quinta-feira, 24 de novembro de 2016

A Filosofia de LEIBNIZ

A FILOSOFIA DE LEIBNIZ






Noé Martins de Sousa
(Professor de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará
 de 12-08-1981 a 26-05-2012)









Fortaleza-Ceará-Brasil- 2016



A FILOSOFIA DE LEIBNIZ

Noé Martins de Sousa
(Professor de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará)


Gottfried Wilhelm Leibniz, filósofo e matemático alemão, nasceu em Leipzig em 1646 e faleceu em Hannover em 1716. Formou-se em Direito em 1666 e dedicou-se também à matemática e à política. Descobriu, ao mesmo tempo que Newton, o cálculo infinitesimal e construiu uma máquina de multiplicar. Exerceu várias missões diplomáticas, especialmente junto a Luís XV, da França e Pedro o Grande, da Rússia. Como teólogo, tentou, com Bossuet, a unificação das igrejas Católica e reformistas, tarefa que evidentemente fracassou. Foi uma mente de envergadura universal, dominando a matemática, a química, a geografia, a política, a historia, o direito, a teologia etc., mas foi como filósofo e matemático que mais se destacou. Cristiano Wolff e Kant, logo a seguir, iriam sofrer amplas influências de Leibniz. Por sugestão sua, foi criada em Berlim a “Academia de Ciências”, da qual foi o primeiro presidente.
            Escreveu uma vasta obra, mas, como filósofo, destacamos: Méditations sur la connaissance, la vérité et les idées (Meditações sobre o conhecimento, a verdade e as ideias - 1684); Nouveaux essais sur l’entendement humain (Novos ensaios sobre o entendimento humano – 1704), em oposição aos “ensaios” de Locke. Essais de théodicée (Ensaios de Teodiceia – 1710), sendo o primeiro autor a usar o termo “Teodiceia”, para significar o estudo de Deus pela razão, em oposição à Teologia revelada ou dogmática. Hoje, Teodiceia é sinônimo de Teologia natural. E Monadologie (Monadologia – 1714).

O volume da coleção “Os Pensadores” que traz textos de “Newton/Leibniz” (São Paulo, Abril S. A. Cultural, 1980, 2ª edição, 1983), livro organizado e traduzido por Carlos Lopes Mattos, Pablo Rubén Mariconda, Luiz João Baraúna, e Marilena de Souza Chauí, expõe, na página 98, os princípios que norteiam e fundamentam a filosofia de Leibniz. Vamos expô-los aqui, para que o leitor tenha sempre em mente esses princípios, ao fazer a leitura da obra de Leibniz. Esses princípios são:

1)      O princípio da Razão  ou princípios da razão: que são o princípio de não-contradição e o princípio da razão suficiente. O princípio da não-contradição se fundamenta no caráter lógico, correto, das proposições e demonstrações. Essa correção metodológica parte do suposto que qualquer discurso inteligível não pode ter contradição lógica. Por outro lado, o princípio da razão suficiente, diz que tudo que existe tem uma razão de ser, um motivo, pois do contrário não existiria. Isso nos parece um truísmo, mas na doutrina de Leibniz tem sua “razão de ser”, como veremos no decorrer da exposição de sua filosofia.
2)      O Finalismo implicando na escolha do melhor: Deus não criou as coisas com base no princípio do “quanto pior melhor”, mas no princípio de “quanto melhor, melhor”.
3)      O Princípio da continuidade. Significa que a Natureza não dá saltos e em toda mudança existe uma continuidade entre um estado de coisas e outros. Se fôssemos transpor esse princípio para Biologia, não seriam possíveis as “mutações” e, para o mundo social, não seriam aceitas as “revoluções”, mas apenas reformas ( e gradativas), embora tal princípio tenha sido fértil para Leibniz, quando aplicado à física e à Geometria.
4)      E o Princípio da Identidade dos Indiscerníveis – Para Leibniz não existem no universo duas coisas iguais, pois elas seriam indiferenciáveis (indiscerníveis) e, logo, não seriam duas. A diferença entre as coisas não seria numérica nem espaço-temporal, mas existiria uma natureza intrínseca entre as coisas pelas quais umas se diferem das outras. Toda coisa é um indivíduo.

Além disso, eu acrescentaria um princípio mais geral, que está implícito na filosofia de Leibniz: é melhor criar do que não criar. Quer dizer, Deus poderia não ter criado nada. Se criou, é porque achou melhor haver existentes do que um vazio absoluto.

A TEORIA DO CONHECIMENTO DE LEIBNIZ

Leibniz não aceita o princípio empirista que diz que “nada existe no intelecto que não proceda dos sentidos”. Escreveu o livro “Novos ensaios sobre o entendimento humano”  para refutar os “Ensaios” de Locke. Leibniz afirma que nada existe no intelecto que não tenha passado pelos sentidos – salvo o próprio intelecto (Nihil est in intellectu, quod non fuerit in sensu, excipi: nisi ipse intellectu (Novos ensaios sobre o entendimento humano, Liv. II, cap. 1, p. 62, in “Os pensadores”, Abril Cultural, Stão Paulo, 1980).
            Consequentemente, Leibniz aceita a teoria das Ideias inatas. A mente humana não é uma tabula rasa, mas já nasce com as ideias, não em atos, mas virtualmente (cf. op. cit., Liv. I), como  potências a serem desenvolvidas posteriormente. Ele compara a mente humana com um bloco de mármore virgem, sem a figura de Hércules, por  exemplo, mas já trazendo em si alguns veios que, sendo limpados, trabalhados e esculpidos, revelarão a figura do herói grego (cf. op. cit., Prefácio, p. 10). Desse modo, o intelecto já traz, a priori, de forma latente, inata, as ideias. Os sentidos são úteis apenas como estímulos para aclarar e ilustrar essas verdades ou ideias inatas e eternas.
            Assim, existtem duas fontes do conhecimento: as verdades da razão e as verdades de fato, isto é, o entendimento e a sensibilidade. As verdades da razão originam-se de dentro do intelecto, a priori, e são as verdades universais, eternas, especialmente as verdades da matemática. Os sentidos, como já se disse, servem somente para ilustrarem-nas e não para as produzirem (cf. op. cit., I, pp. 33-34)[1]. Quer dizer, as ideias de um plano perfeito ou de um círculo perfeito, jamais derivariam dos sentidos, embora se reconheça que nunca teríamos ideia de um ou de outro se não existissem os planos e círculos sensíveis. Essas ideias dão origem às proposições analíticas, para usarmos a terminologia que Kant mais tarde iria empregar.
            Mas as verdades de fatos  ou contingentes, derivam dos sentidos e são empíricas: correspondem às proposições sintéticas, conforme a posterior linguagem kantiana. Mas, como veremos adiante, pela teoria de Leibniz sobre as Mônadas, que “não tem janelas”, essa distinção das duas fontes do conhecimento (ver op. cit., Prefácio, p. 11), que deriva de Locke (para não remontarmos à Antiguidade), não poderia ser aceita por Leibniz, porque, no fundo, para ele, todo conhecimento nasce do interior das próprias mônadas sendo, consequentemente, inato (“não nascido” ou eterno, apenas revelado, após o nascimento do ser humano). É o que afirma o próprio Leibniz: “ acredito mesmo que todos os pensamentos e ações da nossa alma procedam do seu próprio fundo, sem que possam ser fornecidos à alma pelos sentidos “ (op. cit., Liv. I, cap. I, p. 31; cf. Liv. III, cap. IV, p. 234).
            Para Leibiniz, todas as proposições são redutíveis à forma sujeito-predicado, caso contrário não teria significado real. Como diz Bertrand Russell, ele desconhece as proposições de relações. Um exemplo do seu desconhecimento da importância das proposições de relações (que Bertrand  Russell cita também em seu livro sobre “A Filosofia de Leibniz”, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1968, ) está contido numa passagem de sua (de Leibniz ) correspondência com Clarke: “ a razão ou proporção entre  duas linhas, L e M, pode ser concebida de três modos: como razão do maior L ao menor M; como razão do menor M ao maior L; e enfim como algo que abstrai dos dois, isto é, como razão L e M, sem considerar qual é o anterior ou o posterior, o sujeito ou o objeto. Assim é que são consideradas as proporções da música. Na primeira consideração, L, o maior, é o sujeito; na segunda, M, o menor, é o sujeito desse acidente que os filósofos chamam relação. Mas qual será o sujeito do terceiro caso? Não se poderia dizer que ambos, L e M juntos, sejam o sujeito desse acidente, pois assim teríamos um acidente em dois sujeitos, com uma perna num e outra noutro, o que contraria a noção de acidentes.



[1] Cf. ( = confira, confronte): Novos ensaios... liv. I, cap. I, pp. 33/34

Portanto, devemos dizer que essa relação, nesse terceiro caso, está fora dos sujeitos, mas que, não se tratando nem de substância nem de acidente, será, por força, uma coisa puramente ideal” (Quinta Carta de Leibniz, ou Resposta à Quarta Réplica de Clarke, in Correspondência com Clarke, p. 202, coleção “Os Pensadores”, volume “Newton/Leibniz (I)”, São Paulo, Abril Cultural, 1983). “As relações e as ordens tem algo do ser de razão, embora tenham o seu fundamento nas coisas; pois se pode dizer que a sua realidade, como a das verdades eternas e das possibilidades, vem da razão suprema” (Novos ensaios... – N. E. – Cap. XXV, p. 170). Portanto, as relações são algo que, embora possuam fundamentos nas coisas, não são reais, não são coisas, mas  idealidades e sua “realidade” consiste em serem pensadas pelos homens e/ou por Deus. Quanto às verdades eternas, elas são inatas (não nascidas), pois existem desde a eternidade no intelecto de Deus[1].
            Se as relações são entes puramente ideais, então toda proposição segue o modelo aristotélico-tomista de “sujeito-predicado”. “Em qualquer proposição a menos que seja a existência o predicado em questão – diz Bertrand Russell, expondo Leibniz – o predicado está de alguma forma contido no sujeito”  (“A filosofia de Leibniz”, p. 11, São Paulo, Comp. Editora Nacional, 1968). Tais proposições, em que o predicado está contido no sujeito, constituem as verdades da razão, as verdades necessárias ou juízos (proposições) analíticos, como os denominaria Kant mais tarde. Exemplos de juízos analíticos: “ o trilátero tem três lados”. “o círculo é redondo”, “o gato branco é um gato”, “a casa (inteira) não pode sair pela janela” (= o todo é maior do que a parte, isto é, quando se trata de grandezas finitas) etc.
            Mas no que se refere às “verdades de fato” (ver Monadologia, 33, p. 108, op. cit.) que se referem a questões de existência, o predicado não se acha contido tacitamente no sujeito, mas lhe é acrescentado por adição (veremos adiante que isto não pode ser sustentado, coerentemente, em Leibniz). A proposição “o sol nascerá amanhã” só poderá ser comprovada com base na experiência e, portanto, não possui caráter de necessidade – são proposições sintéticas, na futura linguagem kantiana (não estou aqui, querendo “kantizar” Leibniz, mas relacionar a terminologia de um com a do outro). Todas as proposições que se referem a qualquer tipo de existência (das coisas) – salvo a existência de Deus – segundo Leibniz, são contingentes e o seu contrário não implica contradição. Podemos perfeitamente afirmar que “o sol não nascerá”, que é contrária à proposição já afirmada anteriormente, que ambas não são contraditórias e, portanto, não possuem necessidade lógica. As proposições só são formalmente contraditórias entre si, se, e somente se, uma sendo verdadeira, a outra terá que ser necessariamente falsa. Até porque, no caso das proposições contrárias, ambas podem ser falsas. Exemplo: todo homem é branco/ nenhum homem é branco. Todo homem é louro/nenhum homem é louro.



[1] Cf.: Correspondência com Clarke, Quinta Carta de Leibniz, p. 198, in “Os Pensadores”, op. cit.

Ora, no caso das proposições que se baseiam na empiria (experiência), seu fundamento não é o princípio de identidade (ou de contradição), mas o princípio da razão suficiente, segundo o qual tudo o que existe, existe por alguma razão e essa razão é a escolha do que há de melhor por parte de Deus (cf. Monadologia, p. 110; cf. Discurso de metafísica, pp. 120-121, in “Os Pensadores”, op. cit.).   
            O sujeito de uma proposição é definido pelo conjunto (totalidade,c somatório) de seus predicados. Tomemos, por exemplo, a noção de  “César”. Podemos conhecê-la através de vários predicados que lhe convém, como “César conquistou a Gália”, “César atravessou o rio Rubicão”, “César foi ditador de Roma” etc. Tais proposições, em que o predicado não se encontra identificado com o sujeito, são sintéticas, como se disse, e não possuem qualquer caráter de necessidade. O conjunto de predicados que constrói e caracteriza a noção de César forma a totalidade de seu conhecimento, do conhecimento que se tem dele. Como nós humanos somos limitados, finitos, não podemos conhecer a totalidade de seus predicados (de César) – que são infinitos – que constituem a noção de César.  Por isso, todos os predicados que se referem a ele são contingentes ou factuais e sua atribuição ao seu jeito sempre dependeria da experiência ou constatação dos fatos. Entretanto, Deus poderia conhecer, a priori, a somatória, isto é, a totalidade dos predicados convenientes ou atribuídos a César. É o que diz Leibniz:

“Dissemos que a noção duma substância individual encerra duma vez por toda, tudo quanto pode acontecer, e considerando esta noção nela se pode ver tudo o que é verdadeiramente possível enunciar dela, como na natureza do círculo podemos ver todas as propriedades possíveis que podemos deduzir dela (...). Exemplifiquemos. Visto que Júlio César haverá de tornar-se ditador perpétuo e senhor da Republica e suprimirá a liberdade dos romanos, esta ação está contida na sua noção,  porquanto supomos ser da natureza da noção perfeita dum sujeito compreender tudo acerca dele, a fim de que o predicado aí se conter ut  possit inesse subjecto. Poder-se-ia dizer não ser devido a esta noção ou ideia que César praticaria tal ação, pois ela só lhe convém porque Deus sabe tudo. Insistir-se-á, porém, na correspondência de sua natureza ou forma com esta noção e, desde que Deus lhe impôs essa passagem, é-lhe doravante necessário satisfazê-la” (Discurso de metaf., 13, p. 128, in “Os Pensadores”, op. cit.).

ãLogo, para Deus, as proposições, sejam elas lógicas (analíticas) ou se refiram a questões de fato, são todas analíticas, pois conhecendo Deus todos os atributos que determinaram a noção do sujeito ou substância, saberá todos os predicados que estão contidos na ideia do referido sujeito. E a proposição cujo predicado está contido no sujeito é analítica.
Sobre isso, diz Bertrand Russell:

“Quando muitos predicados podem ser atributos de um sujeito, não podendo este sujeito ser transformado em predicado de qualquer outro sujeito, chama-se esse sujeito substância individual” (A filosofia de Leibniz, p. 12, São Paulo, op. cit.).

A substância é um sujeito individual que se determina e se caracteriza por seus predicados. Se é individual, o conjunto de seus predicados deve diferir do conjunto dos predicados de outra substância. Por conseguinte, não podem existir duas substâncias idênticas, quer dizer, os predicados de uma substância nunca são todos iguais aos predicados de uma outra substância, existindo pelo menos um predicado de uma que não exista na outra. É o que diz Leibniz:

“Observei também que, em virtude das variações insensíveis, duas coisas individuais não podem ser completamente semelhantes, devendo sempre diferir uma da outra mais do que [pelo] número” (N. E., Prefácio, p. 14; ver também p. 15).

Se duas coisas só diferissem pelo número, seriam iguais. Ou seja, o número não é suficiente para distinguir uma substância de outra, pois na própria contagem, ao me referir a uma, automaticamente estaria me referindo também a outra. Ademais, devem diferir também por algo além do espaço e do tempo, isto é, devem se diferenciar por alguma característica intrínseca, pois do contrário, em face do princípio da razão suficiente, Deus não teria razão para criar uma mais do que a outra e, portanto, não teria criado nenhuma. Chama-se isso princípio da identidade dos indiscerníveis, pelo qual duas coisas idênticas seriam indiscerníveis e, logo, não seriam duas, pois não se poderia distinguir uma da outra. Por isso, não há duas (ou mais) coisas indiscerníveis no mundo. Afirma Leibniz: “ Por [= colocar no mundo] duas coisas indiscerníveis é admitir a mesma coisa sob dois nomes. Assim a hipótese de que o universo poderia ter tido primeiro uma posição temporal e local do que a que aconteceu efetivamente, e que entretanto todas as suas partes teriam a mesma posição relativa que a recebida com efeito, é uma ficção impossível” ( Correspopndência com Clarke, Quarta Carta de Leibniz. P. 183, in “Os Pensadores”, op. cit.).
E continua na mesma obra:

“ De fato, dois estados indiscerníveis são o mesmo estado, e porconseguinte é uma mudança que não muda nada. Além disso é uma coisa sem pé nem cabeça (sem nenhuma razão). Ora, Deus não fez nada sem razão, e é impossível que aqui haja alguma. De resto seria agendo nihil agere” (idem, p. 183).

E, na página seguinte, acrescenta:

“Quando duas coisas são igualmente boas, e tanto nelas como em sua combinação com outras, uma não sobrepuja em valor a outra. Deus não produzirá nenhuma” (idem, p. 184)[1].

Segue-se daí que as substâncias são criadas em obediência ao princípio da razão suficiente e só poderiam ser o que realmente são. Leibniz afirma que as proposições sintéticas (ou seja, as que exprimem as verdades de fato, na linguagem de Leibniz) são formuladas mediante o princípio da razão suficiente e as proposições analíticas (que exprimem as verdades da razão, na terminologia leibniziana) pelo princípio de identidade ou de contradição ( ex.: “o círculo é redondo, o quadrado não é círculo” etc.). Por isso, somente estas últimas são necessárias, pois o seu contrário [ não estou dizendo que necessariamente “quadrado seja o contrário de “redondo”, a não ser “por convenção”, isto é, “por definição”), pois o seu contrário implicaria contradição. Posso asseverar que “tal gato não é branco” e que “o sol não nascerá amanhã” e não seria contraditório dizer o contrário dessas proposições. Mas com relação às proposições analíticas não se pode fazer o mesmo: não se pode dizer que “tal gato branco não seja branco”, nem que “o círculo não seja redondo”, pois nessas proposições o predicado já se acha contido no sujeito como identidade, sendo impossível que não sejam o que são. As verdades analíticas, (da razão) são a priori e as verdades sintéticas (de fato, empíricas) são a posteriori (pelo menos para o homem).
As verdades analíticas são eternas e universais. Porém tais verdades são apenas hipotéticas, não afirmando nada sobre a realidade, nada sobre a existência do sujeito em questão. Por exemplo: "um trilátero têm três lados”.  Ora, o que eu digo não é que exista um trilátero na realidade, mas sim que " se existe um trilátero, ele deverá ter três lados”. Logo, é obrigatório (necessário) que “um trilátero tenha três lados”, que “um gato branco seja branco”, que um círculo seja redondo”, que “a janela seja menor que a casa” etc.
Vejamos a seguinte proposição analítica – ou “proposição frívola”, como diz Locke ( Ensaios sobre o entendimento humano, IV, cap. VIII, edição brasileira de “Os Pensadores”, São Paulo, Abril Cultural, 1978) – “uma ostra é uma ostra”. Esta é uma proposição inútil, pois apenas repete no predicado o que já se sabe no sujeito, quer dizer, o predicado nada acrescenta ao sujeito. Poderíamos dizer também: “ todo homem sábio é homem” ou “todo homem sábio é sábio”. Nestes últimos exemplos, embora o predicado nada de novo adicione ao sujeito, notamos que pode esclarecê-lo, que a noção do sujeito é complexa e que o predicado é apenas uma parte do sujeito. Temos a capacidade, então, de elaborar várias proposições a partir de um sujeito composto (ideia complexa) de várias ideias. Exemplos:




[1] Cf.: op. cit., p. 196; ver ainda Novos ensaios... pp. 15, 61, 172,173, 240, passim

1)      todo homem baixo, gordo e branco é homem;
2)      todo homem baixo, gordo e branco é baixo;
3)      todo homem baixo, gordo e branco é gordo;
4)      todo homem baixo, gordo e branco é branco.
Em cada proposição, o predicado faz parte da ideia complexa do sujeito. Se convencionarmos para todo homem baixo, gordo e branco = A,  e para homem = a, baixo = b, gordo = c, e braço= d, expressaremos, na linguagem da Teoria dos Conjuntos, as proposições acima, assim:

a pertence a A
b pertence a A
c pertence a A
d pertence a A

            Ou seja, os elementos a, b, c, d, pertencem ao conjunto (a uma totalidade) A, e tais afirmações formam proposições analíticas, porque basta analisarmos a ideia complexa do sujeito A para verificarmos que todos os predicados derivam dela, tudo isso sem necessidade de comprovação pela experiência. É suficiente entendermos o significado das ideias conectadas no sujeito para podermos formular as referidas proposições.
            Por outro lado, se digo “todo homem é mortal” refiro-me a todos homens, homens do passado, do presente e a todos os que ainda vão nascer em todo o Universo. Incluo Pedro, João, Antônio etc. E como a noção de mortal não está logicamente contida na ideia de homem (sendo a noção de mortal até mais ampla do que a de homem), então ela foi vinculada à ideia de homem por uma experiência limitada. Assim, a proposição “todo homem é mortal” não será analítica, mas sintética (pelo menos para a raça humana). Se for verdade que todos os homens são mortais, então a proposição será analítica; mas como o homem não pode fazer uma análise sobre o gênero humano (que pode perdurar indefinidamente), para saber se a proposição é verdadeira, conclui-se que só Deus saberia se a proposição todo homem é mortal  seria analítica. Se identificarmos todo homem é mortal = B e Pedro = a, João = b, Antônio = c, José = d ... então:

a pertence a B ( o elemento a pertence ao conjunto B)
b pertence a B  
c pertence a B
d pertence a  B                                 
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Podemos notar imediatamente que não é possível contarmos o número de indivíduos aos quais convêm o predicado mortal – isto é, o número de elementos que pertencem à classe ou “conjunto dos mortais” – pois para isso teríamos que recorrer à experiência (humana) e esta jamais forneceria a totalidade dos casos. As verdades gerais da experiência – as leis - só podem ser formuladas pela indução e esta é sempre limitada. Mas todas as proposições verdadeiras foram de uma vez por todas fixadas pela onisciência, onipotência e presciência de Deus e por isso, para Ele, toda e qualquer proposição verdadeira deve ser analítica, não existindo para Deus um problema como esse – ou seja – não há para Deus distinção entre juízos analíticos e sintéticos, mesmo que Leibniz talvez não tenha percebido ou aclarado bem esse assunto. Quer dizer, não é possível fazer   distinção entre verdades de fato e verdades da razão, na filosofia de Leibniz. E podemos afirmar isso com base nos próprios textos de Leibniz. Senão, vejamos:

“na mais insignificante das substâncias, olhos como o de Deus poderiam ler todo o desenrolar presente e futuro das coisas que compõem o universo” (Novos ensaios sobre o entendimento... prefácio, p. 13).

 Por isso, Filaleto ( que nos Novos ensaios... expõe as ideias de Locke) objeta que:

 “as proposições gerais que formamos sobre as substâncias são na maioria frívolas [analíticas], se forem certas (verdadeiras). E quem sabe as significações das palavras: substância, homem, animal, forma, alma vegetativa, sensitiva, racional, formará várias proposições indubitáveis, porém inúteis (Novos ensaios... IV, VIII, p. 348).

Inúteis porque dizem exatamente o que já se sabe. Pelo que se deduz que o conhecimento que Deus tem sobre as coisas é completamente inútil.
Ora, a distinção entre proposições analíticas e sintéticas só existe numa perspectiva humana, na expectativa de nossa ignorância de ser finito, e não do ponto de vista do conhecimento que Deus possui das coisas, pois seria contraditório para Deus que as coisas não fossem exatamente o que são, porque isso seria violar os decretos ou desígnios divinos. Se uma coisa se define pelo conjunto de seus caracteres (ou predicados), então ela só será o que será se tiver exatamente aquele conjunto de predicados. Do contrário, se descaracterizaria, perderia sua natureza e não seria a coisa em questão. Ademais, o próprio Leibiniz admite[1] que as verdades de fato dependem das verdades da razão. Em conclusão: não existe nenhuma razão para que Leibniz faça distinção entre verdade de fato e verdade da razão. Por isso, a crítica que Clarke faz de que essa filosofia leva inevitavelmente à necessidade, ao destino, à sina, ao fatalismo, é consequente e permanece.

ONTOLOGIA: A SUBSTÂNCIA E A HARMONIA PREESTABELECIDA

Leibniz, no Discurso de metafísica, diz que “uma substância só poderá começar por criação e só por aniquilamento perecer” ( Discurso de metafísica, § 9, p. 125, in “Os Pensadores”, op. cit.).
Deus é criador das substâncias e estas existem por definição lógica. Deus criou este mundo como o melhor dos mundos possíveis porque, pelo princípio da razão suficiente pelo qual Deus escolhe sempre o melhor, não poderia ELE ter criado outro (mundo), pois este outro não seria o melhor. E por que não seria o melhor? Porque os elementos ou substâncias que o constituiriam não seriam co-compatíveis, ou seja, não seriam compossíveis entre si, para compor o mundo mais pleno ou o mais perfeito possível. A  co-compatibilidade  pode ser explicada assim: suponhamos que Deus, ao resolver criar o mundo, só dispusesse de três “elementos”, a saber, a água, o fogo e a terra. Com esses elementos, ELE poderia criar vários tipos de mundos possíveis. Se desejasse, criaria um mundo só de água, ou só de fogo ou só de terra. Mas um mundo assim, de um só elemento seria muito pobre. E tal não seria o melhor mundo possível, o mais perfeito, o mais pleno possível (está implícito, aqui, o princípio de que “é melhor criar o máximo do que o mínimo”). Se criasse um mundo carente assim, algum “vazio” estaria subsistindo[2] e que bem poderia ser “preenchido”, já que, criando um mundo de um só elemento, deixaria dois outros elementos sobrando, numa espécie de “limbo”, sem serem utilizados.



[1] Cf.: Novos ensaios... IV, cap. II, p. 300, passim.
[2] Ver Monadologia, p. 100; Discurso de metafísica, § 3, pp. 120-121, passim (in “Os Pensadores”, op. cit.).

 E se Deus quisesse criar o mundo com dois elementos? Teria o poder de criar um mundo composto de água e de terra, ou um mundo de terra e de fogo, mas não poderia criar um mundo de água e de fogo, porque essas duas substâncias, sozinhas, não seriam compatíveis entre si, pois o fogo evaporaria a água ou a água apagaria o fogo, tal como o gato e o cachorro, sozinhos, não seriam compossíveis. Por outro lado, este ainda não seria o mundo melhor possível, pois teria somente dois elementos, quando Deus dispunha de três. Então, Deus teria a prerrogativa de criar um mundo com três elementos – água, fogo e terra –  pois se  água e fogo, sozinhos, seriam incompatíveis, os três juntos seriam co-compatíveis entre si, já que a terra, colocada entre a água e o fogo, impediria que um viesse a destruir o outro. Quer dizer, existem muitas substâncias, numa espécie de limbo, que seriam compossíveis entre si, mas outras não.
Portanto, podemos dizer que Deus possui num limbo um número X de elementos que, combinados entre si, criariam N mundos diferentes. Entretanto, desses vários mundos possíveis, alguns não poderiam ser reais (criados) porque, neles, certos elementos “insociais” teriam “incompatibilidades de gênios” e, consequentemente, tais mundos seriam mais pobres de elementos, ou estariam fadados ao fracasso ou até nem poderia ser possível sua existência. Se Deus pudesse criar um mundo com 200 elementos e soubesse que 135 desses elementos do total (200) seriam incompatíveis entre si, então o mundo a ser criado só poderia ter 65 elementos. Então Deus, como onisciente que é, saberia de antemão que esse mundo de 200 elementos seria impossível e não iria “perder tempo” em criá-lo. Portanto, seria melhor criar um mundo de 100, ou 90, ou 80 elementos que permanecessem, do que um mundo de 200 elementos, instável, que depois ficasse reduzido a 65 elementos etc. Deus na verdade é um grande matemático que sabe jogar xadrez como ninguém, que sabe combinar, dispor, os vários elementos ou alternativas entre si, até conseguir compor o maior número de elementos compossíveis entre si, e então criar um mundo realmente efetivo, estável, garantido – enfim, que possa ser o melhor dos mundos possíveis.
Quer dizer, Deus poderia ter a prerrogativa de criar os mundos A ou B ou C ou D ou E ou F etc., e, no entanto, escolheu criar exatamente o D e deixou de lado, evitou criar, os mundos A, B, C, E, F etc., certamente porque o mundo D seria o que mais permitiria vir à lume, vir à existência, o maior número possíveis de elementos compatíveis entre si, sendo consequentemente o melhor dos mundos possíveis, o melhor mundo que poderia existir. Logo, nosso mundo existe por definição matemática e Deus, agindo pelo princípio do melhor (é melhor criar o mais do que o menos), fatalisticamente não teria liberdade de criar outro e estaria, ELE próprio, sujeito à necessidade, ao destino, conforme a filosofia de Leibniz (cf. Da origem das coisas, p. 160; Discurso de metafísica, 31, p. 147; Correspondência de Clarke: quinta réplica de Clarke, p. 226, in “Os Pensadores”, op. cit.).

Em outras palavras, este mundo atual foi o melhor que Deus pôde fazer, mesmo criando ruindades como os políticos e seus amos, os banqueiros... Imagine como seria o pior dos mundos possíveis...

O NOSSO MUNDO REAL

Existem no nosso mundo real, substâncias simples (mônadas) e substâncias compostas (agregados de mônadas, isto é, a matéria). Mônada, para Leibniz, é uma unidade simples, indecomponível, em número infinito e dotado de percepção e tendência, quer dizer, não é inerte, mas dinâmica. Leibniz não confunde extensão com substância (simples), como o fez Descartes, que considera a extensão exatamente a principal característica da matéria. Para Leibniz, a substância primitiva, a mônada, é simples, enquanto que a extensão é composta e divisível infinitamente. Portanto, a essência dos corpos não poderia ser a extensão, mas a força. A essência dos corpos, para Leibniz, é a força, o dinamismo. Mesmo sendo a substância (mônada) una, sem extensão e indivisível, ela entra na composição da matéria através de uma agregação de infinitas substâncias simples ou mônadas. Diz Leibniz:

“A Mônada, de que falaremos aqui, é apenas uma substância simples, quer dizer, sem partes. Visto que há compostos [de matéria], é necessário que haja substância simples, pois o composto é apenas a reunião ou agregatum dos simples. Ora, onde não há partes, não há extensão, nem figura, nem divisibilidade possíveis, e, assim, as Mônadas são verdadeiros Átomos da Natureza, e, numa palavra, os elementos das coisas. Delas também não há a temer qualquer dissolução: é inconcebível que uma substância simples possa perecer naturalmente. Pela mesma razão, é inconcebível que uma substância simples possa começar naturalmente, pois não poderia formar-se por composição. Assim, pode dizer-se que as Mônadas só podem começar ou acabar instantaneamente ou, por outras palavras, só lhes é possível começar por criação e acabar por aniquilamento [ e isto só pode ser feito por Deus], ao passo que todo composto começa ou acaba por partes” (Monadologia, §§ 1-6, p. 105, in “Os Pensadores”, op. cit.).

Ou seja, se a mônada não tem nascimento ou perecimento, só pode existir pela criação de Deus, e só pode se acabar pela onipotência de Deus – o que, felizmente, até agora, não aconteceu...
Essa ideia de mônada certamente deriva da visão matemática que Leibniz tem do mundo. A princípio, a ideia de mônada parece absurda, contrária ao senso comum, mas a ideia da matemática tradicional (derivada de Euclides, matemático grego da Antiguidade, autor de “Os elementos) não é menos absurda. Para o senso comum, “nada somado com nada e mais nada, resulta em nada”. Mas na Geometria tradicional, a coisa é diferente: “ nada somado com nada e mais nada, resulta em algo”. Como? Vejamos o que dizem os geômetras partidário do conceito de espaço euclidiano ( conceito esse que Isaac Newton aceitou). Esses geômetras dizem que um ponto (matemático) não tem dimensão: nem comprimento, nem altura, nem largura. Ora, aquilo que não tem dimensão alguma não existe  na “realidade”. Mas, para esses matemáticos, se juntarmos vários pontos numa direção, eles formam uma linha, que tem apenas uma dimensão: o comprimento. Ora, aquilo que só tem comprimento, mas não tem largura nem altura, é algo que não existe na “realidade”. No entanto, se juntarmos várias linhas numa determinada direção, teremos um plano, que é algo que tem duas dimensões: comprimento e largura, mas não tem altura (espessura). Ora, aquilo que só têm comprimento e largura mas não tem espessura, não existe na “realidade”. No entanto, continuam esses geômetras, se juntarmos vários planos numa determinada direção, formaremos, por exemplo, um cubo. E como este tem três dimensões – comprimento, largura e altura – existe na nossa realidade. Logo a nossa realidade tridimensional é formada pela soma ou agregado de vários “nadas”.  E é isto que se ensinava na Escola até bem pouco tempo e ainda se ensina em alguns lugares. E tal  Geometria, nos serviu por mais de dois mil anos e ainda serve, em nossa vida cotidiana. Somente com a nova concepção de espaço-tempo da Teoria da Relatividade (Albert Einstein), essa Geometria euclidiano foi superada. É essa Geometria tradicional que certamente inspirou essa teoria das mônadas como raízes e fundamentos do mundo. Mas se as mônadas não tem dimensões, são verdadeiras “almas”: - então como podem formar esse nosso mundo perceptível, visível, palpável? Ora a resposta só pode ser esta: o mundo que nós vivenciamos, que percebemos, é apenas uma aparência ( = o que aparece) – isto é, o nosso mundo é apenas um fenômeno.
Para Leibniz, um corpo visível, perceptível, é apenas um agregado de mônadas. Como as mônadas não tem dimensões, como já se disse, elas se assemelham aos pontos matemáticos: não tem comprimento, nem largura nem altura. No entanto, juntando-se uma “porção” delas, acabam por se apresentarem sob a forma de algo com/no espaço e tempo, de modo que uma substância composta (corpos, matéria) não passa de um fenômeno. Quer dizer, o mundo é uma mera representação (da mente), uma espécie de fantasmagoria. Este tipo de filosofia é na verdade, uma forma de Idealismo[1].




[1] De modo geral, costuma-se dividir a Filosofia em dois grandes Sistemas: 1) Materialismo (ou Realismo) e 2) Idealismo (ou Espiritualismo). Definir com exatidão cada um deles é questão polêmica, mas faremos uma definição simplificada. O materialismo diz que a Matéria é princípio de tudo e que o espírito deriva dela; nossas faculdades espirituais são apenas epifenômenos da matéria. Lênin, por exemplo, diz ( “Materialismo e empiriocriticismo”, vol. XIV, p. 17, in Obras Completas, 40 vols., Madrid, Ayuso/Akal Editor, 1974-1978) : o materialismo é o “reconocimiento de los ‘objetos en sí’ o fuera de la mente; las ideas y las sensaciones son copias o reflejos de estos objetos. [Para] La doctrina opuesta, el idealismo: los objetos no existen ‘fuera de la mente’; los objetos son ‘cobbinaciones de sensaciones’”. [isto é, representações mentais]. Quer dizer, o materialismo reconhece a existência de objetos – matéria – fora da nossa mente, do nosso pensamento, mas sobre o que seja a natureza da matéria pouco se sabe: é apenas algo que existe “fora da nossa mente”. Já o Idealismo diz que o princípio de tudo é uma Ideia ou Espírito, mas  também pouco se sabe sobre a natureza dessa Ideia. De modo simplificado, existem duas formas de Idealismo: 1) o Idealismo Objetivo, que diz que tal Espírito ou Ideia existe objetivamente, fora da mente humana , e tudo deriva dele, ou por criação ou emanação; 2) e o Idealismo Subjetivo, que se subdivide em Idealismo Intersubjetivo ( que reconhece a existência de outras mentes) e o Idealismo Subjetivo Solipsista, que só reconhece a existência de uma única mente no mundo ( que é a minha: estou sozinho no mundo e tal mundo não existe na “realidade”, mas é apenas um sonho da minha mente).

O próprio espaço-tempo em que estão os agregados de mônadas não passam de meras relações entes ideias, ficções, e não substâncias em si mesmos, primitivas, originárias.[1] Os corpos simples podem compor os minerais, os vegetais e os animais (inclusive o homem). Deus seria a Mônada Suprema. A alma humana seria a mônada mais importante do corpo humano que, como agregado, seria constituído de mônadas hierarquicamente dispostas, das mais baixas às mais altas. Ou seja, das que possuem as percepções mais confusas até as que tem os pensamentos mais claros e mais distintos (as almas racionais). Tal como existe uma hierarquia entre as mônadas que compõem o corpo humano, há também uma hierarquia nas mônadas que formam os corpos da Natureza (física): reino mineral, vegetal e animal. Assim, quanto mais se desce na escala dos seres – Deus, homem, animal irracional, vegetal..., mineral – tanto mais obscura, opaca e confusa se torna a percepção das mônadas, que só “agem” harmonicamente com outras por uma predisposição colocada nelas por Deus. As mônadas possuem força representativa e força apetitiva e por isso todas elas tem percepção (até as mônadas dos minerais) e não somente a mônada-alma do homem, embora nem todas elas percebam que percebem ( são as inconscientes ou passivas). A percepção consciente é a Apercepção, que, no homem, seria o ato da unificação das múltiplas relações das diversas mônadas que compõem o corpo humano – não por influência de uma(s) sobre a(s) outra(s), mas por uma predisposição originária ( =  a Harmonia preestabelecida). Por isso, cada mônada conserva em si sua própria percepção e é apenas por coincidência que a percepção (ou sonho) de uma mônada corresponde à percepção (ou sonho) de outra, porque cada mônada é, a priori, uma ilha, mas é também um espelho do mundo. E acrescenta Leibniz:

“Não há meio de explicar como a mônada possa ser alterada ou modificada em seu íntimo por outra criatura qualquer, pois nada se lhe pode transpor, nem se pode conceber nela algum movimento interno que, de fora, seja excitado, dirigido, aumentado ou diminuído lá dentro, como nos compostos onde há mudanças entre as partes. As mônadas não tem janelas por onde qualquer coisa possa entrar ou sair” [dela] (Monadologia, § 6, p. 105, op. cit.).

Ora, se as mônadas não tem janelas e, portanto, não agem umas sobre as outras, então como se comunicam entre si, ou seja, como explicar o conhecimento? Como justificar a regularidade entre os fenômenos (as leis científicas) e como explicar as relações entre a alma e o corpo?



[1] Cf. Correspondência com Clarke, Quinta carta de Leibniz, § 10 p. 203; § 15 p. 205; § 18 p. 207; § 29 p.209 e § 41 p. 214 (in  “Os Pensadores”, op. cit.).


Já que as mônadas não agem, não se comunicam, umas com as outras, então o conhecimento se explica pelas ideias inatas, como se viu anteriormente. E tanto as ideias inatas como a regularidade dos fenômenos do mundo acontecem por meio da harmonia preestabelecida, criada por Deus (essa harmonia preestabelecida é semelhante ao paralelismo psicofísico, inventado pelos discípulos de Descartes). Continua Leibniz:

“Estes princípios permitiram-me explicar naturalmente a união, ou melhor, a conformidade da alma e do corpo orgânico. A alma segue suas próprias leis, e o corpo também as suas, e ambas se ajustam devido a harmonia preestabelecida entre todas as substâncias, pois todas elas são representações de um só universo” (Monadologia, § 78, p. 113, op. cit.).

Exemplificando: se eu ordeno ao meu braço que ele se mexa e ele se move, pode parecer que a alma deu uma ordem e foi obedecida, quer dizer, pode parecer que a alma tenha alguma relação com o braço, algum poder sobre ele, mas isso na realidade é falso. O que na verdade acontece é que, quando Deus criou o mundo, isto é, criou as mônadas (as sementes ou elementos que constituem o mundo), sincronizou-as de tal modo que sempre que os estados interiores de uma mônada (como a Alma humana, por exemplo) ocorrem, os estados interiores de outra(s) mônada(s) ocorrem também e do mesmo modo, mas por mera coincidência. Porém tal coincidência não é fruto do acaso: tal sincronização foi previamente estabelecida por Deus, desde a eternidade. As mônadas, portanto,   são    co-sentidoras ( = sentem com), umas sentem  a mesma coisa que as outras sentem (cf. Quinta carta de Leibniz, ou Resposta à Quarta réplica de Clarke, p. 210, op. cit.). Daí a coincidência entre o meu pensamento que ordena que meu braço se mova e o movimento que o meu braço faz. Em outros termos, todos os meus estados mentais foram programados de tal modo que coincidem, em sua totalidade, com todos os movimentos do mundo corporal que por ventura eu venha a mexer, ordenar, movimentar. Isto me faz pensar que eu estou movimentando o mundo, criando movimento novo, quando na realidade, o que eu consigo movimentar é apenas o que já estava programado por Deus. E aquilo que eu não conseguir mexer ( e que me dá a consciência de impotência) é o que não foi programado pela harmonia preestabelecida por Deus. Ou foi programado para não acontecer. Veja-se o que Leibniz escreve:

“A harmonia ou correspondência entre a alma e o corpo não é um milagre perpétuo, mas o efeito ou a sequência de um milagre primordial feito na criação das coisas, como são todas as coisas naturais (...). A expressão ‘harmonia preestabelecida’ é um termo técnico, confesso, mas não um termo que não explica nada, pois é explicado muito inteligivelmente, e a ele nada se objeta indicando alguma dificuldade. Como a natureza de cada substância simples, a alma ou verdadeira mônada, é tal que seu estado seguinte é consequência de seu estado precedente, eis a causa da harmonia já encontrada do todo. Com efeito, Deus precisa apenas fazer, uma vez e primeiramente, que a substância simples seja uma representação do universo, conforme o seu ponto de vista: pois que só disso se segue que ele o será perpetuamente, e que todas as substâncias simples terão sempre uma harmonia entre si, uma vez que representam sempre o mesmo universo” (Quinta carta de Leibniz a Clarke,  §§ 89, 90, 91, p. 211, in “Os Pensadores”, op. cit.)[1].

A harmonia preestabelecida, em verdade, compromete a liberdade do homem e Clarke tem razão quando objeta que Leibniz “supõe que todos os movimentos de nossos corpos são necessários e produzidos por um impulso mecânico da matéria, a qual é totalmente da alma; mas não posso deixar de crer que essa doutrina conduz à necessidade e ao destino” (Quinta réplica de Clarke a Leibniz, § 92, p. 226). E Clarke continua, à página 229 (op. cit., idem):

“Com efeito, se a harmonia preestabelecida é verdadeira, um homem não vê, não ouve e não sente nada, nem move de maneira alguma seu corpo: imagina somente ver, ouvir, sentir e mover seu corpo. E se os homens se persuadissem de que o corpo humana não passa de uma máquina, e de que todos os seus movimentos, que parecem voluntários, são produzidos pelas leis necessárias de um mecanismo natural, sem nenhuma influência ou operação da alma sobre o corpo, concluiriam logo que essa máquina é o home todo; e que a alma harmônica, na hipótese de uma harmonia preestabelecida, é apenas uma pura ficção e uma vã imaginação”.

Não só a harmonia preestabelecida leva ao destina, ao necessitarismo, à sina, ao fatalismo, como também o Princípio da Identidade dos Indiscerníveis. Como bem o diz Clarke, se duas coisas a serem criadas por Deus forem iguais, Deus ficará indeciso e não criará nenhuma, como no caso da fábula do “asno de Buridan”, passivo, pois não terá razão de criar uma mais do que a outra (cf. Quinta réplica de Clarke a Leibniz, p. 219, passim, op. cit.).
Por outro lado, se as coisas são todas diferentes (como sustenta Leibniz), Deus criará sempre a melhor dentre elas e, portanto, está determinado a escolher essa coisa tal e não uma outra. De qualquer modo, cai na escolha obrigatória.
Leibniz diz que o princípio da razão suficiente é apenas inclinante e não necessitante, o que permite a liberdade. Meras palavras, pois se Deus já previu tudo, com sua onisciência, as razões inclinantes são iguais às razões necessitantes. O problema é que os filósofos modernos querem salvar a ciência e asseguram que só existe ciência se houver necessidade nas leis da Natureza. 



[1] “É verdade que, a meu ver, a alma não perturba as leis do corpo, nem o corpo as da alma, e que somente entram em acordo, um agindo livremente, segundo as regras das causas finais, e o outro maquinalmente, conforme as leis das causas eficientes” (Correspondência com Clarke, quinta carta de Leibniz, § 32, p. 211, op. cit.). E isto não retira a liberdade da alma, segundo Leibniz, sendo o homem o conjunto dos dois tipos de lei: lei das causas finais (liberdade) e lei das causas eficientes (necessidade, mecanicismo). Este texto pode ser visto como um esboço primitivo da versão de Kant pela qual o homem deve ser visto como noumeno e como fenômeno, ao mesmo tempo.

Mas se houver necessidade nas leis da Natureza – objetam outros – como então haverá liberdade para o homem fazer escolhas? Leibniz não conseguiu conciliar a liberdade com a necessidade e acabou caindo – como os calvinistas – num fatalismo que se traduz exatamente como predestinismo. Este é o defeito principal das filosofias essencialistas, que admitem uma natureza a priori, “predatada”, para as coisas, comprometendo a liberdade e o destino do homem como ser livre e construtor de sua própria vida. Quer dizer, o problema é como conciliar a liberdade humana com a preciência de Deus.
Como Descartes e seus discípulos, como Spinoza e seus discípulos, ( e, mais tarde, Kant) Leibniz acabou caindo no paralelismo psicofísico,  pois sua harmonia preestabelecida nada mais é do que uma nova versão da estranha “teoria dos dois relógios”, inventada pelos discípulos de Descartes, a fim de salvar o mecanicismo do mestre ou, o que é pior, para praticar um parto infeliz de uma “vã imaginação”.
E, veja, Leibniz não era louco, não esteve internado em nenhum hospício da época. Ocupou cargos importantes no governo de seu país e foi um dos descobridores do Cálculo Infinitesimal (em concomitância, mas de modo independente, com Newton). Pelo contrário, foi considerado um gênio, especialmente em Matemática. Mas, ao misturar religião com ciência, certamente temeu ser perseguido e caiu num teologismo altamente comprometedor da liberdade do homem. Se não tivermos liberdade de escolha, onde fica a responsabilidade? Onde se fundamentará a Ética?



EXPRESSÕES E PALAVRA EM LATIM

Agendo nihil agere – agindo sem nada fazer
Agregatum – agregado
Nihil est in intellectu, quod non fuerit sensu, excipi: nisi ipse intellectus – nada existe no intelecto que não tenha provindo dos sentidos – salvo o próprio intelecto.
Ut possit inesse subjecto – como estando contido em baixo. No texto, significa que é algo inerente à noção do sujeito, no caso, César.