A FILOSOFIA
DE LEIBNIZ
Noé Martins de Sousa
(Professor de Filosofia da
Universidade Estadual do Ceará
de 12-08-1981 a 26-05-2012)
Fortaleza-Ceará-Brasil-
2016
A FILOSOFIA DE LEIBNIZ
Noé Martins de Sousa
(Professor de Filosofia da Universidade Estadual do
Ceará)
Gottfried Wilhelm Leibniz, filósofo e matemático alemão,
nasceu em Leipzig em 1646 e faleceu em Hannover em 1716. Formou-se em Direito
em 1666 e dedicou-se também à matemática e à política. Descobriu, ao mesmo
tempo que Newton, o cálculo infinitesimal e construiu uma máquina de
multiplicar. Exerceu várias missões diplomáticas, especialmente junto a Luís
XV, da França e Pedro o Grande, da Rússia. Como teólogo, tentou, com Bossuet, a
unificação das igrejas Católica e reformistas, tarefa que evidentemente
fracassou. Foi uma mente de envergadura universal, dominando a matemática, a
química, a geografia, a política, a historia, o direito, a teologia etc., mas
foi como filósofo e matemático que mais se destacou. Cristiano Wolff e Kant,
logo a seguir, iriam sofrer amplas influências de Leibniz. Por sugestão sua,
foi criada em Berlim a “Academia de Ciências”, da qual foi o primeiro
presidente.
Escreveu
uma vasta obra, mas, como filósofo, destacamos: Méditations sur la connaissance,
la vérité et les idées
(Meditações sobre o conhecimento, a verdade e as ideias - 1684); Nouveaux essais sur l’entendement humain (Novos
ensaios sobre o entendimento humano – 1704), em oposição aos “ensaios” de
Locke. Essais de théodicée (Ensaios
de Teodiceia – 1710), sendo o primeiro autor a usar o termo “Teodiceia”, para
significar o estudo de Deus pela razão, em oposição à Teologia revelada ou
dogmática. Hoje, Teodiceia é sinônimo de Teologia natural. E Monadologie (Monadologia – 1714).
O volume da coleção “Os Pensadores”
que traz textos de “Newton/Leibniz” (São Paulo, Abril S. A. Cultural, 1980, 2ª
edição, 1983), livro organizado e traduzido por Carlos Lopes Mattos, Pablo
Rubén Mariconda, Luiz João Baraúna, e Marilena de Souza Chauí, expõe, na página
98, os princípios que norteiam e fundamentam a filosofia de Leibniz. Vamos
expô-los aqui, para que o leitor tenha sempre em mente esses princípios, ao
fazer a leitura da obra de Leibniz. Esses princípios são:
1)
O princípio da Razão
ou princípios da razão: que são o princípio de não-contradição e o
princípio da razão suficiente. O princípio da não-contradição se fundamenta no
caráter lógico, correto, das proposições e demonstrações. Essa correção
metodológica parte do suposto que qualquer discurso inteligível não pode ter
contradição lógica. Por outro lado, o princípio da razão suficiente, diz que
tudo que existe tem uma razão de ser, um motivo, pois do contrário não
existiria. Isso nos parece um truísmo, mas na doutrina de Leibniz tem sua “razão
de ser”, como veremos no decorrer da exposição de sua filosofia.
2)
O
Finalismo implicando na escolha do
melhor: Deus não criou as coisas com base no princípio do “quanto pior melhor”,
mas no princípio de “quanto melhor, melhor”.
3)
O
Princípio da continuidade. Significa
que a Natureza não dá saltos e em toda mudança existe uma continuidade entre um
estado de coisas e outros. Se fôssemos transpor esse princípio para Biologia,
não seriam possíveis as “mutações” e, para o mundo social, não seriam aceitas
as “revoluções”, mas apenas reformas ( e gradativas), embora tal princípio
tenha sido fértil para Leibniz, quando aplicado à física e à Geometria.
4)
E
o Princípio da Identidade dos
Indiscerníveis – Para Leibniz não existem no universo duas coisas iguais,
pois elas seriam indiferenciáveis (indiscerníveis) e, logo, não seriam duas. A
diferença entre as coisas não seria numérica nem espaço-temporal, mas existiria
uma natureza intrínseca entre as coisas pelas quais umas se diferem das outras.
Toda coisa é um indivíduo.
Além disso, eu acrescentaria um
princípio mais geral, que está implícito na filosofia de Leibniz: é melhor criar do que não criar. Quer
dizer, Deus poderia não ter criado nada. Se criou, é porque achou melhor haver
existentes do que um vazio absoluto.
A TEORIA DO CONHECIMENTO DE LEIBNIZ
Leibniz não aceita o princípio empirista
que diz que “nada existe no intelecto que não proceda dos sentidos”. Escreveu o
livro “Novos ensaios sobre o entendimento humano” para refutar os “Ensaios” de Locke. Leibniz
afirma que nada existe no intelecto que
não tenha passado pelos sentidos – salvo o próprio intelecto (Nihil est in intellectu, quod non fuerit in
sensu, excipi: nisi ipse intellectu (Novos
ensaios sobre o entendimento humano,
Liv. II, cap. 1, p. 62, in “Os
pensadores”, Abril Cultural, S ão
Paulo, 1980).
Consequentemente, Leibniz aceita a
teoria das Ideias inatas. A mente
humana não é uma tabula rasa, mas já
nasce com as ideias, não em atos,
mas virtualmente (cf. op. cit., Liv. I), como
potências a serem
desenvolvidas posteriormente. Ele compara a mente humana com um bloco de
mármore virgem, sem a figura de Hércules, por exemplo, mas já trazendo em si alguns
veios que, sendo limpados, trabalhados e esculpidos, revelarão a figura do
herói grego (cf. op. cit., Prefácio,
p. 10). Desse modo, o intelecto já traz, a
priori, de forma latente, inata, as ideias. Os sentidos são úteis apenas
como estímulos para aclarar e ilustrar essas verdades ou ideias inatas e
eternas.
Assim,
exis[1].
Quer dizer, as ideias de um plano perfeito ou de um círculo perfeito, jamais
derivariam dos sentidos, embora se reconheça que nunca teríamos ideia de um ou
de outro se não existissem os planos e círculos sensíveis. Essas ideias dão
origem às proposições analíticas,
para usarmos a terminologia que Kant mais tarde iria empregar. tem duas fontes do
conhecimento: as verdades da razão e
as verdades de fato, isto é, o
entendimento e a sensibilidade. As verdades da razão originam-se de dentro do
intelecto, a priori, e são as
verdades universais, eternas, especialmente as verdades da matemática. Os
sentidos, como já se disse, servem somente para ilustrarem-nas e não para as
produzirem (cf. op. cit., I, pp. 33-34)
Mas
as verdades de fatos ou contingentes,
derivam dos sentidos e são empíricas: correspondem às proposições sintéticas, conforme a posterior linguagem kantiana.
Mas, como veremos adiante, pela teoria de Leibniz sobre as Mônadas, que “não tem janelas”, essa distinção das duas fontes do
conhecimento (ver op. cit., Prefácio,
p. 11), que deriva de Locke (para não remontarmos à Antiguidade), não poderia
ser aceita por Leibniz, porque, no fundo, para ele, todo conhecimento nasce do
interior das próprias mônadas sendo, consequentemente, inato (“não nascido” ou eterno, apenas revelado, após o nascimento
do ser humano). É o que afirma o próprio Leibniz: “ acredito mesmo que todos os
pensamentos e ações da nossa alma procedam do seu próprio fundo, sem que possam
ser fornecidos à alma pelos sentidos “ (op. cit., Liv. I, cap. I, p. 31; cf.
Liv. III, cap. IV, p. 234).
Para Leibiniz, todas as proposições
são redutíveis à forma sujeito-predicado, caso contrário não teria significado
real. Como diz Bertrand Russell, ele desconhece as proposições de relações. Um exemplo do seu desconhecimento da
importância das proposições de relações (que Bertrand Russell cita também em seu livro sobre “A
Filosofia de Leibniz”, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1968, ) está contido
numa passagem de sua (de Leibniz ) correspondência com Clarke: “ a razão ou
proporção entre duas linhas, L e M, pode
ser concebida de três modos: como razão do maior L ao menor M; como razão do
menor M ao maior L; e enfim como algo que abstrai dos dois, isto é, como razão
L e M, sem considerar qual é o anterior ou o posterior, o sujeito ou o objeto.
Assim é que são consideradas as proporções da música. Na primeira consideração,
L, o maior, é o sujeito; na segunda, M, o menor, é o sujeito desse acidente que
os filósofos chamam relação. Mas qual será o sujeito do terceiro caso? Não se poderia
dizer que ambos, L e M juntos, sejam o sujeito desse acidente, pois assim
teríamos um acidente em dois sujeitos, com uma perna num e outra noutro, o que
contraria a noção de acidentes.
Portanto, devemos dizer
que essa relação, nesse terceiro caso, está fora dos sujeitos, mas que, não se
tratando nem de substância nem de acidente, será, por força, uma coisa
puramente ideal” (Quinta Carta de Leibniz,
ou Resposta à Quarta Réplica de Clarke,
in Correspondência com Clarke, p. 202, coleção “Os Pensadores”, volume
“Newton/Leibniz (I)”, São Paulo, Abril Cultural, 1983). “As relações e as
ordens tem algo do ser de razão,
embora tenham o seu fundamento nas coisas; pois se pode dizer que a sua
realidade, como a das verdades eternas e das possibilidades, vem da razão suprema”
(Novos ensaios... – N. E. – Cap. XXV,
p. 170). Portanto, as relações são algo que, embora possuam fundamentos nas
coisas, não são reais, não são coisas, mas idealidades e sua “realidade” consiste em
serem pensadas pelos homens e/ou por Deus. Quanto às verdades eternas, elas são
inatas (não nascidas), pois existem
desde a eternidade no intelecto de
Deus[1].
Se
as relações são entes puramente ideais, então toda
proposição segue o modelo aristotélico-tomista de “sujeito-predicado”. “Em qualquer
proposição a menos que seja a existência o predicado em questão – diz Bertrand
Russell, expondo Leibniz – o predicado está de alguma forma contido no sujeito”
(“A filosofia de Leibniz”, p. 11, São
Paulo, Comp. Editora Nacional, 1968). Tais proposições, em que o predicado está
contido no sujeito, constituem as verdades da razão, as verdades necessárias ou
juízos (proposições) analíticos,
como os denominaria Kant mais tarde. Exemplos de juízos analíticos: “ o
trilátero tem três lados”. “o círculo é redondo”, “o gato branco é um gato”, “a
casa (inteira) não pode sair pela janela” (= o todo é maior do que a parte,
isto é, quando se trata de grandezas finitas) etc.
Mas
no que se refere às “verdades de fato” (ver Monadologia,
33, p. 108, op. cit.) que se referem a questões de existência, o predicado não
se acha contido tacitamente no sujeito, mas lhe é acrescentado por adição
(veremos adiante que isto não pode ser sustentado, coerentemente, em Leibniz).
A proposição “o sol nascerá amanhã” só poderá ser comprovada com base na experiência
e, portanto, não possui caráter de necessidade – são proposições sintéticas, na futura linguagem kantiana (não estou
aqui, querendo “kantizar” Leibniz, mas relacionar a terminologia de um com a do
outro). Todas as proposições que se referem a qualquer tipo de existência (das
coisas) – salvo a existência de Deus – segundo Leibniz, são contingentes e o
seu contrário não implica contradição. Podemos perfeitamente afirmar que “o sol
não nascerá”, que é contrária à proposição já afirmada anteriormente, que ambas
não são contraditórias e, portanto, não possuem necessidade lógica. As proposições
só são formalmente contraditórias entre si, se, e somente se, uma sendo
verdadeira, a outra terá que ser necessariamente falsa. Até porque, no caso das
proposições contrárias, ambas podem ser falsas. Exemplo: todo homem é branco/
nenhum homem é branco. Todo homem é louro/nenhum homem é louro.
Ora, no caso das proposições que se
baseiam na empiria (experiência), seu fundamento não é o princípio de
identidade (ou de contradição), mas o princípio da razão suficiente, segundo o qual tudo o que existe, existe por
alguma razão e essa razão é a escolha do
que há de melhor por parte de Deus (cf. Monadologia,
p. 110; cf. Discurso de metafísica,
pp. 120-121, in “Os Pensadores”, op.
cit.).
O
sujeito de uma proposição é definido pelo conjunto (totalidade, somatório) de seus predicados. Tomemos,
por exemplo, a noção de “César”. Podemos
conhecê-la através de vários predicados que lhe convém, como “César conquistou
a Gália”, “César atravessou o rio Rubicão”, “César foi ditador de Roma” etc.
Tais proposições, em que o predicado não se encontra identificado com o sujeito,
são sintéticas, como se disse, e não possuem qualquer caráter de necessidade. O
conjunto de predicados que constrói e caracteriza a noção de César forma a totalidade de seu conhecimento, do conhecimento
que se tem dele. Como nós humanos somos limitados, finitos, não podemos
conhecer a totalidade de seus predicados (de César) – que são infinitos – que
constituem a noção de César. Por isso, todos os predicados que se referem a
ele são contingentes ou factuais e sua atribuição ao seu jeito sempre
dependeria da experiência ou constatação dos fatos. Entretanto, Deus poderia
conhecer, a priori, a somatória,
isto é, a totalidade dos predicados convenientes ou atribuídos a César. É o que
diz Leibniz:
“Dissemos
que a noção duma substância individual encerra duma vez por toda, tudo quanto
pode acontecer, e considerando esta noção nela se pode ver tudo o que é
verdadeiramente possível enunciar dela, como na natureza do círculo podemos ver
todas as propriedades possíveis que podemos deduzir dela (...). Exemplifiquemos.
Visto que Júlio César haverá de tornar-se ditador perpétuo e senhor da
Republica e suprimirá a liberdade dos romanos, esta ação está contida na sua noção,
porquanto supomos ser da natureza da
noção perfeita dum sujeito compreender tudo acerca dele, a fim de que o predicado
aí se conter ut possit inesse subjecto. Poder-se-ia dizer
não ser devido a esta noção ou ideia que César praticaria tal ação, pois ela só
lhe convém porque Deus sabe tudo. Insistir-se-á, porém, na correspondência de
sua natureza ou forma com esta noção e, desde que Deus lhe impôs essa passagem,
é-lhe doravante necessário satisfazê-la” (Discurso
de metaf., 13, p. 128, in “Os
Pensadores”, op. cit.).
Logo,
para Deus, as proposições, sejam elas lógicas (analíticas) ou se refiram a
questões de fato, são todas analíticas,
pois conhecendo Deus todos os atributos que determinaram a noção do sujeito ou
substância, saberá todos os predicados que estão contidos na ideia do referido
sujeito. E a proposição cujo predicado está contido no sujeito é analítica.
Sobre isso,
diz Bertrand Russell:
“Quando muitos predicados podem ser atributos de um
sujeito, não podendo este sujeito ser transformado em predicado de qualquer
outro sujeito, chama-se esse sujeito substância individual” (A filosofia de Leibniz, p. 12, São
Paulo, op. cit.).
A
substância é um sujeito individual que se determina e se caracteriza por seus
predicados. Se é individual, o conjunto de seus predicados deve diferir do
conjunto dos predicados de outra substância. Por conseguinte, não podem existir
duas substâncias idênticas, quer dizer, os predicados de uma substância nunca
são todos iguais aos predicados de uma outra substância, existindo pelo menos
um predicado de uma que não exista na outra. É o que diz Leibniz:
“Observei também que, em virtude das variações insensíveis,
duas coisas individuais não podem ser completamente semelhantes, devendo sempre
diferir uma da outra mais do que [pelo] número”
(N. E., Prefácio, p. 14; ver também
p. 15).
Se duas
coisas só diferissem pelo número, seriam iguais. Ou seja, o número não é
suficiente para distinguir uma substância de outra, pois na própria contagem,
ao me referir a uma, automaticamente estaria me referindo também a outra.
Ademais, devem diferir também por algo além do espaço e do tempo, isto é, devem
se diferenciar por alguma característica intrínseca, pois do contrário, em face
do princípio da razão suficiente, Deus não teria razão para criar uma mais do
que a outra e, portanto, não teria criado
nenhuma. Chama-se isso princípio da
identidade dos indiscerníveis, pelo qual duas coisas idênticas seriam
indiscerníveis e, logo, não seriam duas, pois não se poderia distinguir uma da
outra. Por isso, não há duas (ou mais) coisas indiscerníveis no mundo. Afirma
Leibniz: “ Por [= colocar no mundo] duas coisas indiscerníveis é admitir a
mesma coisa sob dois nomes. Assim a hipótese de que o universo poderia ter tido
primeiro uma posição temporal e local do que a que aconteceu efetivamente, e
que entretanto todas as suas partes teriam a mesma posição relativa que a
recebida com efeito, é uma ficção impossível” ( Correspopndência com Clarke, Quarta Carta de Leibniz. P. 183, in “Os Pensadores”, op. cit.).
E continua
na mesma obra:
“ De fato, dois estados indiscerníveis são o mesmo estado,
e porconseguinte é uma mudança que não muda nada. Além disso é uma coisa sem pé
nem cabeça (sem nenhuma razão). Ora, Deus não fez nada sem razão, e é
impossível que aqui haja alguma. De resto seria agendo nihil agere” (idem, p. 183).
E, na
página seguinte, acrescenta:
“Quando duas coisas são igualmente boas, e tanto nelas como
em sua combinação com outras, uma não sobrepuja em valor a outra. Deus não produzirá
nenhuma” (idem, p. 184)[1].
Segue-se
daí que as substâncias são criadas em obediência ao princípio da razão
suficiente e só poderiam ser o que realmente são. Leibniz afirma que as
proposições sintéticas (ou seja, as que exprimem as verdades de fato, na
linguagem de Leibniz) são formuladas mediante o princípio da razão suficiente e
as proposições analíticas (que exprimem as verdades da razão, na terminologia
leibniziana) pelo princípio de identidade ou de contradição ( ex.: “o círculo é
redondo, o quadrado não é círculo” etc.). Por isso, somente estas últimas são
necessárias, pois o seu contrário [ não estou dizendo que necessariamente “quadrado seja o contrário de “redondo”, a não ser “por
convenção”, isto é, “por definição”), pois o seu contrário implicaria
contradição. Posso asseverar que “tal gato não é branco” e que “o sol não
nascerá amanhã” e não seria contraditório dizer o contrário dessas proposições.
Mas com relação às proposições analíticas não se pode fazer o mesmo: não se
pode dizer que “tal gato branco não seja branco”, nem que “o círculo não seja
redondo”, pois nessas proposições o predicado já se acha contido no sujeito
como identidade, sendo impossível que não sejam o que são. As verdades analíticas,
(da razão) são a priori e as
verdades sintéticas (de fato, empíricas) são a posteriori (pelo menos para o homem).
As verdades
analíticas são eternas e universais. Porém tais verdades são apenas hipotéticas,
não afirmando nada sobre a realidade, nada sobre a existência do sujeito em
questão. Por exemplo: "um trilátero têm três lados”. Ora, o que eu digo não é que exista um trilátero
na realidade, mas sim que " se existe um trilátero, ele deverá ter três
lados”. Logo, é obrigatório
(necessário) que “um trilátero tenha três lados”, que “um gato branco seja
branco”, que um círculo seja redondo”, que “a janela seja menor que a casa”
etc.
Vejamos a seguinte
proposição analítica – ou “proposição frívola”, como diz Locke ( Ensaios sobre o entendimento humano, IV,
cap. VIII, edição brasileira de “Os Pensadores”, São Paulo, Abril Cultural,
1978) – “uma ostra é uma ostra”. Esta é uma proposição inútil, pois apenas
repete no predicado o que já se sabe no sujeito, quer dizer, o predicado nada
acrescenta ao sujeito. Poderíamos dizer também: “ todo homem sábio é homem” ou
“todo homem sábio é sábio”. Nestes últimos exemplos, embora o predicado nada de
novo adicione ao sujeito, notamos que pode esclarecê-lo,
que a noção do sujeito é complexa e que o predicado é apenas uma parte do
sujeito. Temos a capacidade, então, de elaborar várias proposições a partir de
um sujeito composto (ideia complexa) de várias ideias. Exemplos:
1)
todo
homem baixo, gordo e branco é homem;
2)
todo
homem baixo, gordo e branco é baixo;
3)
todo
homem baixo, gordo e branco é gordo;
4)
todo
homem baixo, gordo e branco é branco.
Em cada
proposição, o predicado faz parte da ideia complexa do sujeito. Se
convencionarmos para todo homem baixo,
gordo e branco = A, e para homem = a, baixo = b, gordo
= c, e braço= d, expressaremos,
na linguagem da Teoria dos Conjuntos, as proposições acima, assim:
a pertence a A
b pertence a A
c pertence a A
d pertence a A
Ou seja, os elementos a, b, c, d,
pertencem ao conjunto (a uma totalidade) A,
e tais afirmações formam proposições analíticas, porque basta analisarmos a
ideia complexa do sujeito A para
verificarmos que todos os predicados derivam dela, tudo isso sem necessidade de
comprovação pela experiência. É suficiente entendermos o significado das ideias
conectadas no sujeito para podermos formular as referidas proposições.
Por outro lado, se digo “todo homem é
mortal” refiro-me a todos homens, homens do passado, do presente e a todos os
que ainda vão nascer em todo o Universo. Incluo Pedro, João, Antônio etc. E
como a noção de mortal não está logicamente contida na ideia de homem (sendo a
noção de mortal até mais ampla do que a de homem), então ela foi vinculada à
ideia de homem por uma experiência limitada. Assim, a proposição “todo homem é
mortal” não será analítica, mas sintética (pelo menos para a raça humana). Se
for verdade que todos os homens são mortais, então a proposição será analítica;
mas como o homem não pode fazer uma análise sobre o gênero humano (que pode perdurar
indefinidamente), para saber se a proposição é verdadeira, conclui-se que só
Deus saberia se a proposição todo homem é
mortal seria analítica. Se
identificarmos todo homem é mortal = B e Pedro = a, João = b, Antônio = c, José = d ... então:
a pertence a B ( o elemento a pertence ao conjunto B)
b pertence a B
c pertence a B
d pertence a B
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------------------------
------------------------
Podemos notar
imediatamente que não é possível contarmos o número de indivíduos aos quais
convêm o predicado mortal – isto é,
o número de elementos que pertencem à classe ou “conjunto dos mortais” – pois
para isso teríamos que recorrer à experiência (humana) e esta jamais forneceria
a totalidade dos casos. As verdades gerais da experiência – as leis - só podem
ser formuladas pela indução e esta é
sempre limitada. Mas todas as proposições verdadeiras foram de uma vez por
todas fixadas pela onisciência, onipotência e presciência de Deus e por isso,
para Ele, toda e qualquer proposição verdadeira deve ser analítica, não existindo
para Deus um problema como esse – ou seja – não há para Deus distinção entre
juízos analíticos e sintéticos, mesmo que Leibniz talvez não tenha percebido ou
aclarado bem esse assunto. Quer dizer, não é possível fazer distinção entre verdades de fato e verdades da
razão, na filosofia de Leibniz. E podemos afirmar isso com base nos próprios
textos de Leibniz. Senão, vejamos:
“na mais insignificante das substâncias, olhos como o de Deus poderiam
ler todo o desenrolar presente e futuro das coisas que compõem o universo” (Novos ensaios sobre o entendimento...
prefácio, p. 13).
Por isso, Filaleto ( que nos Novos ensaios... expõe as ideias de Locke) objeta que:
“as proposições gerais
que formamos sobre as substâncias são na maioria frívolas [analíticas], se
forem certas (verdadeiras). E quem sabe as significações das palavras:
substância, homem, animal, forma, alma vegetativa, sensitiva, racional, formará
várias proposições indubitáveis, porém inúteis (Novos ensaios... IV, VIII, p. 348).
Inúteis porque dizem exatamente o que já se sabe. Pelo que se deduz que o
conhecimento que Deus tem sobre as coisas é completamente inútil.
Ora, a distinção entre proposições analíticas e sintéticas só existe numa
perspectiva humana, na expectativa de nossa ignorância de ser finito, e não do
ponto de vista do conhecimento que Deus possui das coisas, pois seria
contraditório para Deus que as coisas não fossem exatamente o que são, porque
isso seria violar os decretos ou desígnios divinos. Se uma coisa se define pelo
conjunto de seus caracteres (ou predicados), então ela só será o que será se
tiver exatamente aquele conjunto de predicados. Do contrário, se
descaracterizaria, perderia sua natureza e não seria a coisa em questão. Ademais,
o próprio Leibiniz admite[1]
que as verdades de fato dependem das verdades da razão. Em conclusão: não existe nenhuma razão para que Leibniz
faça distinção entre verdade de fato e verdade da razão. Por isso, a
crítica que Clarke faz de que essa filosofia leva inevitavelmente à
necessidade, ao destino, à sina, ao fatalismo, é consequente e permanece.
ONTOLOGIA: A SUBSTÂNCIA E A HARMONIA PREESTABELECIDA
Leibniz, no
Discurso de metafísica, diz que “uma
substância só poderá começar por criação e só por aniquilamento perecer” ( Discurso de metafísica, § 9, p. 125, in “Os Pensadores”, op. cit.).
Deus
é criador das substâncias e estas existem por
definição lógica. Deus criou este mundo como o melhor dos mundos possíveis porque, pelo princípio da razão
suficiente pelo qual Deus escolhe sempre o melhor, não poderia ELE ter criado
outro (mundo), pois este outro não seria o melhor. E por que não seria o
melhor? Porque os elementos ou substâncias que o constituiriam não seriam co-compatíveis, ou seja, não seriam compossíveis entre si, para compor o
mundo mais pleno ou o mais perfeito possível. A
co-compatibilidade pode ser explicada assim: suponhamos que
Deus, ao resolver criar o mundo, só dispusesse de três “elementos”, a saber, a
água, o fogo e a terra. Com esses elementos, ELE poderia criar vários tipos de
mundos possíveis. Se desejasse, criaria um mundo só de água, ou só de fogo ou
só de terra. Mas um mundo assim, de um só elemento seria muito pobre. E tal não
seria o melhor mundo possível, o mais perfeito, o mais pleno possível (está
implícito, aqui, o princípio de que “é melhor criar o máximo do que o mínimo”).
Se criasse um mundo carente assim, algum “vazio” estaria subsistindo[2]
e que bem poderia ser “preenchido”, já que, criando um mundo de um só elemento, deixaria dois outros elementos sobrando, numa espécie de “limbo”, sem serem utilizados.
E se Deus quisesse criar o mundo com dois elementos? Teria o
poder de criar um mundo composto de água e de terra, ou um mundo de terra e de
fogo, mas não poderia criar um mundo
de água e de fogo, porque essas duas substâncias, sozinhas, não seriam
compatíveis entre si, pois o fogo evaporaria a água ou a água apagaria o fogo,
tal como o gato e o cachorro, sozinhos, não seriam compossíveis. Por outro
lado, este ainda não seria o mundo melhor possível, pois teria somente dois
elementos, quando Deus dispunha de três. Então, Deus teria a prerrogativa de
criar um mundo com três elementos – água, fogo e terra – pois se
água e fogo, sozinhos, seriam incompatíveis, os três juntos seriam co-compatíveis entre si, já que a
terra, colocada entre a água e o fogo, impediria que um viesse a destruir o
outro. Quer dizer, existem muitas substâncias, numa espécie de limbo, que
seriam compossíveis entre si, mas outras não.
Portanto,
podemos dizer que Deus possui num limbo um número X de elementos que, combinados entre si, criariam N mundos diferentes. Entretanto, desses
vários mundos possíveis, alguns não poderiam ser reais (criados) porque, neles,
certos elementos “insociais” teriam “incompatibilidades de gênios” e,
consequentemente, tais mundos seriam mais pobres de elementos, ou estariam
fadados ao fracasso ou até nem poderia ser possível sua existência. Se Deus
pudesse criar um mundo com 200 elementos e soubesse que 135 desses elementos do
total (200) seriam incompatíveis entre si, então o mundo a ser criado só
poderia ter 65 elementos. Então Deus, como onisciente que é, saberia de antemão
que esse mundo de 200 elementos seria impossível e não iria “perder tempo” em
criá-lo. Portanto, seria melhor criar um mundo de 100, ou 90, ou 80 elementos
que permanecessem, do que um mundo de 200 elementos, instável, que depois
ficasse reduzido a 65 elementos etc. Deus na verdade é um grande matemático que
sabe jogar xadrez como ninguém, que sabe combinar, dispor, os vários elementos
ou alternativas entre si, até conseguir compor o maior número de elementos
compossíveis entre si, e então criar um mundo realmente efetivo, estável,
garantido – enfim, que possa ser o melhor dos mundos possíveis.
Quer dizer,
Deus poderia ter a prerrogativa de criar os mundos A ou B ou C ou D ou E ou F etc., e, no entanto, escolheu criar
exatamente o D e deixou de lado,
evitou criar, os mundos A, B, C,
E, F etc., certamente porque o mundo D seria o que mais permitiria vir à lume, vir à existência, o maior
número possíveis de elementos compatíveis entre si, sendo consequentemente o
melhor dos mundos possíveis, o melhor mundo que poderia existir. Logo, nosso
mundo existe por definição matemática
e Deus, agindo pelo princípio do melhor (é melhor criar o mais do que o menos),
fatalisticamente não teria liberdade de criar outro e estaria, ELE próprio,
sujeito à necessidade, ao destino, conforme a filosofia de Leibniz (cf. Da origem das coisas, p. 160; Discurso de metafísica, 31, p. 147; Correspondência de Clarke: quinta réplica
de Clarke, p. 226, in “Os
Pensadores”, op. cit.).
Em outras palavras,
este mundo atual foi o melhor que Deus pôde fazer, mesmo criando ruindades como
os políticos e seus amos, os banqueiros... Imagine como seria o pior dos mundos
possíveis...
O NOSSO
MUNDO REAL
Existem no
nosso mundo real, substâncias simples (mônadas)
e substâncias compostas (agregados de mônadas, isto é, a matéria). Mônada, para
Leibniz, é uma unidade simples, indecomponível, em número infinito e dotado de
percepção e tendência, quer dizer, não é inerte, mas dinâmica. Leibniz não
confunde extensão com substância (simples), como o fez Descartes, que considera
a extensão exatamente a principal característica da matéria. Para Leibniz, a
substância primitiva, a mônada, é simples, enquanto que a extensão é composta e
divisível infinitamente. Portanto, a essência dos corpos não poderia ser a
extensão, mas a força. A essência dos corpos, para Leibniz, é a força, o
dinamismo. Mesmo sendo a substância (mônada) una, sem extensão e indivisível, ela entra na composição
da matéria através de uma agregação de infinitas substâncias simples ou
mônadas. Diz Leibniz:
“A Mônada, de que falaremos aqui, é apenas uma substância
simples, quer dizer, sem partes. Visto que há compostos [de matéria], é
necessário que haja substância simples, pois o composto é apenas a reunião ou agregatum dos simples. Ora, onde não há
partes, não há extensão, nem figura, nem divisibilidade possíveis, e, assim, as
Mônadas são verdadeiros Átomos da Natureza, e, numa palavra, os elementos das
coisas. Delas também não há a temer qualquer dissolução: é inconcebível que uma
substância simples possa perecer naturalmente. Pela mesma razão, é inconcebível
que uma substância simples possa começar naturalmente, pois não poderia
formar-se por composição. Assim, pode dizer-se que as Mônadas só podem começar
ou acabar instantaneamente ou, por outras palavras, só lhes é possível começar
por criação e acabar por aniquilamento [ e isto só pode ser feito por Deus], ao
passo que todo composto começa ou acaba por partes” (Monadologia, §§ 1-6, p. 105, in
“Os Pensadores”, op. cit.).
Ou seja, se
a mônada não tem nascimento ou perecimento, só pode existir pela criação de
Deus, e só pode se acabar pela onipotência de Deus – o que, felizmente, até
agora, não aconteceu...
Essa ideia
de mônada certamente deriva da visão matemática que Leibniz tem do mundo. A
princípio, a ideia de mônada parece absurda, contrária ao senso comum, mas a
ideia da matemática tradicional (derivada de Euclides, matemático grego da
Antiguidade, autor de “Os elementos) não é menos absurda. Para o senso comum,
“nada somado com nada e mais nada, resulta em nada”. Mas na Geometria
tradicional, a coisa é diferente: “ nada somado com nada e mais nada, resulta
em algo”. Como? Vejamos o que dizem os geômetras partidário do conceito de
espaço euclidiano ( conceito esse que Isaac Newton aceitou). Esses geômetras
dizem que um ponto (matemático) não tem dimensão: nem comprimento, nem altura,
nem largura. Ora, aquilo que não tem dimensão alguma não existe na “realidade”.
Mas, para esses matemáticos, se juntarmos vários pontos numa direção, eles
formam uma linha, que tem apenas uma dimensão: o comprimento. Ora, aquilo que
só tem comprimento, mas não tem largura nem altura, é algo que não existe na “realidade”.
No entanto, se juntarmos várias linhas numa determinada direção, teremos um
plano, que é algo que tem duas dimensões: comprimento e largura, mas não tem
altura (espessura). Ora, aquilo que só têm comprimento e largura mas não tem
espessura, não existe na “realidade”. No entanto, continuam esses geômetras, se
juntarmos vários planos numa determinada direção, formaremos, por exemplo, um
cubo. E como este tem três dimensões – comprimento, largura e altura – existe
na nossa realidade. Logo a nossa
realidade tridimensional é formada pela soma ou agregado de vários
“nadas”. E é isto que se ensinava na
Escola até bem pouco tempo e ainda se ensina em alguns lugares. E tal Geometria, nos serviu por mais de dois mil
anos e ainda serve, em nossa vida cotidiana. Somente com a nova concepção de
espaço-tempo da Teoria da Relatividade (Albert Einstein), essa Geometria
euclidiano foi superada. É essa Geometria tradicional que certamente inspirou
essa teoria das mônadas como raízes e fundamentos do mundo. Mas se as mônadas
não tem dimensões, são verdadeiras “almas”: - então como podem formar esse
nosso mundo perceptível, visível, palpável? Ora a resposta só pode ser esta: o
mundo que nós vivenciamos, que percebemos, é apenas uma aparência ( = o que
aparece) – isto é, o nosso mundo é apenas um fenômeno.
Para
Leibniz, um corpo visível, perceptível, é apenas um agregado de mônadas. Como
as mônadas não tem dimensões, como já se disse, elas se assemelham aos pontos
matemáticos: não tem comprimento, nem largura nem altura. No entanto,
juntando-se uma “porção” delas, acabam por se apresentarem sob a forma de algo
com/no espaço e tempo, de modo que uma substância composta (corpos, matéria)
não passa de um fenômeno. Quer dizer, o mundo é uma mera representação (da
mente), uma espécie de fantasmagoria. Este tipo de filosofia é na verdade, uma
forma de Idealismo[1].
[1]
De modo geral, costuma-se dividir a Filosofia em dois grandes Sistemas: 1)
Materialismo (ou Realismo) e 2) Idealismo (ou Espiritualismo). Definir com
exatidão cada um deles é questão polêmica, mas faremos uma definição
simplificada. O materialismo diz que a Matéria é princípio de tudo e que o
espírito deriva dela; nossas faculdades espirituais são apenas epifenômenos da
matéria. Lênin, por exemplo, diz ( “Materialismo e empiriocriticismo”, vol.
XIV, p. 17, in Obras Completas, 40 vols., Madrid, Ayuso/Akal Editor, 1974-1978) :
o materialismo é o “reconocimiento de los ‘objetos en sí’ o fuera de la mente;
las ideas y las sensaciones son copias o reflejos de estos objetos. [Para] La
doctrina opuesta, el idealismo: los objetos no existen ‘fuera de la mente’; los
objetos son ‘cobbinaciones de sensaciones’”. [isto é, representações mentais].
Quer dizer, o materialismo reconhece a existência de objetos – matéria – fora
da nossa mente, do nosso pensamento, mas sobre o que seja a natureza da matéria
pouco se sabe: é apenas algo que existe “fora da nossa mente”. Já o Idealismo
diz que o princípio de tudo é uma Ideia ou Espírito, mas também pouco se sabe sobre a natureza dessa
Ideia. De modo simplificado, existem duas formas de Idealismo: 1) o Idealismo Objetivo, que diz que tal
Espírito ou Ideia existe objetivamente, fora da mente humana , e tudo deriva
dele, ou por criação ou emanação; 2) e o Idealismo
Subjetivo, que se subdivide em Idealismo Intersubjetivo ( que reconhece a
existência de outras mentes) e o Idealismo
Subjetivo Solipsista, que só reconhece a existência de uma única mente no
mundo ( que é a minha: estou sozinho no mundo e tal mundo não existe na
“realidade”, mas é apenas um sonho da minha mente).
O próprio
espaço-tempo em que estão os agregados de mônadas não passam de meras relações
entes ideias, ficções, e não substâncias em si mesmos, primitivas, originárias.[1]
Os corpos simples podem compor os minerais, os vegetais e os animais
(inclusive o homem). Deus seria a Mônada Suprema. A alma humana seria a
mônada mais importante do corpo humano que, como agregado, seria constituído de
mônadas hierarquicamente dispostas, das mais baixas às mais altas. Ou seja, das
que possuem as percepções mais confusas até as que tem os pensamentos mais
claros e mais distintos (as almas racionais). Tal como existe uma hierarquia
entre as mônadas que compõem o corpo humano, há também uma hierarquia nas
mônadas que formam os corpos da Natureza (física): reino mineral, vegetal e
animal. Assim, quanto mais se desce na escala dos seres – Deus, homem, animal
irracional, vegetal..., mineral – tanto mais obscura, opaca e confusa se torna
a percepção das mônadas, que só “agem” harmonicamente com outras por uma
predisposição colocada nelas por Deus. As mônadas possuem força representativa
e força apetitiva e por isso todas elas tem percepção (até as mônadas dos
minerais) e não somente a mônada-alma do homem, embora nem todas elas percebam que
percebem ( são as inconscientes ou passivas). A percepção consciente é a Apercepção, que, no homem, seria o ato
da unificação das múltiplas relações das diversas mônadas que compõem o corpo
humano – não por influência de uma(s) sobre a(s) outra(s), mas por uma predisposição originária ( = a Harmonia
preestabelecida). Por isso, cada mônada conserva em si sua própria
percepção e é apenas por coincidência que a percepção (ou sonho) de uma mônada
corresponde à percepção (ou sonho) de outra, porque cada mônada é, a priori, uma ilha, mas é também um espelho do mundo. E acrescenta Leibniz:
“Não há meio de explicar como a mônada possa ser alterada
ou modificada em seu íntimo por outra criatura qualquer, pois nada se lhe pode
transpor, nem se pode conceber nela algum movimento interno que, de fora, seja
excitado, dirigido, aumentado ou diminuído lá dentro, como nos compostos onde
há mudanças entre as partes. As mônadas não tem janelas por onde qualquer coisa
possa entrar ou sair” [dela] (Monadologia,
§ 6, p. 105, op. cit.).
Ora,
se as mônadas não tem janelas e,
portanto, não agem umas sobre as outras, então como se comunicam entre si, ou
seja, como explicar o conhecimento? Como justificar a regularidade entre os fenômenos (as leis científicas) e como explicar as relações entre a alma e o corpo?
[1]
Cf. Correspondência com Clarke, Quinta
carta de Leibniz, § 10 p. 203; § 15 p. 205; § 18 p. 207; § 29 p.209 e § 41
p. 214 (in “Os Pensadores”, op. cit.).
Já que as
mônadas não agem, não se comunicam, umas com as outras, então o conhecimento se explica pelas ideias inatas, como se viu
anteriormente. E tanto as ideias inatas como a regularidade dos fenômenos do
mundo acontecem por meio da harmonia
preestabelecida, criada por Deus (essa
harmonia preestabelecida é semelhante
ao paralelismo psicofísico, inventado
pelos discípulos de Descartes). Continua Leibniz:
“Estes princípios permitiram-me explicar naturalmente a
união, ou melhor, a conformidade da alma e do corpo orgânico. A alma segue suas
próprias leis, e o corpo também as suas, e ambas se ajustam devido a harmonia
preestabelecida entre todas as substâncias, pois todas elas são representações
de um só universo” (Monadologia, § 78,
p. 113, op. cit.).
Exemplificando:
se eu ordeno ao meu braço que ele se mexa e ele se move, pode parecer que a
alma deu uma ordem e foi obedecida, quer dizer, pode parecer que a alma tenha
alguma relação com o braço, algum poder sobre ele, mas isso na realidade é
falso. O que na verdade acontece é que, quando Deus criou o mundo, isto é,
criou as mônadas (as sementes ou elementos que constituem o mundo),
sincronizou-as de tal modo que sempre que os estados interiores de uma mônada
(como a Alma humana, por exemplo) ocorrem, os estados interiores de outra(s)
mônada(s) ocorrem também e do mesmo modo, mas por mera coincidência. Porém tal
coincidência não é fruto do acaso: tal sincronização foi previamente
estabelecida por Deus, desde a eternidade. As mônadas, portanto, são co-sentidoras ( = sentem com), umas sentem
a mesma coisa que as outras sentem
(cf. Quinta carta de Leibniz, ou Resposta à Quarta réplica de
Clarke, p. 210, op. cit.). Daí a coincidência entre o meu pensamento que
ordena que meu braço se mova e o movimento que o meu braço faz. Em outros
termos, todos os meus estados mentais foram programados de tal modo que
coincidem, em sua totalidade, com todos os movimentos do mundo corporal que por
ventura eu venha a mexer, ordenar, movimentar. Isto me faz pensar que eu estou
movimentando o mundo, criando movimento novo, quando na realidade, o que eu
consigo movimentar é apenas o que já estava programado por Deus. E aquilo que
eu não conseguir mexer ( e que me dá a consciência de impotência) é o que não
foi programado pela harmonia preestabelecida por Deus. Ou foi programado para não acontecer. Veja-se o que Leibniz
escreve:
“A harmonia ou correspondência entre a alma e o corpo não é
um milagre perpétuo, mas o efeito ou a sequência de um milagre primordial feito
na criação das coisas, como são todas as coisas naturais (...). A expressão
‘harmonia preestabelecida’ é um termo técnico, confesso, mas não um termo que
não explica nada, pois é explicado muito inteligivelmente, e a ele nada se
objeta indicando alguma dificuldade. Como a natureza de cada substância
simples, a alma ou verdadeira mônada, é tal que seu estado seguinte é
consequência de seu estado precedente, eis a causa da harmonia já encontrada do
todo. Com efeito, Deus precisa apenas fazer, uma vez e primeiramente, que a
substância simples seja uma representação do universo, conforme o seu ponto de
vista: pois que só disso se segue que ele o será perpetuamente, e que todas as
substâncias simples terão sempre uma harmonia entre si, uma vez que representam
sempre o mesmo universo” (Quinta carta de
Leibniz a Clarke, §§ 89, 90, 91, p.
211, in “Os Pensadores”, op. cit.)[1].
A harmonia
preestabelecida, em verdade, compromete a liberdade do homem e Clarke tem razão
quando objeta que Leibniz “supõe que todos os movimentos de nossos corpos são
necessários e produzidos por um impulso mecânico da matéria, a qual é
totalmente da alma; mas não posso deixar de crer que essa doutrina conduz à
necessidade e ao destino” (Quinta réplica
de Clarke a Leibniz, § 92, p. 226). E Clarke continua, à página 229 (op.
cit., idem):
“Com efeito, se a harmonia preestabelecida é verdadeira, um
homem não vê, não ouve e não sente nada, nem move de maneira alguma seu corpo:
imagina somente ver, ouvir, sentir e mover seu corpo. E se os homens se
persuadissem de que o corpo humana não passa de uma máquina, e de que todos os
seus movimentos, que parecem voluntários, são produzidos pelas leis necessárias
de um mecanismo natural, sem nenhuma influência ou operação da alma sobre o
corpo, concluiriam logo que essa máquina é o home todo; e que a alma harmônica,
na hipótese de uma harmonia preestabelecida, é apenas uma pura ficção e uma vã
imaginação”.
Não só a
harmonia preestabelecida leva ao destina, ao necessitarismo, à sina, ao fatalismo, como também o Princípio da Identidade dos Indiscerníveis.
Como bem o diz Clarke, se duas coisas a serem criadas por Deus forem iguais,
Deus ficará indeciso e não criará nenhuma, como no caso da fábula do “asno de
Buridan”, passivo, pois não terá razão de criar uma mais do que a outra (cf. Quinta réplica de Clarke a Leibniz, p.
219, passim, op. cit.).
Por outro
lado, se as coisas são todas diferentes (como sustenta Leibniz), Deus criará
sempre a melhor dentre elas e, portanto, está determinado a escolher essa coisa
tal e não uma outra. De qualquer modo, cai na escolha obrigatória.
Leibniz
diz que o princípio da razão suficiente é apenas inclinante e não necessitante,
o que permite a liberdade. Meras palavras, pois se Deus já previu tudo, com sua
onisciência, as razões inclinantes são iguais às razões necessitantes. O
problema é que os filósofos modernos querem salvar a ciência e asseguram que só existe ciência se houver necessidade nas leis da Natureza.
[1]
“É verdade que, a meu ver, a alma não perturba as leis do corpo, nem o corpo as
da alma, e que somente entram em acordo, um agindo livremente, segundo as
regras das causas finais, e o outro maquinalmente, conforme as leis das causas
eficientes” (Correspondência com Clarke,
quinta carta de Leibniz, § 32, p. 211,
op. cit.). E isto não retira a liberdade da alma, segundo Leibniz, sendo o
homem o conjunto dos dois tipos de lei: lei das causas finais (liberdade) e lei
das causas eficientes (necessidade, mecanicismo). Este texto pode ser visto
como um esboço primitivo da versão de Kant pela qual o homem deve ser visto
como noumeno
e como fenômeno, ao mesmo tempo.
Mas se houver necessidade nas leis da Natureza – objetam outros –
como então haverá liberdade para o homem fazer escolhas? Leibniz não conseguiu
conciliar a liberdade com a necessidade e acabou caindo – como os calvinistas –
num fatalismo que se traduz exatamente como predestinismo. Este é o defeito
principal das filosofias essencialistas, que admitem uma natureza a priori, “predatada”, para as coisas,
comprometendo a liberdade e o destino do homem como ser livre e construtor de
sua própria vida. Quer dizer, o problema é como conciliar a liberdade humana
com a preciência de Deus.
Como
Descartes e seus discípulos, como Spinoza e seus discípulos, ( e, mais tarde,
Kant) Leibniz acabou caindo no paralelismo psicofísico, pois sua harmonia preestabelecida nada mais é
do que uma nova versão da estranha “teoria dos dois relógios”, inventada pelos
discípulos de Descartes, a fim de salvar o mecanicismo do mestre ou, o que é
pior, para praticar um parto infeliz de uma “vã imaginação”.
E, veja,
Leibniz não era louco, não esteve internado em nenhum hospício da época. Ocupou
cargos importantes no governo de seu país e foi um dos descobridores do Cálculo
Infinitesimal (em concomitância, mas de modo independente, com Newton). Pelo
contrário, foi considerado um gênio, especialmente em Matemática. Mas, ao
misturar religião com ciência, certamente temeu ser perseguido e caiu num
teologismo altamente comprometedor da liberdade do homem. Se não tivermos
liberdade de escolha, onde fica a responsabilidade? Onde se fundamentará a
Ética?
EXPRESSÕES
E PALAVRA EM LATIM
Agendo nihil agere – agindo sem nada fazer
Agregatum – agregado
Nihil est in intellectu, quod non
fuerit sensu, excipi: nisi ipse intellectus – nada existe no intelecto que não tenha provindo dos
sentidos – salvo o próprio intelecto.
Ut possit inesse subjecto – como estando contido em baixo. No
texto, significa que é algo inerente à noção do sujeito, no caso, César.