A FILOSOFIA
DE LOCKE
A FILOSOFIA DE LOCKE
NOÉ MARTINS DE SOUSA
(Professor de Filosofia da
Universidade Estadual do Ceará
de 12-08-1981 a 26-05-2012)
FORTALEZA-CEARÁ – 2016
A FILOSOFIA DE LOCKE
SUMÁRIO
1 - VIDA E OBRAS DE JOHN LOCKE
2 - A TEORIA DO CONHECIMENTO:
2-1- CRÍTICA À TEORIA DAS “IDEIAS INATAS”
2-2- IDEIAS SIMPLES E IDEIAS COMPLEXAS
2.3 –CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A
TEORIA DO CONHECIMENTO DE LOCKE
3 – A FILOSOFIA POLÍTICA – “SEGUNDO TRATADO SOBRE O GOVERNO”
4 - CONCLUSÃO
A FILOSOFIA DE LOCKE
(Professor Noé Martins
de Sousa)
1 - VIDA E OBRAS DE JOHN LOCKE
John Locke, um dos expoentes do
empirismo inglês, nasceu em Wrington, Somerset, em 1632. Estudou em Oxford e em
1665 ingressou no serviço diplomático. Tornou-se conselheiro do conde de
Shaftesbury e morou na França (1668-1670) onde conheceu os cartesianos e
gassendistas. Regressando à Inglaterra, formou-se em medicina em 1674 e, como
estava a serviço do conde de Shaftesbury e este envolveu-se em conspiração
contra o rei Jaime II, teve que fugir para a Holanda em 1683. Depois da
Revolução de 1688, voltou à Inglaterra onde ocupou vários cargos públicos.
Faleceu em Oates, Essex, em 1704.
Suas
principais obras são: Epistola de
tolerantia (Cartas sobre a tolerância - 1689); Two treatises on government (Dois tratados sobre o governo[1]
– 1690), onde defende e sistematiza o Liberalismo; Some thoughts concerning Education (Alguns pensamentos sobre a
Educação – 1693); Reasonableness of
Christianity (Racionalidade do Cristianismo – 1695); An essay concerning human understanding (Um ensaio sobre o
entendimento humano – publicação definitiva em 1690).
Sobre
o “Ensaio a respeito do Entendimento Humano”, Locke escreveu 3 “Esboços”
iniciais: dois em 1671 e um terceiro em 1685, que ficaram conhecidos como Draft A, Draft B e Draft
C. (Draft significa esboço, rascunho, plano). Existe também uma
variante de Draft A escrita por autor
desconhecido, que os editores nomearam de Draft
A 1. No Brasil, a Editora da Folha
de São Paulo, publicou o Draft A na
“Coleção Folha Grandes Nomes do Pensamento” (São Paulo, 2015).
2 – A TEORIA DO CONHECIMENTO
¹ De
modo geral, os editores publicam apenas o “Primeiro Tratado sobre o Governo”,
de Locke, que realmente é o mais importante. Entretanto, no Brasil, a Editora
Martins Fontes publicou uma tradução completa dos dois tratados, em São Paulo,
1998. Nós vamos citar a tradução da Martins Fontes, mas sempre que possível
indicaremos a numeração das páginas correspondentes na publicação de “Os
Pensadores”, São Paulo, Abril Cultural,
1978 e reeditado em outras datas. Podemos citar, eventualmente, esta edição.
Sobre a Teoria do Conhecimento de
Locke, vamos utilizar, essencialmente, sua principal obra sobre o assunto, que
é o Ensaio sobre o entendimento humano.
2- 1 - CRÍTICA
À TEORIA DAS “IDEIAS INATAS”
Locke, na “Carta ao leitor” que, geralmente,
serve de prefácio ao seu “Ensaio sobre o entendimento humano”, faz o seguinte
esclarecimento sobre o objetivo de seu livro:
“se
fosse adequado incomodá-lo com a história deste Ensaio, deveria dizer-lhe que
cinco ou seis amigos, reunidos em meu quarto e discorrendo acerca de assunto
bem remoto do presente, ficaram perplexos, devido às dificuldades que surgiram
de todos os lados. Após termos por certo nos confundidos, sem nos aproximarmos
de qualquer solução acerca das dúvidas que nos tinham deixados perplexos,
surgiu em meus pensamentos que seguimos o caminho errado, e, antes de nós nos
iniciarmos em pesquisa desta natureza, seria necessário examinar nossas
próprias habilidades e averiguar quais objetos são e quais não são adequados
para serem tratados por nossos entendimentos ( Ensaio acerca do entendimento humano, pp. 135-136, edição
brasileira de “Os Pensadores”, São Paulo, Abril Cultural, 1978).
O
livro trata, pois, da origem, dos limites e da validade do conhecimento humano.
Que são ideias? De onde vem nossas ideias? Como se percebe a conveniência ou
discordância entre as ideias? O Ensaio
visa, portanto, “investigar a origem, certeza e extensão do conhecimento humano,
juntamente com as bases e graus da crença,
opinião e assentimento” (Ensaio...,
Introdução, 2, p. 139; cf. Livro IV,
Caps. XIV, XV, XVI).
Locke
começa seu estudo, sua pesquisa, pelas ideias. Ele define a ideia como “o termo mais indicado para
significar qualquer coisa que consiste no objeto do entendimento quando o homem
pensa” (ibidem, 8, p. 148). “Usei-o [o termo ideia] para expressar qualquer coisa que pode ser empregado pela
mente pensante (idem, ibidem)[2].
O
primeiro livro do Ensaio se resume
num ataque à teoria das ideias inatas de Descartes, dos escolásticos e de
Platão. Desde Platão - e mais tarde com mais vigor – desde Descartes, havia uma
crença tradicional segundo a qual as ideias, ou pelo menos algumas delas, eram inatas, isto é, “não nascidas”, mas eternas. Mesmo aqueles que não
aceitavam a “origem” inata de todas as ideias, aceitavam pelo menos algumas
ideias fundamentais, como a Ideia de Deus, de Perfeição, de Justiça, de
Substâncias, de Número (ou seja, as ideias da matemática em geral), do
princípio de identidade etc. Mas, existem realmente ideias ou princípios inatos
na mente humana? Platão, por exemplo, afirma que sim. Faremos, a seguir, uma
ligeira digressão para expor um resumo da “teoria das ideias inatas” de Platão,
já que ele é o primeiro grande representante dessa teoria.
² “Toma Locke a palavra ideia num
sentido que nem antes nem depois dele teve na filosofia; toma-a como tradução
em língua moderna da palavra latina Cogitatio,
usada por Descartes. Para Descartes, Cogitatio
é pensée, pensamento, e pensamento é
todo fenômeno psíquico em geral. Uma sensação é uma cogitatio; uma proposição o é também; uma afirmação ou negação da
vontade o é também” (Manuel García Morente, “Fundamentos de filosofia”, pp.
178-179, São Paulo, Editora Mestre Jou, 1967).
Platão
distingue claramente dois tipos de conhecimento: o sensível e o intelectual. O primeiro é empírico, baseado na
experiência das coisas físicas (sensíveis, palpáveis), que são transitórias e
passageiras. Em verdade, este não é um conhecimento, mas uma opinião. O segundo tipo, o conhecimento
intelectual, é perfeito e eterno. Por conseguinte, não deriva originalmente da
experiência sensível, pois esta é sempre imperfeita, mutável e passageira. Por
exemplo, a ideia de homem é perfeita, imutável e
incorruptível. Mas o homem hic et nunc[3],
real, concreto, de carne e osso, é corruptível, efêmero e ilusório. Nascem
homens e morrem homens, aparecem e desaparecem, mas a ideia de homem
permanece. Não muda, não se deteriora e não deixa de ser o que é. Eis por que
tal ideia não pode surgir originariamente da experiência sensível, do perpétuo
vir-a-ser, característico da filosofia de Heráclito, que só pode gerar a opinião e jamais o conhecimento. Desse modo, Para Platão, os conceitos ou ideias
mentais (existentes em nós) são derivadas das puras formas (Éidos) das
coisas. As formas puras ou ideias originais são estáticas (imutáveis) e
eternas, preexistentes num outro mundo
e de lá se projetam para caírem no Entendimento humano como princípios inatos
ou a priori. Isto é, os conceitos não nascem de fora ou a posteriori
(pelos sentidos, pela experiência), mas nascem de dentro, a priori, da
própria alma humana ( alma esta que, antes de encarnar no ser humano, contemplou
essas ideias essenciais ou Formas Puras, num outro mundo, transcendente,
suprassensível). O homem toma consciência dessas ideias por meio de uma espécie
reminiscência. E, aqui, Platão
formula a famosa Teoria do Mundo das Ideias ou das formas puras,
perfeitas e eternas, a fim de estabelecer a origem, os fundamentos do
conhecimento humano, os fundamentos da Reminiscência.
As
ideias puras são, portanto, arquétipos, protótipos preexistentes numa realidade suprassensível, realidade essa que não
se encontra nem no espaço nem no tempo – e, portanto, em lugar nenhum – mas que
de algum modo Platão descobriu que ela existe...
Só
existe uma única Ideia “celeste”
para cada espécie de coisas existentes na nossa realidade material, sensível
(cf. La République, Livro X, tomo
VII, segunda parte, in Platon, Oeuvres completes, publicação em 14 tomos, 27 volumes, edição
bilíngue, francês e grego, Les Blles
Lettres, Paris, d/d = diversas datas). Por exemplo, as nossas mesas
materiais são cópias em série ( e cópias imperfeitas) da ÚNICA Ideia de mesa que reside estaticamente
lá no mundo puro onde estão esses entes imóveis e transcendentes. Note-se bem:
aqui está a ideia base de que tudo que não se move, que não muda e é eterno - é
perfeito, bom e belo; e tudo que se move, se deteriora, se corrompe, é coisa
ruim, degradante, feio, desprezível.
³ Hic et nunc – expressão latina que
significa, literalmente, “aqui e agora”, isto é, concretamente, efetivamente,
no momento atual, na realidade. Se fôssemos comparar com a linguagem moderna de
hoje, da mídia, da informática, seria “ao vivo”, on line. A melhor tradução de “on line” para o português foi feita
por um matuto de Pentecoste-Ceará: “on line” significa “pei, bufo!” [tiro e
queda].
As
Ideias suprassensíveis são, portanto, as essências em sua pureza mais abstrata
e mais intelectual possíveis, embora estejam numa outra dimensão, numa espécie
de limbo, numa realidade
transcendente e invisível que Platão chama “substância” (ousía): “a substância sem cor e sem forma, impalpável” e que “só
pode ser contemplado pela inteligência que é o piloto da alma” e que serve para
construir a verdadeira ciência[4].
Isto
se explica porque a nossa alma, antes de encarnar no corpo, habitou aquele
mundo maravilhoso e ideal, no mundo suprassensível. De lá, a alma “desce” para
o nosso mundo físico, e se encarna no corpo humano, onde “esquece” todas as
lembranças das Ideias puras, devido a uma espécie de amnésia natural, em face
da imperfeição do nosso corpo material. A dialética de Platão se transforma
numa procura desse conhecimento perdido, numa ânsia de fazer a alma relembrar o
que viu (e esqueceu) quando passeava através do mundo das Ideias. O conhecer, pois, para Platão, é um reconhecer. Ou seja, é uma
reminiscência (cf. Platão, Ménon, 86
b, p. 259: anamimneskesthai, in Oeuvres
Complètes, tomo III, 2ª. parte, op. cit., Paris, 1984). Quer dizer, o
conhecimento é uma relembrança da alma (razão por que Platão deduz que nossa
alma é imortal).
Conhecer
é rememorar, chamar de volta ao espírito uma lembrança, uma ideia esquecida.
Evidentemente que isto é um pouco poético e que não é recomendável entender
Platão ao pé da letra, tal como ele escreve em seus diálogos. Mas seja qual for a interpretação que se possa dar à
Teoria das Ideias do nosso ateniense, o que ele quer dizer é que os nossos
conceitos sobre os entes são inatos, não derivam da sensibilidade e que existe
um verdadeiro abismo entre o mundo sensível e o mundo inteligível.
Locke
prontamente rejeita essa tradição que vem de Platão e nega a existência de
qualquer tipo de ideia ou princípio inato. Que noções são essas que as crianças
não possuem, grande parte da Humanidade dita civilizada desconhece e os
selvagens das florestas nunca ouviram falar delas? Ora, a mente humana, ao
nascer, é uma “folha em branco”, um papel em branco ( white paper), é uma tabula
rasa[5]
(tábua rasa, limpa) em que nada está escrito, uma tábua limpa, desprovida de
caracteres, totalmente vazia (cf. Locke, Ensaio...
I, cap. I, p. 159, op. cit.). Portanto, nada existe no intelecto que primeiro
não tenha passado pelos sentidos ( Nihil
est in intelecto quod non prius fuerit in sensu).
4 Cf. edição francesa citada, “Phèdre”, tomo IV, terceira parte, 247, p. 37,
Paris, 1985. Esta edição francesa da “société d’éditions Les Belles Lettres
traduz “ousía” (pronuncia-se “ussía”) por “essência”: L’essence qui n’a point de couleur ni de forme, et qu’on ne saurait
toucher, l’essence qui est réellement, que seul est capable de voir le pilote
de l’âme – l’intelligence, celle enfin qui est l’objet de la véritable Science,
ocupe ce lieu-là. Na página ao lado,
desta obra, está o texto original, em grego.
5 Tabula rasa – expressão latina que
significa “tábua em que nada está escrito”. Na Roma Antiga, os magistrados
escreviam seus votos, por exemplo, sim ou
não, em tábua de cera, com uma
espécie de prego ou cinzel. Significa que, no princípio da sessão, as tábuas
estavam limpas, nada havia escrito nelas; só depois do julgamento é que eles
escreviam sua concordância ou discordância. Esta é uma versão da origem da
expressão “tábula rasa”.
Como
então essa mente vazia é preenchida? A mente é preenchida através dos sentidos.
Estes captam objetos particulares[6]
(daí por que - Conforme Locke – só existem ideias particulares), que são
depositadas pela mente na memória
até que, seguindo sua marcha rumo à generalização, chegam aos nomes ou termos
gerais. Um termo geral, no fundo, é particular pois não passa de uma coleção de
termos particulares, sendo, portanto, mera ficção da mente. Esta doutrina
chama-se nominalismo (cf. Ensaio... IV, Cap. VII, p. 300, passim).
O
conhecimento, portanto, como já se disse, não é inato, mas adquirido. E
adquirido através da experiência. Somente a capacidade de conhecer é inata:
“Penso que ninguém jamais negou que a mente seria capaz de conhecer várias
verdades. Afirmo que a capacidade é inata, mas o conhecimento é adquirido” (op.
cit., I, Cap. I, p. 146). Se não há ideias inatas, tampouco haverá princípios
inatos, já que estes são formados a partir daquelas. Todo material que preenche
nossa mente vem de fora, a posteriori,
pelos sentidos e somente a faculdade de conhecer é inata. Neste ponto, Locke
foi até bastante moderado em seu empirismo. Condillac, um discípulo seu, por
exemplo, chega a dizer (Resumo
selecionado do Tratados das Sensações, p. 45, in “Os Pensadores”, São Paulo, Abril Cultural, 1979) que “ todos os
nossos conhecimentos e todas as nossas faculdades vêm dos sentidos, ou para
falar mais exatamente, das sensações: porque, na verdade, os sentidos não são
senão causa ocasional. Eles não sentem, só a alma sente ocasionada pelos
órgãos; e é das sensações que a modificam que ela tira todos os seus
conhecimentos e todas as suas faculdades”. Quer dizer, segundo Condillac[7],
até nossas faculdades cognoscitivas são derivadas dos sentidos...
Mas
voltemos a Locke. Conforme nosso filósofo, a própria substância, que seria o substrato que permaneceria como fundamento
externos das ideias – as quais seriam apenas representações dela – dessa mesma
substância que não pode ser conhecida, sua ideia (de substância) não seria inata, como
desejam os cartesianos[8]
em geral. Diz Locke:
“Confesso
que há outra ideia que seria de uso geral entre os homens (...). Trata-se da
ideia de substância, que não obtemos
nem podemos obter pela sensação ou reflexão. Se a natureza cuidou de nos prover
com algumas ideias, devemos esperar que sejam tais que possamos descobrir mediante
nossas próprias faculdade; observamos, ao contrário, que, através dos meios
pelos quais as ideias são trazidas para as nossas mentes, não temos de modo
algum esta ideia clara; portanto,
nada significa a palavra substância,
a não ser uma proposição [?] incerta disto que não sabemos o que é, de algo
acerca do qual não temos nenhuma ideia positiva particular e distinta, que
julgamos ser o substratum, ou
suporte, destas ideias que conhecemos” (Ensaio...
I, cap. III, 10, p. 155).
6 Locke era um nominalista, como todo bom empirista. Uma ideia geral é apenas um nome ou sinal para uma coleção de ideias
mais gerais, porém particulares também. Para ele, ” as ideias gerais são ficções” (cf. Ensaio...
op. cit., Liv. IV, Cap. VII, 9, p. 300).
7 Condillac diz, sobre a substância [ ver nota 6, p. 77 do manuscrito] etc.
8 Cartesianos = discípulos de Descartes. O nome de Descartes em francês é René “Des Cartes” (“Os Cartes”, “dos Cartes”,
quer dizer, Renato, da família dos Cartes). Os editores de suas obras, no
decorrer dos tempos, provavelmente emendaram o artigo (contraído com a
preposição “de”) “des” (dos, das, duns, dumas...)
com o substantivo “Cartes”. (Em francês, carte significa carta, mapa, cardápio
etc.). O pensador cearense [Francisco ] Alcântara
Nogueira, de quem fui aluno e, depois, colega de magistério na Universidade
Estadual do Ceará, possuía em sua biblioteca particular, uma rara e preciosa
obra de Spinoza, onde o nome de Descartes estava escrito de modo separado, em
sua obra em latim intitulada “RENATI DES CARTES PRINCIPIORUM PHILOSOPHIAE, Pars
I, & II, per BENEDICTUM de SPINOZA, original de 1663. Eu tive a satisfação
de manusear essa obra, encapada, original, e que estava em bom estado de
conservação. Alcântara Nogueira a
adquiriu, arrematando-a num leilão, no Rio de Janeiro.
Em outras
palavras: Locke não aceita as ideias inatas e como a ideia de substância não
pode ser derivada das sensações (pois presumidamente é o sustentáculo delas)
acaba por conceber a noção de substância como incognoscível. Termina por explicar as coisas através do
inexplicável...
As
ideias derivam das sensações ou reflexões (cf. op. cit., cap. I, 2, p. 159, passim): “Afirmo que estas duas, a
saber, as coisas materiais externas, como objeto da sensação, e as operações de
nossas mentes, como objeto da reflexão, são, a meu ver, os únicos dados
originais dos quais as ideias derivam” (idem, II, cap. I, 4, p. 160). Isto é, a
sensação corresponde ao sentido externo, o que se percebe como vindo “de fora”,
e a reflexão se refere ao sentido interno, refere-se à elaboração de ideias
pela própria mente, a partir das sensações adquiridas; existem ideias que
nascem diretamente das sensações e ideias que são elaboradas pela mente,
combinando sensações diversas. Este é o poder máximo que a mente pode ter na
produção do conhecimento.
2 2
-
IDEIAS SIMPLES E IDEIAS COMPLEXAS
As ideias podem ser simples (passivas
apreensões) ou complexas (cf. op. cit., II, cap. XI, p. 180). As ideias
complexas são formadas pela atividade da mente a partir das ideias simples. As
ideias simples – como Leibniz dirá mais tarde – são aquelas que não são
divididas por ocasião da percepção (cf. Novos
ensaios..., II, cap. II, p. 70, in
“Os Pensadores”, São Paulo, Abril Cultural, 1980). Por exemplo, uma cor não é
dividida pela percepção, pois apenas um sentido, o sentido da visão, é
suficiente para perceber as cores. Por outro lado, a percepção de um homem
cantando requer, no mínimo, dois sentidos: a visão e a audição. E
assim com os demais sentidos: a noção de uma “coisa” requer (para uma mente de
faculdade e sentidos normais) sua sensação de cor, de som, de gosto, de sua
olfação e de sua sensação tátil.
Locke
classifica as ideias simples em três tipos: 1) as ideias simples dos sentidos (sensações), como calor[9],
frio, duro, mole, azedo, as ideias de cores, sons etc., ou seja, as ideias que
nascem das sensações dos cinco sentidos humanos - visão, audição, olfato,
paladar e tato - de modo direto ou imediato e que correspondem realmente a
“algo externo”, a alguma “coisa” externa que (provavelmente) lhes é correspondente,
pelo menos no ato da percepção (cf. Locke, Ensaio...
Liv. II, pp. 287-288); 2) as ideias
simples de reflexão, como memória, atenção, vontade etc., ou seja, nossas
próprias faculdades mentais; 3) e as
ideias simples de sensação e reflexão ao mesmo tempo, como as ideias de
existência, duração e número (cf. op. cit., Liv. II, Caps. II a VII).
9 No
esboço inicial do Ensaio... “Draft A
do ensaio sobre o entendimento humano”, § 1, p. 7, Locke afirma: “...Imagino
que todo conhecimento esteja fundado no sentido e derive, em última instância,
dele ou de algo análogo, que pode ser chamado sensação, produzido pelos
sentidos em contato com objetos particulares que nos fornecem ideias simples ou
imagens das coisas. Assim, adquirimos ideias como as de calor e luz, de duro e
mole, as quais consistem apenas em reviver, uma vez mais em nossa mente, as
Por
outro lado, as ideias complexas não tem valor objetivo, não existem arquétipos
externos que correspondam a elas, salvo a ideia de substância, que é a única ideia
complexa objetiva, sendo, no entanto, incognoscível. Tais ideias complexas são
produzidas, como já se disse, pela própria atividade do sujeito, a partir de combinações (certamente, pela imaginação
ou com seu auxílio) das ideias simples (cf. op. cit., Liv. II, Caps. XI-XII),
as quais “são os únicos materiais de todo o nosso conhecimento” (op. cit., Liv.
II, cap. VII, p. 174) e podem ser divididas em duas espécies: 1) aquelas em que
as ideias simples, ao serem combinadas, dão a ideia de uma coisa: ouro, cavalo,
homem etc.; 2) e aquelas ideias que significam mais de uma coisa: pai e filho,
causa e efeito, maior e menor, enfim, todas as ideias de relação em geral.
A
primeira espécie ou grupo de ideias, por sua vez, ainda se subdivide em: (A) ideias de modo que se referem a coisas que não podem subsistir por si mesmas
(triângulo, número[10]...),
(B) ideias de substâncias que se referem a coisas que podem subsistir por si
mesmas (homem, cavalo etc.).
As
ideias de modo, por sua vez, se
subdividem em: (a) modos simples em que as unidades de uma
mesma espécie se repetem, se reproduzem e se unem consigo mesmas para formarem
um todo homogêneo (exemplos: o número, formado de unidades da mesma espécie;
espaço, composto de partes homogêneas etc.). e (b) modos compostos de
ideias distintas, como a ideia de beleza, roubo etc. (cf. op. cit., Liv. II,
caps. XI e XII; cf. Émile Bréhier, História
da Filosofia, vol. II, fascículo 1, pp. 249-251, São Paulo, Editora Mestre
Jou, 1979).
Com
relação às ideias de substâncias,
elas são subdivididas por Locke em substância
que indica a noção de coisa singular (homem, boi, etc.) e substância que
fornece o significado de coletivo, ou seja, de várias substâncias (exército de
homens, rebanho de carneiros, manada etc.).
imaginações
que esses objetos causaram em nós quando afetaram os nossos sentidos por
movimento ou de outra maneira que não importa aqui considerar. É o que acontece
quando concebemos o calor ou luz, amarelo ou azul, doce ou amargo etc. Penso,
portanto, que as coisas que chamamos de qualidades sensíveis são as ideias
simples que temos e os primeiros objetos de nosso entendimento” (São Paulo:
Folha de São Paulo, 2015).
10 Isto é, um triângulo não é uma coisa, mas uma forma pela qual se apresenta uma coisa: coisa de forma triangular. O mesmo ocorre com o número, que não é uma coisa concreta, mas uma forma de generalidade (uma coleção de coisas particulares, pois Locke era nominalista, não admite ideias gerais, abstratas). Por exemplo: um é o conjunto de todas as unidades; dois é o conjunto de todas as díades ( de todos os pares); três, o conjunto de todas as tríades etc.
10 Isto é, um triângulo não é uma coisa, mas uma forma pela qual se apresenta uma coisa: coisa de forma triangular. O mesmo ocorre com o número, que não é uma coisa concreta, mas uma forma de generalidade (uma coleção de coisas particulares, pois Locke era nominalista, não admite ideias gerais, abstratas). Por exemplo: um é o conjunto de todas as unidades; dois é o conjunto de todas as díades ( de todos os pares); três, o conjunto de todas as tríades etc.
A
substância, como já frisamos, segundo Locke, é incognoscível. Só a conhecemos
por algumas de suas manifestações, de suas qualidades, as quais são divididas[11]
em qualidades primárias e qualidades secundárias. Sobre as qualidades,
Régis Jolivet diz:
“Desde
LOCKE, distinguem-se as qualidades primárias e as qualidades secundárias,
correspondendo respectivamente ao que os escolásticos chamavam sensíveis comuns
e sensíveis próprios. As qualidades
primárias são as que se referem à quantidade, a saber, a extensão, a figura ou a forma, o movimento e a resistência. – As qualidades
secundárias são as que são objeto de
um sentido próprio: cor e luz (vista), som (audição), sabor (paladar), odor
(olfato), qualidades táteis e calor (tato) etc.” (Curso de Filosofia, Livro Segundo – Filosofia Especulativa, cap. I.
art. II, p. 109, Rio de Janeiro, Agir, 20ª ed., 1998. Traduzido do francês por
Eduardo Prado de Mendonça)[12].
A
substância é uma “certa coleção de ideias simples unidas num objeto e neste
coexistindo” (Ensaio..., Liv. IV,
cap. III, p. 278). Não sabemos se existem ou não outras qualidades além dessas
já mencionadas, já que a mente humana só conhece aqueles atributos e mais nada.
Locke
assevera que as qualidades secundárias (que são simples) são subjetivas[13]
e as qualidades primárias são objetivas
(e, segundo ele, simples, também), existindo realmente “fora de nós”, no mundo
exterior. É o que ele afirma:
“Todas
as ideias simples, que se encontram deste modo unidas num substratum geral e formam as
ideias complexas de várias ideias de substância, não são diversas das recebidas
através da sensação ou da reflexão. Deste modo, mesmo com as que nos sentimos
intimamente familiarizados e se encontram mais próximas de nossas mais amplas
concepções, não podemos apreender além dessas ideias simples “ (Ensaio... Liv. II, cap. XXIII, 37, p.
208)[14].
¹¹ Cf. Locke, Ensaio... liv. IV, cap.
III, 10, 11, 12, p. 278; Liv. IV, cap. VI, 10, p. 296. Existe uma grande
confusão a respeito das qualidades secundárias e primárias, por falta de
firmeza de Locke em ser coerente. Schopenhauer, por exemplo, diz que Locke
“tinha demonstrado que as propriedades secundárias das coisas, tais como som,
odor, dureza, moleza, lisura e similares, já que são fundadas sobre as afecções
dos sentidos, não pertenceriam aos corpos objetivos, à coisa em si mesma, à
qual, ao contrário, atribuía tão só as qualidades primárias, isto é, as que
apenas pressupõem o espaço e a impenetrabilidade, assim: extensão, forma,
solidez, número, mobilidade” [Crítica da
filosofia crítica de Kant, in “Os Pensadores”, São Paulo, Abril Cultural,
volume sobre “Schopenhauer”, 1980 etc. (Este escrito – Kritik
der kantischen Philosophie -
encontra-se no livro de Schopenhauer - Die Welt als Wille und Vorstellung
/ “O mundo como vontade e representação” – pp. 455-580, Köln, Atlas Verlag,
s/d, existindo um exemplar deste livro, no original alemão, na Casa de Cultura
Germânica da Universidade Federal do Ceará, onde o consultei, quando fui aluno
de língua alemã daquela Casa)]. Tanto
Schopenhauer, como os autores tradicionais interpretam corretamente Locke
quando dizem que, nele, as qualidades secundárias são subjetivas e as primárias
objetivas. O que achamos incoerente é que, sendo as qualidades secundárias
correspondentes a algo real sejam subjetivas, e as primárias, formadas pelas secundárias,
sejam objetivas. Para ser bem popular, é como se uma parede construída com
tijolos de barro não fosse de barro!.
12 E Régis Jolivet prossegue, no mesmo Livro: “Esta divisão é feita de um ponto de
vista acidental. Além disso, o movimento não é, propriamente, uma qualidade,
mas recai, por redução, na categoria de lugar. Da mesma forma, a extensão recai
na [categoria de] quantidade” (op. cit., p. 109).
13 As
qualidades secundárias, para Locke, só são objetivas no momento da percepção,
no momento em que o sujeito está realizando a percepção, hic et nunc.
Alguns
autores (Schopenhauer, por exemplo) interpretam corretamente Locke dizendo que
ele considera as qualidades secundárias (ideias simples, sensíveis, como cor,
dureza etc.) como subjetivas, o que é verdade, mas não deveria ser é o caso.
Baseiam-se no fato de Locke considerar que as ideias sensíveis só correspondem
aos objetos (isto é, só são objetivas) no
momento da percepção. Ora, como Locke “acredita” (crê, tem “fé”, digamos, fé
ontológica) na existência dos corpos
materiais (substâncias) – e não apela para Deus (como mais tarde o faria
Berkeley, com fé religiosa) para garantir a existência dos corpos – então
podemos deduzir ou inferir que nossas ideias sensíveis sempre correspondem a objetos, já que estes não desaparecem (salvo
se forem modificados na realidade ou
Deus os aniquilar) quando deixam de ser percebidos. Quer dizer, as qualidades
secundárias é que deveriam ser objetivas e não as qualidades primárias,
formadas a partir daquelas secundárias, (que seriam subjetivas, segundo Locke).
Quer dizer, como podem qualidades objetivas serem formadas por qualidades
subjetivas?
Mas
a interpretação tradicional que se dá, bem próxima de Kant, é esta: as ideias
simples sensíveis (objetivas na atualidade, quando ocorre a percepção, conforme
Lokce) são meros tijolos com que construímos o edifício das ideias complexas (subjetivas, para alguns
pensadores). Quer dizer, o material sensível são o conteúdo de todo o conhecimento humano. Essas ideias sensíveis, enquanto ideias
simples, são fragmentos reais, porém desagregados. Somente quando organizadas
pela mente, esses desagregados ou fragmentos da realidade formam as ideias
complexas (fictícias, para alguns
autores, mas Locke, como se viu, defende a objetividade da substância); esses
dados sensíveis se estruturam, na e pela mente, construindo uma noção de objeto
de modo diferente daquilo que existiria verdadeiramente na realidade objetiva,
conforme Kant. E tal realidade, segundo Kant, seria realmente incognoscível. Em
outras palavras, os estados objetivos
da realidade não teriam uma correspondência biunívoca, exata (segundo Kant e
seus partidários) com os nossos estados
mentais, subjetivos.
14 Locke, em seu esboço (Draft A, op., pp. 7-8) do “Ensaio..” .explica: “Os sentidos, pelo
frequente contanto com determinados objetos, encontram certo número de ideias
simples constantemente juntas, e o entendimento presume que elas pertenceriam a
uma mesma coisa; as palavras, que seguem nossas apreensões, são evocadas de tal
modo reunidas num simples objeto [subject],
com um mesmo nome, que por inadvertência somos levados a mencioná-las como se
fossem um ideia simples e a considerar como tal o que na verdade é um complexo
de muitas ideias simples reunidas. É o que acontece com todas as ideias de
substâncias, como homem, cavalo, sol, água, ferro. Os que compreendem a /
língua, tão logo ouçam essas palavras, no mesmo instante moldam na mente a
imaginação de muitas ideias simples que são objeto imediato do seu sentido.
Como, porém, é impossível apreender como elas poderiam subsistir por si mesmas,
supõe-se que repousariam e encontrar-se-iam reunidas num objeto [subject] comum, adequado a elas, objeto
[subject] esse que, por ser suporte
dessas qualidades, chama-se substância ou matéria, embora não se tenha outra
ideia dessa matéria além das ideias de qualidades supostamente inerentes a ela”
(a palavra “subject” entre colchete é do tradutor brasileiro, Pedro Paulo
Pimenta, que esclarece in nota, que
Locke usa como sinônimas as palavras object
e subject). Em outras palavras, a ideia de substância é tão frágil que deriva
apenas do hábito de associar sensações em torno de um substrato que
aparentemente serve como suporte das coisas materiais, sensíveis.
Mas
– dizemos nós - é evidente que só é subjetiva a lembrança de objetos do
passado, posto que tais objetos correspondentes a essa lembrança não estão mais
na nossa presença. Entretanto, sua validade objetiva (das coisas materiais)
deve permanecer, posto que Locke aceita a existência da substância, embora
reconheça que não se possa provar sua “verdadeira” natureza.
Mas
aqui, insistimos: se as qualidades secundárias são objetivas (pelo menos, na
atualidade), por que não deveriam ser objetivas também as qualidades primárias?
Locke considera, como se disse - as qualidades
primárias como sendo objetivas[15],
o que nos parece um contrassenso, pois se elas são formadas pelas qualidades
secundárias, que são subjetivas (objetivas apenas
no momento da percepção) , segundo ele, então por que não seriam também subjetivas
as primárias? (Locke, Ensaio ... Liv.
IV, cap. IV, p. 287, passim; Leibniz,
Novos ensaios... Liv. IV, cap, VI, p.
78, op. cit.). Para ser mais claro: se as qualidades secundárias forem
subjetivas, as primárias, formadas por elas, deveriam ser também subjetivas.
Mas, por outro lado, se as qualidades secundárias forem objetivas, então
objetivas deveriam ser também as qualidades primárias. Seria o coerente, o
lógico.
Davi Hume, mais tarde, iria dizer que que
tanto as qualidades secundárias como as qualidades primárias (estas formadas
por aquelas) são subjetivas. E ainda mais: afirma, contra Locke, que as
qualidades primárias não são ideias simples mais complexas, já que são
compostas pelas qualidades secundárias. Ademais, Locke defende que toda ideia
complexa é subjetiva, mas a substância é a única ideia complexa que é objetiva.
Por que esse privilégio para a
substância? Coerentemente, Hume iria mais tarde negar a objetividade também
da substância, que não passa de um feixe de sensações. Mas de Hume, trataremos de
sua filosofia em outro trabalho.
Locke
teria sido mais coerente se tivesse caído no idealismo solipsista, posto que admite
que só conhecemos imediatamente apenas nossas ideias e depois, de modo mediato ( não confundir mediato com imediato) através dessas
ideias, inferimos a existência dos corpos (cf. Ensaio... Liv. IV, Conhecimento
e opinião).
2 3
–
CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A TEORIA DO CONHECIMENTO DE LOCKE
Ora, se só conhecemos imediatamente
nossas ideias, então a conclusão mais lógica seria admitir que somente nossas
ideias existem, com certeza. E se somente as ideias simples dos sentidos
possuem valor objetivo (e apenas quando são percebidas), então a ideia de
substância torna-se problemática, posto que tal ideia é composta pelas ideias
simples e todas as ideias compostas são puras ficções mentais. Logo, a
substância deveria ser também uma pura ficção do espírito.
15 Cf. Michele Federico Sciacca, História da
Filosofia, vol. III, p. 100 (São Paulo, Editora Mestre Jou, 1968), que
citaremos mais adiante, em que este confirma que as qualidades primárias em
Locke são subjetivas. Cf. Schopenhauer, Crítica
da Filosofia Kantiana, p. 87,( in
“Os Pensadores”, São Paulo, 1980).
Quer
dizer, Locke, queira ou não, deságua no idealismo subjetivista, ao asseverar
que só conhecemos de modo imediato
apenas nossas próprias ideias: “desde que a mente em todos os seus pensamentos
e raciocínios não tem outros objetos imediatos exceto suas próprias ideias,
torna-se evidente que nosso conhecimento se relaciona apenas a elas” (op. cit.,
Liv. IV, cap. I, 1, p. 267). “O conhecimento, como foi dito, baseando-se na
percepção do acordo ou desacordo de quaisquer de nossas ideias, resulta disso
que, primeiro, não podemos ter conhecimento além do que temos ideias” (op.
cit., idem, ibidem, p. 276). Isso nos lembra bem o cartesianismo e uma
antecipação de Hume e Berkeley.
Se o
sujeito humano conhece apenas suas ideias, imediatamente, e, por intermédio
delas, conclui a existência dos “objetos externos” – então estamos diante de
uma contradição ou pelo menos de um paradoxo (como dizem os críticos de Locke)
para uma filosofia que tem como ponto de partida o mundo externo, a experiência
sensível. Berkeley foi muito mais consequente ao negar a existência da
substância material ou mundo externo: se só conhecemos nossas ideias, então
somente elas existem. Para Berkeley, o mundo seria apenas uma coleção de ideias
sensíveis reguladas e colocadas na nossa mente por Deus. Como dissemos mais
acima, se Locke tivesse sido mais coerente, neste ponto, deveria ter adotado o
idealismo subjetivista ou, mais precisamente, sua forma mais extremada: o
solipsismo. Apenas a minha mente existe no mundo, pois o conhecimento da
existência de outras mentes seria inatingível ou problemático.
Como Locke
assegura que só conhecemos nossas próprias ideias, então a verdade não é mais a conformidade do sujeito com o objeto, como
diziam Aristóteles, Santo Tomás de Aquino et
all. Cai no cartesianismo, colocando a verdade no acordo ou desacordo entre
as ideias claras e distintas. É o que declara Locke com suas próprias palavras:
“o conhecimento nada mais é que a percepção
da conexão e acordo ou desacordo e rejeição de qualquer de nossas ideias” (op.
cit., Liv. IV, cap. III, 2, p 267; cf. Liv. IV, cap. III, p. 276).
Esse acordo
ou desacordo se processa através de quatro princípios que são o fundamento de
toda racionalidade humana: 1) identidade ou diversidade; 2) relação; 3)
coexistência ou conexão necessária; 4) existência real. Exemplos: “azul não é amarelo é identidade; dois triângulos sobre bases iguais entre
duas paralelas são iguais é relação; ferro
é suscetível de impressões magnéticas é coexistência; Deus é é existência real (op. cit., idem, cap. I, 7, p. 268).
Essas, pois, são as “categorias” lockeana que regulam o nosso entendimento e
nos dizem quais são e quais não são os objetos adequados para serem tratados
pela nossa mente no ato de conhecer. Locke foi bastante econômico nesta área,
pois Kant, muito mais generoso, criou doze categorias ao invés de quatro...
Quanto aos
graus do conhecimento, Locke coloca, em primeiro
lugar, o conhecimento intuitivo,
que é a percepção imediata (atual) do
acordo ou desacordo entre as ideias. Em segundo
lugar, o conhecimento demonstrativo (mediato)
da Matemática, da Moral e de Deus, que requer uma ideia intermediária para
demonstrar duas outras, sendo que o conhecimento intuitivo atual é que
acompanha e garante a validade de cada passo do processo de demonstração (cf. Ensaio... Liv. IV, cap. III, 18, pp. 280-281)). E, em terceiro lugar, o conhecimento sensível
dos objetos particulares, presentes nos sentidos (cf. op. cit., Liv. IV, cap.
III, pp. 281-282). Fora disso só existem fé, opinião e crença (cf. op. cit.,
Liv. II, cap. XXIV, 4, 5, pp. 207-208, passim).
Exemplos: pelo conhecimento intuitivo
temos a percepção de nossa existência (apercepção);
pelo conhecimento demonstrativo
conhecemos Deus e, pelo conhecimento sensível
temos ciência das ideias particulares dos sentidos.
Em
conclusão, fazendo um balanço da teoria do conhecimento de Locke, usamos as
palavras de Michele Federico Sciacca (História
da Filosofia, III, p. 100, São Paulo, Editora Mestre Jou, 1968): “a análise
crítica do intelecto levou Locke a estes resultados: a) nós não conhecemos
senão ideias ou representações que nos são dadas pela experiência; b) as ideias
conjuntas [complexas] não tem valor objetivo [salvo a substância que, no
entanto, é incognoscível]; c) a correspondência entre a ideia e o objeto é
possível somente nas ideias simples e está limitada à atualidade da sensação;
d) são objetivas apenas as qualidades primárias; e) as leis das ciências naturais
e os conceitos universais em geral são nomes
[nominalismo] que tem somente um valor prático; f) a substância se supõe que
exista, mas é incognoscível”.
3
- A FILOSOFIA POLÍTICA – “O SEGUNDO
TRATADO SOBRE O GOVERNO”
John Locke é considerado um dos
fundadores do Liberalismo[16].
Em sua obra “Ensaio sobre o entendimento humano”, refuta a teoria das ideias a priori ou inatas, declarando que
“nada existe no intelecto que primeiro não tenha passado pelos sentidos”. Este
é o princípio básico da sua teoria do conhecimento.
Coerente
com sua tese acima acerca da natureza do conhecimento, afirma que em política é
a mesma coisa: não existem princípios a
priori ou inatos. Em consequência disso, nega a validade da “Teoria do
Direito Divino dos Reis”. Os reis de sua época afirmavam que todo poder vem de
Deus e por isso só tinham que dar satisfação de seus atos ao próprio Deus. E
como Deus nunca veio cobrar a prestação de contas deles aqui na terra, eles
nunca deram satisfação de seus atos a ninguém. Este sistema ou forma de governo se chamou Absolutismo, onde o rei mandava e
desmandava, absolutamente.
16 Sobre o Liberalismo, ver Grande
Enciclopédia Dela Larousse, vol. 9, p. 4002, Rio de Janeiro, Editora Delta,
1974, de cujo verbete retirei algum conteúdo.
O
absolutismo ia de encontro (contra) aos interesses da Burguesia ascendente, que
desejava mais liberdade política e econômica. Daí por que adotou uma conjunto
de ideias em defesa de seus interesses, que recebeu o nome genérico de Liberalismo.
A “Grande Enciclopédia Delata
Larousse” (vol. 9, p. 4002, Rio de Janeiro, Editora Delata, 1974) assim se
pronuncia sobre o Liberalismo: “Doutrina que preconiza a liberdade individual
no campo político e econômico” e surgiu na Inglaterra, máxime após a Revolução
de 1688. Isto significa que o Liberalismo evoluiu para dois tipos: o
liberalismo econômico e o liberalismo político. O liberalismo econômico defende
a livre concorrência entre os capitalistas e a não intervenção do Estado nas
relações econômicas. A consequência disso, mais tarde, foi o estabelecimento do
“direito do mais forte”, acarretando a concentração das riquezas, através de
monopólios e oligopólios, nas mãos de poucos capitalistas que, assim, passaram
a controlar o mundo. O liberalismo político defende principalmente os direitos
básicos dos indivíduos, como a liberdade, a igualdade perante a lei, a propriedade
privada e a representatividade política (direito ao voto, para eleger seus
representantes). Montesquieu, um teórico liberal, para evitar um Estado muito
forte, defendeu a divisão do Poder estatal em três: poder executivo, poder legislativo
e poder judiciário, sistema este que foi adotado pela primeira vez pelos
Estados Unidos da América, após sua independência. Na prática, a liberdade
depende de quem tem riqueza e o sistema representativo passou a defender
especialmente o direito de a alta classe burguesa ficar cada vez mais rica, aumentando a
concentração de renda e as desigualdades sociais.
Locke, no
“Primeiro Tratado sobre o Governo”, repudia logo essa tese do
direito divino dos reis. Segundo
ele, os defensores desse pretenso direito não conseguem provar que Deus tenha
dada diretamente o poder aos reis e, indiretamente, através de Adão e Eva e
seus descendentes, aos seus sucessores. Também não é possível identificar seus
herdeiros “reais” (“verdadeiros” e/ou “monárquicos”). A esse respeito, dizem
Giovanni Reale & Dario Antiseri:
“A
monarquia não se fundamenta no direito divino. Diz Locke que, embora em voga
nos tempos modernos, essa tese não se pode encontrar nas Escrituras nem nos
antigos Padres.
A
sociedade [civil] e o Estado nascem do direito natural, que coincide com a
razão, a qual diz que, sendo todos os homens iguais e independentes, ‘ninguém
deve prejudicar os outros na vida, na saúde, na liberdade e nas posses’. São,
portanto, ‘direitos naturais’ o direito à vida,
o direito à liberdade, o direito à propriedade e o direito à defesa desses direitos” (História da Filosofia, vol. 2, p. 523,
São Paulo, PAULUS, 8ª edição, 2007).
Por
isso, Locke adota a ideia – na época, revolucionária – de que todo poder vem
diretamente do povo e em seu nome deve ser exercido.
Sobre
a origem do poder político, Locke aceita o chamado “estado de natureza” e a
“teoria do contrato social”. Mas ele concebe o estado de natureza completamente
diferente do de Hobbes, que o definia como um estado violento, de guerra de
todos contra todos. O Estado (sociedade política) era constituído, segundo
Hobbes, após um “contrato social”, tendo por finalidade acabar com a baderna, a
anarquia ( = ausência de Estado, falta de governo), acabar com a guerra de
todos contra todos. Por isso, para Hobbes, este Estado deveria ser forte,
absolutista e estar acima dos indivíduos, o que implicaria o estabelecimento de
um totalitarismo, de uma ditadura.
Locke,
pelo contrário, afirmava que o estado de natureza era um estado de paz, de
igualdade e de racionalidade. O contrato social entre os homens visa apenas
preservar esse estado, esses direitos, já que o estado de natureza, embora
justo, era frágil e poderia ser quebrado e assim levar à injustiça e ao
aniquilamento da propriedade privada. Por isso é preciso criar uma instituição
com poder suficiente para resguardar os direitos dos indivíduos e grupos.
A
instância de apelação e o poder de castigar e resguardar direitos devem ser
transferidos para esta Instituição, o Estado, fruto desse Contrato Social.
Este, uma vez constituído, passa a legislar e executar as leis. Locke faz
diferença entre estado de natureza e estado de guerra. Este último ocorre
quando um súdito descumpre a lei, abusa de seus direitos ou quando o governante
começa a governar como um tirano, um desalmado, dirigindo a máquina do Estado
contra os interesses do povo, como por exemplo, cobrando impostos sem o
consentimento da sociedade ou confiscando as propriedades dos particulares. Ou
seja, quando mete a mão no bolso do povo através de leis arbitrárias,
casuísticas ou qualquer outro subterfúgio ilegítimo. Isto sim, é que é um
estado de guerra - que poderá ocorrer tanto no estado de natureza, como dentro
da própria sociedade civil, quando ela retroage ao nível de um estado
primitivo, anárquico, arbitrário. “Evitar esse estado de guerra (...) é a
grande razão pela qual os homens se unem em sociedade e abandonam o estado
de natureza” (John Locke – Dois Tratados sobre o Governo, cap. III, 21, p. 400, trad. Julio Fischer, São
Paulo, Martins Fontes, 1998) (cf. Os
Pensadores, p. 42).
Para
Locke, a principal causa que levou o homem a fazer o pacto político foi a defesa da propriedade, a qual é
fundamentada por ele no trabalho. Sendo assim, pela lógica, todos os
trabalhadores deveriam ter direito à propriedade, o que efetivamente não
ocorre. Certamente, a explicação é que alguns homens são mais laboriosos do que
outros, possuindo propriedades desiguais, além dos preguiçosos que, por sua
inércia, não possuem propriedade alguma. Mas Locke acha que, por mais pobre que seja
um indivíduo, ele tem uma propriedade, que é sua pessoa e seu corpo: o
indivíduo é propriedade de si mesmo. Daí o poder
de dispor de si mesmo para “vender sua força de trabalho”, para usarmos uma
posterior linguagem, marxista. Por isso, Locke assim define a propriedade em
geral: “( Por propriedade deve-se entender aqui, como em outros lugares, a
propriedade que os homens tem sobre suas pessoas e bens)” ( Dois Tratados sobre o Governo, São Paulo, Martins Fontes, Cap. XV, 173, p. 541).
Como Locke admitia a escravidão, devemos incluir os escravos na classe de bens. Mas como Locke vivia numa época de
economia essencialmente agrária, a propriedade, para ele, era principalmente a terra.
A seguir, Locke discorre sobre o Pátrio Poder, com o objetivo de criticar
o poder absoluto dos reis. Alega que o monarca não exerce o pátrio poder sobre
a nação e se exercesse, este poder não deveria ser absoluto. Locke demonstra
que o pai não tinha poder absoluto sobre a família, citando a própria Bíblia,
onde ocorre a expressão os pais, o
que mostra que a mãe tinha o mesmo direito sobre os filhos e bens do que o pai.
A verdade é que existe o mesmo direito entre o homem e a mulher; apenas quando
há um conflito extremo, prevalece a decisão final do homem. Mas tal direito
patriarcal – para Locke – vale somente para questões de interesses e de
propriedade em comum, pois a mulher deve ter a posse plena e livre daquilo que
lhe pertence por contrato. O marido não tem o poder sobre a vida dela mais do
que ela tem sobre a dele (cf. Cap. VII, 82, p. 455, op. cit.; Os Pensadores, p. 66).
A
finalidade da família não é somente a procriação, mas a perpetuação da
Humanidade, o que exige não apenas o ato de procriar, como também o de educar, que é a preparação para a vida.
Por isso os pais devem ter certa autoridade sobre os filhos, até sua
maioridade, mas tal autoridade não é absoluta: os pais não tem o direito sobre
a vida deles ( de tirar-lhes a vida) e o próprio casamento pode ser dissolvido,
ficando os filhos sobre a autoridade de uma das partes ou sob a de um tutor.
Dito
isso, o que Locke pretende é refutar aqueles que desejam comparar o direito
paterno com o direito de governar de modo absoluto dos reis, mostrando que a
família não é uma sociedade política e, se fosse, o pacto não seria
indissolúvel, nem o pai teria poder absoluto sobre a família. Assim também, o
rei não deve ter o poder absoluto sobre a sociedade e o contrato social inicial
pode ser desfeito e o governante deposto (cf. op. cit. Cap. VII, 86, p. 457, passim; Os Pens... p. 66).
Locke
combate a todo instante a monarquia absolutista e a considera uma situação pior
do que o estado de natureza, pois na
monarquia absoluta existe um só poder, um só arbítrio e o governante ainda pode
usar o saber e a religião em prol de seus interesses e das classes dominantes.
Uma
vez estabelecido o poder governante, numa sociedade política, ele passa a ter a prerrogativa de legislar, de mediar
conflitos e até de condenar à morte, no caso de crimes hediondos.
Em seguida,
Locke conceitua quem está em sociedade civil:
“Desse modo, é fácil de distinguir quem está e quem não
está em sociedade civil. Aqueles que
estão unidos em um corpo único e tem uma lei estabelecida em comum e uma
judicatura à qual apelar, com autoridade para decidir sobre as controvérsias
entre eles e punir os infratores, estão em
sociedade civil uns com os outros”
(op. cit., Cap. VII, 88, p. 459; Os Pens...,
p. 67).
Logo na sequência (no Cap. VIII),
Locke diz que na formação da sociedade política (Estado), isto é, após a
passagem do estado de natureza para a sociedade civil (sociedade política),
fica convencionado o direito da maioria estabelecer decisões (cf. parágrafo
95). E, depois, procura provar que o estado de natureza não é mera ficção, e
cita as sociedades indígenas (onde o Estado não existe) da América – inclusive
o Brasil – para mostrar que elas existiram e existem de fato.
O pacto
político (o contrato social) gera os poderes legislativo e executivo. O poder legislativo é o mais importante –
é o poder supremo - e dele derivam os outros, seja o poder executivo,
federativo, judiciário ou quaisquer outros que por ventura venham a existir. O
poder legislativo é tão importante que o objetivo principal de se estabelecer a
sociedade política (Estado) é constituí-lo, - desde que seja obedecida a lei
fundamental, que é a preservação da sociedade com justiça, isto é, para o bem
público:
“O grande objetivo de entrada do homem em sociedade
consistindo na fruição da propriedade em paz e segurança, e sendo o grande
instrumento e meio disto as leis estabelecidas nessa sociedade, a primeira lei
positiva e fundamental de todas as comunidades consiste em estabelecer o poder
legislativo; como a primeira lei natural fundamental que deve reger até mesmo o
poder legislativo consiste na preservação da sociedade e, até o ponto em que
seja compatível com o vem público, de qualquer pessoa que faça parte dela. Esse
poder legislativo não é somente o poder supremo da sociedade, mas sagrado e
inalterável nas mãos em que a comunidade uma vez o colocou; nem pode qualquer
edito de quem quer que seja, concebido por qualquer maneira ou apoiado por
qualquer poder que seja, ter a força e a obrigação da lei se não tiver a sanção
legislativa, escolhido e nomeado pelo poder público; porque sem isto não teria
o que é absolutamente necessário à sua natureza de lei: o consentimento da
sociedade sobre a qual ninguém tem o poder de fazer leis senão por seu próprio
consentimento e pela autoridade dela recebida” (Segundo Tratado sobre o Governo, cap. XI, 134, p. 86, “Os Pensadores”, op. cit.)[17].
Apesar de o
legislativo ser o poder maior, possui seus limites e seus encargos. As obrigações
e encargos são do poder legislativo em qualquer comunidade e em quaisquer
formas de governo. São:
“Em primeiro lugar, ele deve governar através de leis promulgadas e estabelecidas, que não poderão variar nos casos particulares, mas
segundo uma mesma regra para os ricos e pobres, para o favorito na corte e o
camponês no arado.
17 “
O poder legislativo, em seus limites extremos, restringe-se ao bem público da
sociedade. É poder que não tem outro objetivo senão a preservação e, portanto,
não poderá ter nunca o poder de destruir, escravizar ou propositalmente
empobrecer os súditos. As obrigações da lei da natureza não cessam na sociedade
mas somente em muitos casos se tornam mais rigorosas, e por leis humanas se lhe
anexam penalidades conhecidas, destinadas a forçar-lhes a observância. Assim a
lei da natureza fica de pé como lei eterna para todos os homens, tanto
legisladores como quaisquer outros. As leis que elaboram para as ações de
outros homens devem, não só para as suas próprias ações como para as de
terceiros, estar de acordo com a lei da natureza...” (Segundo tratado... cap. XI, 135, p. 87, in Os pensadores, op.
cit).
Em segundo lugar, tais leis
não devem destinar-se a outro fim que não, em última análise, o bem do povo.
Em terceiro lugar, não se devem impor tributos sobre a
propriedade do povo sem o seu consentimento, dado diretamente
por ele ou através de seus deputados. E essa propriedade apenas se refere aos
governantes em que o legislativo está
sempre em função ou, em que o povo não reservou porção alguma do legislativo
para deputados, a serem por eles escolhidos de tempos em tempos” (cf. op. cit.,
cap. XI, pp. 513-514; Os Pens... p.
90. Não houve citação ipse litteris).
Para Locke,
o Poder legislativo tem a prerrogativa de funcionar continuamente; entretanto,
pode ter período de recesso; mas o
poder executivo deve ser permanente e ter certas prerrogativas, que são margens de liberdade para se tomar decisões
durante o recesso (do legislativo). Daí por que os poderes legislativos e
executivos devem ser separados.
E como
ainda não existe um direito internacional, já que os demais Estados vivem em
“estado de natureza” entre si, o legislativo cria também o Poder Federativo,
que é a prerrogativa de aprovar guerras, paz, alianças e demais transações em
relação aos outros Estados. Apesar de serem realmente dois poderes, Locke
afirma que o poder executivo e o federativo “quase sempre estão unidos” (cf. Cap.
XII, 146-147, pp. 91-92, in Os Pensadores).
Por outro lado, o “poder judiciário” fica subordinado ao Poder Executivo, não
sendo um poder independente, como hoje se doutrina e não só o poder judiciária,
mas qualquer poder que exista ou venha a existir. O poder legislativo é supremo
e a fonte de onde deriva qualquer outro poder político.
Quanto às
formas de governos, Locke simpatiza mais com uma Monarquia Representativa, certamente
inspirado em suas ideias liberais inglesas[18],
mas a comunidade poderá adotar a forma de governo que achar conveniente (cf. cap.
X, op. cit., 132, p. 500, Martins Fontes; cf.
edição Os Pensadores, op.
cit., cap. , 137. p. 88)).
Locke
defende o direito de deposição do governante, inclusive pela luta armada, a
insurreição, quando este trai a finalidade de servir ao bem comum, para
corromper o poder em proveito próprio ou de terceiros, pois acaba entrando em estado de guerra com a sociedade, contra
a sociedade que o colocou no poder.
O Capítulo
XIX, intitulado “Da Dissolução do Governo” é uma das mais perfeitas defesa da
democracia liberal e uma veemente condenação da tirania ou governo absolutista.
Um governo pode ser dissolvido por uma invasão estrangeira, mas pode ser
dissolvido também por causas internas. Alterar
o legislativo, isto é, corrompê-lo ou o próprio legislativo deixar de
trabalhar pelos interesses da sociedade, implicam em dissolução do pacto
inicial, ficando a comunidade livre de obediência ao governante ou soberano,
tendo o direito de refazer o pacto, colocando outra(s) pessoa(s) no governo ou
até implantar outra forma de governo. Por isso, o povo que se levanta contra um
governo injusto, ilegítimo, corrupto, não
é rebelde. Rebelde é quem
descumpre a Lei legitimamente promulgada, como os deputados ou governantes
malfeitores, não o povo que se subleva por ter sido traído por quem usurpou
seus direitos.
18 Michele Federico Sciacca ( História da
Filosofia, vol. II, p. 102, São Paulo, Editora Mestre Jou, 3ª ed.,1968) diz
que “Locke é o teórico da nova monarquia liberal inglesa”.
Mas um povo
não se deve levantar apenas quando já estiver escravizado, pois aí já não terá
poder para tal. Basta perceber as artimanhas e as patifarias dos governantes,
para o povo ter o direito de rebelião, de depor o governante, pois querer que
faça isto quando já estiver subjugado totalmente é querer que escravos hajam
como homens livres. A desconfiança e a prudência são o preço da liberdade.
Finalmente,
o governo ainda pode ser dissolvido quando o Poder Legislativo for interrompido
ou o Poder Executivo se torna negligente ou acontece a renúncia ao cargo.
Locke,
portanto, foi o pai do liberalismo político moderno e sua influência na Inglaterra,
na Europa e nos Estados Unidos foi imensa. É pena que os liberais de hoje
tenham esquecido suas lições, especialmente em países subdesenvolvidos ou em
desenvolvimentos, como o Brasil.
4– CONCLUSÃO
A filosofia de Locke teve uma vasta
influência no mundo Ocidental, tanto na Teoria do Conhecimento, adepto que foi da
tradição empirista inglesa, de Roger Bacon e Francis Bacon, como na política, tendo sido considerado
o pai do liberalismo político moderno, ideologia das democracias surgidas na
América do Norte, com a independência dos Estados Unidos, e na Europa, especialmente
a partir da Revolução Francesa de 1789.
Suas
ideias liberais, na época, ao pregar o governo representativo, foi um progresso
em relação ao Absolutismo, defendido pela ideologia do “Direito Divino dos
Reis”. Mas hoje, o sistema representativo chegou a um beco sem saída, pois é
uma ideologia que defende os interesses da classe burguesa, opressora e
exploradora da classe trabalhadora, que constitui a esmagadora maioria da
sociedade, que é a classe que produz
toda riqueza no mundo. É a classe que produz a riqueza e no entanto vive na
pobreza.
Qualquer
sociedade que se fundamente na exploração do homem pelo homem é injusta. E
cruel e perniciosa é a política ou a ideologia que a defende.
--------nms---------
Post-scriptum
– esse texto está disponível na internet –
blogger Noé Martins.