas a verdade
da expressão. Portanto, se concordardes comigo que comemos, bebemos e vestimos
objetos dos sentidos, inexistentes se não percebidos ou fora do espírito,
concederei logo que é mais próprio e acorde com o costume chamar-lhes coisas em
vez de ideias” (Tratado..., 38, p.
20, 1980).
NOTA – 7 – Quando pensávamos que Berkeley cairia
no idealismo subjetivo, eis que ele, para assegurar a realidade das ideias, deságua
no idealismo objetivo, apelando para Deus em cuja mente existiriam tais ideias:
“quando nego que os sensíveis existem sem ser na mente, não entendo em
particular a minha mente, senão que toda e qualquer mente. As coisas têm – é
bem manifesto – existência exterior à minha mente, pois acho pela experiência
que não dependem dela. Há, portanto, outra mente na qual existem nos intervalos
das percepções que tenho delas – assim como existiam antes de ser eu nascido e
hão de continuar a existir, ainda, depois do meu suposto aniquilamento. E como
a proposição é verdadeira naquilo que diz respeito a todos os outros espíritos
criados e finitos, segue-se necessariamente que há uma Mente onipresente e
eterna, que conhece e compreende todas as coisas e no-las apresenta à vista de
uma certa maneira, e de acordo com certas regras – regras assim por ela
constituída, às quais nós outros damos o nome de leis da natureza ( Terceiro diálogo..., pp. 97-98, op.
cit., 1980).
Como se
nota, a mente de Deus, onde estão essas ideias (objetivas, como no platonismo,
mas não sendo materiais), funciona em relação ao homem como as categorias
kantianas, categorias estas que impõem regras e leis à natureza, garantindo
assim a regularidade desse mundo, dotando-o de inteligibilidade, e, portanto,
garantindo a legitimidade da ciência, que é derivada da onisciência de Deus.
NOTA – 8 – “Assim é evidente que conhecemos Deus
imediatamente como outro espírito, distinto de nós. Podemos afirmar [que] a sua
existência é mais evidente que a dos homens, porque os efeitos da natureza são
infinitamente mais numerosos e consideráveis que os dos agentes humanos. Nenhum
sinal revela um homem ou efeito por ele produzido que não revele mais
fortemente o ser de um Espírito, autor da natureza. Porque é evidente que em
relação a outras pessoas a vontade só tem por objeto o movimento corpóreo; mas
que esse movimento seja acompanhado por uma ideia ou a excite no espírito de
outro, depende inteiramente da vontade de Criador. Só Ele ‘que tudo sustenta
com o verbo do seu poder’, mantém a correlação entre espíritos, capacitando-os
para receberem a existência uns dos outros. E esta pura e clara luz tudo ilumina
e permanece invisível” (Tratado...,
147, p. 42, 1980. Cf. os itens 150, 151, etc., pp. 43-44 desta obra citada. Cf.
Segundo diálogo, op. cit., p. 81,
1980).
NOTA – 9 – As leis da natureza nos dão “uma
espécie de antevisão que nos permite regular a nossa ação para utilidade da
vida. Do contrário estaríamos sempre perplexos; não saberíamos como proceder
para conseguir o menor prazer ou evitar a menor dor dos sentidos; que o alimento
nutre, o sono restaura e o fogo aquece; que semear no tempo próprio é o caminho
para fazer a colheita; e em geral que certos meios são adequados para chegar a
certos fins, sabemo-lo não por alguma conexão entre as ideias, mas por
observações de leis regulares da natureza, sem o que tudo seria confusão, e o adulto
não saberia conduzir-se melhor nos negócios do que um recém-nascido” (Tratado..., 31, p. 19, 1980). “Este
trabalho insistente e uniforme que tão claro mostra a bondade e sabedoria do
espírito soberano cuja vontade constitui as leis da natureza, está tão longe de
conduzir para Ele os nossos pensamentos, que antes os leva a perseguir causas
segundas. Quando vemos certas ideias dos sentidos constantemente seguidas por
outras, sem o termos feito nós, atribuímos poder e atividade às ideias e
julgamos ser uma causa de outra, embora nada seja mais absurdo e ininteligível.
Assim, por exemplo, tendo visto certa figura luminosa e redonda e ao mesmo
tempo recebida a ideia de sensação chamada calor, concluímos que o sol é a
causa do calor. Do mesmo modo ao perceber o movimento e colisão de corpos
acompanhada de som, pendemos a crer seja este o efeito daqueles” (Tratado..., 32, p. 19, 1980).
Posteriormente,
David Hume, dando continuidade a este tema de Berkeley, também disse que as
impressões (sensíveis) não causam
outras e, quando as vemos juntas, não é
por conexão causal, mas por mera justaposição,
negando assim o princípio de causalidade. Ora, o princípio de causalidade é a
base da ciência. Negá-lo é destruir a ciência.
BIBLIOGRAFIA
Berkeley, George – Tratado sobre os princípios do conhecimento humano. Três diálogos entre Hilas e Filonous em oposição aos
céticos e ateus. In “Os
Pensadores”, São Paulo, Abril Cultural, 1980.
Berkeley, George – Princípios do conhecimento humano (A Treatise Concerning the Principles
of Human Knowledge), São Paulo, editora ESCALA, sem data (s/d).
Berkeley, G. - Tres Diálogos entre Hilas y Filonús, Espasa-Calpe, Buenos Aires,
1952.
Lênin – Materialismo y Empiriocriticismo, in “Obras Completas” (40 volumes: a obra mencionada é o volume 14),
Madrid-Espanha, Akal Editor, 1974-1977-1978. (Obra monumental, doada pelo Autor
à Biblioteca do Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará – UECE
-, juntamente com as obras anteriores, com exceção da obra publicada pela
editora ESCALA).