domingo, 7 de novembro de 2010

Monografia de Mestrado em Filosofia - A FILOSOFIA DE KANT


ESTA DISSERTAÇÃO FOI PUBLICADA EM FORMA DE LIVRO, PELA EDITORA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ (EdUECE), EM 2012, COM NOTAS DE RODAPÉ.




Universidade Estadual do Ceará



Noé Martins de Sousa





                                                  A FILOSOFIA DE KANT


A MORAL COMO FIO CONDUTOR DA ARTICULAÇÃO DO SISTEMA KANTIANO







Fortaleza - 2004

Universidade Estadual do Ceará


Noé Martins de Sousa





A MORAL COMO FIO CONDUTOR DA ARTICULAÇÃO DO SISTEMA KANTIANO










Dissertação apresentada ao Curso de
Mestrado Acadêmico em Filosofia
da Universidade Estadual do Ceará
como requisito parcial para a obtenção
do grau de mestre em Filosofia.






Fortaleza – 2004

Universidade Estadual do Ceará


Mestrado Acadêmico em Filosofia


A MORAL COMO FIO CONDUTOR DA ARTICULAÇÃO DO SISTEMA KANTIANO



Noé Martins de Sousa






Defesa em: 07/04/2005 Conceito obtido: Satisfatório
Nota obtida: 10,0 (dez)







Banca Examinadora Presidente




Dr. Reginaldo Rodrigues da Costa (UECE)
Nota concedida: 10,0 (dez)





1º Examinador 2º Examinador
Dr. Manfredo Araújo de Oliveira (UFC) Dr. Kleber Carneiro Amora (UFC)
Nota concedida: 10,0 (dez) Nota concedida: 10,0 (dez)




Para meus filhos:


Carlos Marx Farias Martins;

Sheila Jamily Farias Martins;

Keylla Regina Farias Martins.






















Para meus pais, in memoriam:

Jorge Ferreira de Sousa e

Maria Alves de Sousa.

















Meus agradecimentos:



Ao professor Dr.
Regenaldo Rodrigues da Costa,
por ter aceito orientar essa dissertação;


Ao professor Dr. Manfredo Araújo de Oliveira;


Ao professor Dr. Kleber Carneiro Amora;











À
Valderina Barroso Barbosa;







À FUNCAP,
Por me ter concedido meia bolsa de estudo
no valor de um salário mínimo e meio.





SUMÁRIO











I – Introdução ........................................................................................................08


II – Capítulo 1 – Da razão pura teórica à razão pura prática I – A razão
pura teórica. ...........................................................................................................12


III – Capitulo 2 – Da razão pura teórica à razão pura prática II – A razão
pura prática. ...........................................................................................................73


- 1- Em torno da Fundamentação da Metafísica dos Costumes ........................76
- 2 – O problema da liberdade ............................................................................81
- 3 – A lei Moral: Imperativo Categórico e Imperativo Hipotético ........................86
- 4 – Autonomia e Heteronomia ..........................................................................96
- 5 - Felicidade, Virtude e Reino dos Fins. .......................................................102


IV – Capítulo 3 – Em torno da Crítica da Razão Prática e outros escritos ..........114


V – Conclusão .....................................................................................................184


Bibliografia ...........................................................................................................193
RESUMO










Esta dissertação tem por finalidade fazer uma reflexão sobre a filosofia moral do filósofo alemão Immanuel Kant, em sua fase madura, isto é, em sua fase crítica. Partimos da posição de que toda a filosofia kantiana se constitui num grandioso sistema ético. É uma visão moral do homem e do mundo. Sua filosofia teórica é apenas o primeiro passo na direção dessa visão ética da totalidade. O cerne de sua filosofia é a divisão da realidade em mundo inteligível e mundo sensível, sendo o primeiro causa deste último. No mundo inteligível se fundamenta a moral e no mundo sensível se fundamenta a ciência. A sua teoria da ciência ou epistemologia acha-se expressa especialmente na Crítica da razão pura. Como esta encontra-se relacionada, mesmo de modo indireto, com o mundo da moral – mundo da prática – tivemos que fazer uma exposição da filosofia teórica de Kant, para servir de embasamento para a compreensão do seu pensamento ético. Após a exposição do conteúdo da razão pura teórica, fizemos uma análise e exposição da obra kantiana, Fundamentação da metafísica dos costumes e, em seguida, a complementamos com uma síntese do conteúdo da Crítica da razão prática. Nestas duas obras está a essência do pensamento moral de Kant, que parte da Lei moral – o Imperativo Categórico – para chegar à finalidade do homem – que é a prática da virtude, a fim de ser ele merecedor da felicidade. Mas como a felicidade perfeita não pode ser alcançada neste mundo, mas apenas num mundo transcendente, Kant postula, fundamenta na moral, a existência de Deus e a imortalidade da alma. Com isto, o homem que praticar a virtude, poderá alcançar o reino de Deus aqui na terra e ainda a imortalidade e felicidade, após a morte. Isto implica na superação do dualismo entre o mundo inteligível e o mundo sensível, numa totalidade e unidade final. O método que empregamos na elaboração do nosso trabalho foi a pesquisa bibliográfica das obras mais representativas do pensamento kantiano, procurando respostas para as perguntas que o próprio Kant propôs responder: que é possível saber? E podendo saber, que é possível fazer? E fazendo, que é possível esperar? Respondendo a esta última pergunta, Kant define o destino final do homem, desembocando na Religião, a qual se fundamenta na ética. É no mundo transcendente que o ser humano realiza o seu fim-término, o seu destino final: o casamento da virtude com a felicidade.

I - INTRODUÇÃO


O objetivo deste trabalho é fazer uma exposição sucinta da moral kantiana, mais precisamente da moral do Kant maduro, isto é, do Kant do Período Crítico.

Fazemos de início, duas afirmações que esperamos explicitá-las ao longo do nosso texto: primeira: a filosofia kantiana é um sistema; segunda: esse sistema é de natureza moral. Isto significa que não existe um Kant da Crítica da razão pura, outro da Crítica da razão prática, outro da Crítica do juízo, etc., mas sim que Kant é um só: suas obras constituem um todo em que suas partes estão devidamente articuladas num sistema. E esse sistema como um todo é de natureza moral, onde a parte teórica, a teoria do conhecimento, é importante, mas somente como parte desse sistema e não como uma excrescência à parte.

Nossa exposição visa mostrar a arquitetônica do sistema kantiano. O fio condutor de nossa exposição, pois, é a temática de que toda a filosofia kantiana é um vasto sistema moral. Sua filosofia teórica é vista aqui como uma introdução à sua filosofia prática. É uma parte importante, mas não independente de sua filosofia como um todo. Evidentemente que a demonstração disso escapa aos limites de uma simples dissertação, razão por que reservamos essa tarefa para nossa tese de doutorado, que pretendemos fazer em futuro próximo. Por enquanto, achamos suficiente uma leitura expositiva de três obras fundamentais de Kant, relacionadas com o tema: A Crítica da razão pura, A Fundamentação da metafísica dos costumes e a Crítica da razão prática. Nessas três obras se concentra o nosso trabalho inicial.

Entretanto, como partimos da posição de que a filosofia kantiana, em seu todo, é um sistema moral, suas obras – do período maduro – devem estar relacionadas com o tema central da razão prática, da questão sobre o que é o homem, de seu destino final – que é o seu aperfeiçoamento moral. Daí por que usamos, embora de maneira rápida, outras obras de Kant, como a Crítica do juízo, a Metafísica dos Costumes, Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, À paz perpétua, A religião nos limites da mera razão, e outros escritos menores.

O cerne, o miolo da filosofia kantiana, é a sua concepção ou distinção de mundo sensível e mundo inteligível. O primeiro é o mundo dos fenômenos, da natureza física, cognoscível pela ciência, conteúdo e limite do conhecimento teórico, mas obstáculo que procura impedir a realização da plenitude moral do homem. O segundo é o mundo dos noúmenos, da liberdade, da moral, da imortalidade da alma, da existência de Deus, âmbito não disponível ao conhecimento teórico (mas indiretamente, fundamento deste) e que só é acessível através da filosofia prática (moral).

O homem pertence a esses dois mundos: como ser racional é livre, é um ente moral, pode ter um destino venturoso e uma vida eterna num reino transcendente, sob a legislação de Deus, o Autor moral do mundo, embora isso não possa ser provado cientificamente; mas, como ser dotado de sensibilidade, o homem está sujeito ao mundo físico, determinístico, da necessidade causal, dos apetites, desejos e inclinações, um mundo que precisa ser domado, dominado e superado para que o homem possa atingir o soberano bem, o reino dos fins, que é o reino de Deus. Existe, pois, pelo menos de início, uma dicotomia entre corpo e alma, sensível e inteligível, teoria e prática. Mas Kant luta para superar esse dualismo, para desaguar numa síntese final. O mundo sensível é objeto da razão pura teórica e o mundo inteligível, objeto da razão pura prática (moral). Em princípio, a teoria se atém ao mundo sensível e, a prática moral, ao mundo inteligível. O homem é a síntese de ambas as coisas. O programa filosófico de Kant consiste em esclarecer esses dois mundos, solucionar seus problemas e em consequência dessa solução desvendar o destino do homem.

Kant, em sua filosofia (Crítica da Razão Pura, “Doutrina Transcendental do Método”) se propõe responder a três perguntas: 1. Que posso saber? 2. Que devo fazer? Que me é permitido esperar? À primeira pergunta de Kant, responde a Metafísica, à segunda, a Moral e à terceira, a Religião, que não é uma instância desligada da moral, mas consequência desta, isto é, a religião é a própria moral.

Em sua obra Lógica (“Introdução”, III), Kant reafirma essas três perguntas, mas acrescenta uma quarta: que é o homem? A essa pergunta responde a Antropologia. “Mas, no fundo, poderíamos atribuir todas essas à Antropologia, porque as três primeiras questões remetem à última” (Lógica, Introd. III, p. 42, Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1992). Isto implica que a filosofia kantiana é um sistema ético-antropológico.

Isto significa se orientar por um novo paradigma filosófico, denominado de antropocentrismo, que é a visão do mundo a partir do homem, em contraposição ao cosmocentrismo, que é a visão do homem a partir do cosmo. De maneira que toda a filosofia kantiana é uma ampla antropologia, não uma antropologia empírica, apenas, que vê somente a parte instintiva, sensível, do homem, mas uma antropologia filosófica, que implica numa moral, pois dizer o que é o homem é determinar qual é seu destino, sua conduta, sua finalidade.

Nosso trabalho segue essa linha de desenvolvimento do pensamento kantiano. No Capítulo 1, responderemos à primeira questão – que posso saber? - expondo a teoria do conhecimento de Kant, que é também uma “ontologia” (fenomênica), o que servirá de embasamento para a compreensão dos capítulos seguintes. Esta parte da filosofia kantiana encontra-se explanada especialmente na Crítica da razão pura e nos Prolegômenos a toda metafísica futura. Mas encontra-se ainda em obras como: Lógica; Dissertação de 70 [1770]; Da utilidade de uma nova crítica da razão pura; Os progressos da metafísica; Princípios metafísicos da ciência da Natureza; e Transição dos princípios metafísicos da ciência natural à física ( opus postumum). Esses livros, em geral, contém a doutrina da razão pura teórica.

A doutrina da razão pura prática ( ou moral) está exposta nos Capítulos 2 e 3. O Capítulo 2 responde à segunda pergunta de Kant – que devo fazer? - onde expomos a moral kantiana contida especialmente na Fundamentação da metafísica dos costumes. Mas como esta obra não contém as linhas gerais completas da moral kantiana (do Kant maduro), no Capítulo 3, nós a complementamos com uma exposição da Crítica da razão prática. Utilizamos ainda a Metafísica dos costumes e, em seguida, usamos vários outros escritos (como a Crítica do juízo, À paz perpétua, etc.) de Kant para aclarar e detalhar um pouco mais nossa exposição sobre a doutrina da razão prática (a moral).

Finalmente, para responder à terceira pergunta de Kant, - se me comporto como devo, que me é permitido esperar? – tratamos, ainda no Capítulo 3, das idéias contidas especialmente na Primeira Parte da Metafísica dos costumes ( Doutrina do Direito), na Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, na Paz perpétua e na Religião dentro dos limites da mera razão, pois o conteúdo desses escritos completam o pensamento moral de Kant e procuram explicitar o destino final do homem, o qual se encontra no plano do transcendente (= além do homem e do mundo dos fenômenos, isto é, no mundo dos noúmenos) ou da Religião.

Enfim, ao término de nossa exposição, esperamos ter mostrado o enorme esforço intelectual que Kant fez para superar e conciliar o dualismo entre o mundo sensível e o inteligível para, no ápice dessa unidade, dessa totalidade, colocar o homem, na qualidade de ser ético, como objetivo final do Universo e da Criação.

Esta é a proposta de Kant; se conseguiu provar ou não aquilo a que se propôs não cabe, aqui, demonstrá-lo; limitamo-nos apenas a expor seu pensamento.

II - CAPÍTULO 1 - DA RAZÃO PURA TEÓRICA À RAZÃO PURA PRÁTICA I – A RAZÃO PURA TEÓRICA




O pensamento de Kant constitui um sistema, um todo presumivelmente coerente, em que há uma unidade no meio da diversidade de suas partes. Por isso, não se pode tratar de uma parte de seu pensamento, isoladamente, sem fazer referência às linhas gerais de seu sistema, especialmente às grandes linhas teóricas. E partimos do pressuposto de que a essência desse sistema é de natureza moral, conforme esperamos explicitar, ao longo de nossa exposição.

Kant trata da parte teórica, isto é, especulativa, de seu pensamento, especialmente na Crítica da razão pura. Nela, procura determinar a origem, validade e extensão do conhecimento humano, procurando justificar aquilo que é ciência e dizer aquilo que não é ciência, - ou seja, aquilo que é apenas objeto da razão prática, isto é, da moral, da atividade ética do homem. Certos conceitos só podem ser alcançado ou utilizado pela prática, pela atividade humana em seu sentido ético. São as Idéias regulativas de nossa conduta moral e orientativas do pensamento como um todo (como sistema). Tais Idéias, entretanto, não constituem conhecimento científicos, mas apenas simples ilusões da razão.

Para chegar a essas conclusões, Kant faz uma longa exposição da parte teórica de seu pensamento, a qual resumiremos aqui, visando localizar em relação a esse pensamento, o lugar de sua doutrina moral. Esta exposição da filosofia teórica se justifica porque a sua obra "Fundamentação da metafísica dos costumes" está estreitamente ligada à "Crítica da razão prática" e esta à "Crítica da razão pura" a ponto de Kant ter pensado em publicar a "Crítica da razão prática" no mesmo volume da 2a edição da "Crítica da razão pura", em 1787, como continuação desta. É o que diz Uwe Schultz:

"Así, al Fundamento [ Fundamentação = Grundlegung] de 1785 seguió, dos años más tarde, el mismo año en que Kant dio a la estampa una segunda edición da la Crítica de la razón pura con algunas modificaciones, la Crítica de la razón práctica. No solo en su estructura formal se apoya la segunda de las obras críticas principales en la Crítica de la razón pura, sino que también en su contenido constituye el libro la continuación de la crítica primera, siendo la vinculación entre ambas obras tan estrecha, que en 1787 Kant estuvo sopensando la idea de incorporar el texto de la Crítica de la razón práctica a la segunda edición de la Crítica de la razón pura en concepto de ampliación y último toque. No obstante, pronto el criterio de publicar la Crítica de la razón práctica como obra independiente indujo al autor a llevar a efecto el proyecto, el cual ocupó tan intensamente al filósofo durante 1787 que las modificaciores en la Crítica de la razón pura han de verse bajo el prisma del trabajo en la obra ética.
Ahora bien: la Crítica de la razón práctica es la explicación y el enfoque crítico de las ideas que habían sido ya expuesta en el Fundamento" (Kant - cap. "Los escritos críticos", p. 84, Editorial Labor, S. A., Barcelona, 1971) .


A doutrina teórica de Kant encontra-se principalmente na Crítica da razão pura, mas poderá ser encontrada também em escritos como Prolegômenos, Lógica, Da utilidade de uma nova crítica da razão pura, Os progressos da metafísica, Princípios metafísicos da ciência da natureza, Dissertação de 70, etc. Iremos expor, com relação a esta parte, o conteúdo da Crítica da razão pura (Kritik der reinen Vernunft - KrV), que é o mesmo dos Prolegômenos a toda metafísica futura que queira apresentar-se como ciência, de 1783.


A RAZÃO PURA TEÓRICA


As partes em que se divide a Crítica da Razão Pura, além dos prefácios, são as seguintes: a Introdução, que contém informações bastantes substanciais sobre os objetivos de sua obra e onde se faz distinção entre Juízos Analíticos e Juízos Sintéticos; a Estética Transcendental, que trata da doutrina da Sensibilidade, isto é, da percepção sensível e das formas puras das percepções ( = intuições), que são o Espaço e o Tempo, justificadoras (legitimadoras) da Matemática como ciência; a Lógica Transcendental que, por sua vez, subdivide-se em duas partes: a primeira parte, Analítica Transcendental, onde se justifica a Física como ciência, através das Categorias, que imprimem leis à Natureza, e a segunda parte, Dialética Transcendental, que estuda os três temas fundamentais da Metafísica Especial - a Alma, a Liberdade (e o Mundo regido pela causalidade) e Deus. No final da Crítica, Kant dedica ainda uma centena de páginas sobre a Doutrina Transcendental do Método, que é "a determinação das condições formais de um sistema completo da razão pura" .

Qual o problema colocado por David Hume a respeito da ciência? Existe o conhecimento? Há uma identidade entre o ser e o pensar? E se existe o conhecimento, qual a sua origem, natureza e extensão? A empiria fornece a universalidade e necessidade do conhecimento ou estas derivam do sujeito, de maneira a priori, independentemente da experiência?

A essas perguntas Kant tenta, agora, responder, na Crítica da razão pura.



“INTRODUÇÃO” DA “CRÍTICA DA RAZÃO PURA”



Kant inicia a Introdução da Crítica da razão pura logo com essas considerações:

"Que todo o nosso conhecimento começa com a experiência, não há dúvida alguma, pois, do contrário, por meio do que a faculdade de conhecimento deveria ser despertada para o exercício senão através de objetos que toquem nossos sentidos e em parte produzem por si próprios representações, em parte põem em movimento a atividade do nosso entendimento para compará-las, conectá-las ou separá-las e, desse modo, assimilar a matéria bruta das impressões sensíveis a um conhecimento dos objetos que se chama experiência?" (KrV – Introdução, p. 53/B 1).

Em verdade, o conhecimento começa com a experiência, mas nem todo o conhecimento (isto é, o conhecimento por inteiro) procede dela. Quer dizer, uma parte deste conhecimento não procede da experiência. Existe algo na mente humana que precede à experiência, pois se assim não ocorresse, como explicar - indaga Will Durant - que dois indivíduos educando-se com experiências semelhantes, um se transforme num gênio e outro num tolo? Se somente a experiência fosse o estofo do conhecimento, os empiristas teriam razão: a mente humana não seria mais do que um simples produto do meio, passiva, sem capacidade de organizar, naquela unidade sintética, os dados sensíveis que comporiam a própria experiência das coisas. Seria, enfim, uma tabula rasa, peça morta, sem atividade própria. Em verdade, a experiência, exclusivamente, não é a condição sine qua non do conhecimento, - “pois de onde queria a própria experiência tirar sua certeza se todas as regras, segundo as quais progride, fossem sempre empíricas e portanto contingentes?” (KrV – idem, p. 55/B 5). Como poderemos confiar na experiência - como duvidou Hume - se suas leis poderão ser puros hábitos humanos (subjetivos), estando sujeitas a violações, se, enfim, as coisas podem acontecer de uma maneira ou de outra, independentemente de nossa vontade ou determinação?

Kant não se contenta com as conclusões céticas de Hume e insiste: se provarmos que o conhecimento não é de todo (completamente) dependente ou derivado da experiência, então a ciência será possível?

Pois bem, todos os conhecimentos adquiridos e sustentados pela experiência serão denominados a posteriori ( empíricos); e os que, ao contrário, tiverem sua razão de ser não na experiência, mas na necessidade e na universalidade ( dois requisitos que a experiência jamais fornece) serão chamados puros a priori (cf. KrV – idem, p. 54/B 4).

Os conhecimentos a posteriori, por serem fundamentados pura e tão-somente na experiência (contingente) não são válidos como científicos, posto que não se baseiam na necessidade e universalidade invioláveis, mas na arbitrariedade do eventual. "A experiência jamais dá a seus juízos universalidade verdadeira ou rigorosa, mas somente suposta e comparativa ( por indução) , de maneira que temos propriamente que dizer: tanto quanto percebemos até agora, não se encontra nenhuma exceção desta ou daquela regra” (KrV – idem, p. 54/B 4). Mas isto não quer dizer que as regras empíricas estejam isentas de violações futuramente, aqui na Terra, ou em algum lugar diferente do Universo. Pois bem: nisto, Kant está com Hume, ao desacreditar a experiência; todavia, vai além, contra Hume, argumentando que “se um juízo é pensado com universalidade rigorosa, isto é, de modo a não lhe ser permitida nenhuma exceção como possível, então não é derivado da experiência, mas vale absolutamente” (Ibidem). Ora, a universalidade dos juízos empíricos - no sentido humano - é feita arbitrária e subjetivamente, pela força do hábito e por isso não possui qualquer valor científico ( objetivo). Ao contrário, os juízos a priori deverão ser a base da ciência, por serem formulados com uma universalidade e necessidade tão rigorosas que jamais poderão ser desrespeitados pela experiência, seja ela onde e qual for. Por exemplo, "dois e dois são quatro" e "toda mudança tem uma causa" são juízos sintéticos a priori . Mas como esses juízos serão possíveis?

Consideremos, então, os seguintes juízos ou proposições:

A) Juízo Analítico - Todos os corpos são extensos;
B) Juízo Sintético a posteriori - Todos os corpos são pesados;
C) Juízo Sintético a priori - Dois e dois são quatro, ou: toda mudança tem uma causa.

A) Juízo Analítico - Este juízo, que representa o conhecimento proclamado e admirado pelos racionalistas ( já que não é sustentado pelo testemunho da experiência, mas da razão) tem caráter de necessidade e tem validade a priori. Não deriva da experiência e seria absurdo formular um juízo analítico experimentalmente. Diz Kant: "Chama-se analítica aquela proposição cuja certeza repousa sobre a identidade dos conceitos ( do predicado com a noção do sujeito )" .

O juízo analítico ( proposição analítica), apesar de ter a vantagem de ser a priori, é estéril porque, nele, o predicado já se acha contido no sujeito. No exemplo dado acima, dissemos: todos os corpos são extensos. Aqui, quando tomamos o conceito de corpo, implicitamente tomamos o de extenso, visto que a extensão é a condição essencial de algo ser corpo, ou seja, a proposição é verdadeira pela própria definição de corpo. O predicado, por conseguinte, nada de novo acrescenta ao sujeito. O predicado (atributo) se identifica tacitamente com o sujeito, nada acrescentando de novo ou distinto, não enriquecendo (de dados ou informações) o sujeito. É por isso que os juízos analíticos, apesar de seguros e invioláveis, são inúteis para a ciência, por terem uma natureza puramente tautológica.

B) Juízo Sintético a posteriori - Este é o juízo idealizado pelos empiristas. Nele, ao contrário do que ocorre com o juízo analítico, o predicado não se acha contido no sujeito. No exemplo citado anteriormente, todos os corpos são pesados, temos a união ou síntese dos conceitos de corpos e de pesados, sendo que o segundo conceito não se acha implicitamente contido no primeiro. Pode-se analisar eternamente o conceito de corpo que nunca será encontrado nele o atributo de pesado. Donde veio, pois, tal atributo? Da experiência. Sem ela, jamais saberíamos da gravidade existente nos corpos. Mas, como a experiência não nos fornece necessidade e universalidade rigorosas, resulta disso que um juízo fundamentado nela " é somente uma elevação arbitrária de validade” (KrV – idem, p. 54/B 4). Por exemplo, se constatamos pela experiência que uma maçã é pesada, que uma pedra é pesada, que uma cadeira é pesada, etc., não implica isto que possamos generalizar, necessariamente ( mas apenas provavelmente) que todos os corpos sejam pesados, absolutamente, não. Verificamos apenas que alguns corpos são pesados, e não que a todos eles convenha esse atributo de gravidade. A generalização, portanto, baseada na experiência, seria arbitrária e totalmente gratuita.

Resumindo o que foi dito: o juízo analítico é necessário ( e a priori), mas por não ser extensivo (sintético) é inútil para a fundamentação da ciência; já o juízo sintético a posteriori é extensivo ( o atributo do predicado "estende-se", abrange mais coisas, generaliza-se enriquecendo o sujeito), mas por ter sua generalização, o seu enriquecimento ao sujeito, baseado simplesmente na experiência, sua suposta universalidade não possui caráter de necessidade, sendo o seu rigor, seu valor, frágil e duvidoso. E, então, qual seria a solução para a construção do conhecimento teórico, isto é, da ciência? O ideal seria encontrar-se um juízo que fosse sintético e que ao mesmo tempo tivesse aquela característica de necessidade dos juízos analíticos. A um juízo tão importante assim chamaríamos "juízo sintético a priori" .

C) Juízo Sintético a priori - Este é o juízo de confiança que levantará a ciência do abismo teórico onde agora se encontra, depois da obra destruidora da David Hume. Juízo sintético a priori é a proposição que, tendo a fecundidade própria dos juízos empíricos, possui a necessidade dos juízos analíticos. "As proposições cuja verdade não se funda na identidade dos conceitos devem ser chamadas sintéticas” (Logica, Dottrina generale degli elementi, 36, p. 104, trad. it. de Leonardo Amoroso, Editori Laterza, Roma-Bari, 1984; cf. trad. bras. de Guido Antônio de Almeida, p. 130) É, pois, o único tipo de proposição útil para a fundamentação da ciência. Mas existe um tipo assim de juízo? A finalidade da Crítica da Razão Pura ( e dos Prolegômenos) é demonstrar que tais juízos existem.

Kant considerou as proposições da matemática não só a priori, como também sintéticas, o que tem provocado discussões entre os matemáticos realistas e o repúdio dos formalistas, que as consideram, com razão, analíticas. Mas o que interessa aqui é que, de uma lado, Kant aproveita a segurança e a inviolabilidade existentes nos juízos dos racionalistas e, do outro lado, apanha a facundidade dos juízos sintéticos dos empiristas para, em seguida, fundir essas duas espécies de entidades num só e mesmo composto, dando origem ao juízo sintético a priori, o único alicerce seguro a partir do qual se construirão a Matemática e a Física (do grego, "Physis" = Natureza ou ciência da Natureza), as verdadeiras ciências, na concepção de Kant já que, na Crítica da Razão Pura, ele chega à conclusão de que esses juízos não existem na Metafísica ( especial). Esta vai ser objeto da razão prática e não da razão teórica. Isto é, os juízos da Metafísica (especial) serão resultados de nossa prática, da nossa realização, da nossa atividade moral.

Este novo tipo de conhecimento teórico proposto por Kant é o resultado de uma política de conciliação entre o racionalismo e o empirismo, com predomínio do racionalismo.

Sendo assim, o juízo sintético a priori é que vai justificar ( legitimar) as ciências. Mas, como é possível a existência desses juízos na Matemática e na Física? E como eles não são possíveis na Metafísica? Esta é a penas uma disposição natural do homem?

A Crítica da razão pura ( e sua versão posterior, os Prolegômenos) tem por finalidade demonstrar a origem, a extensão e a validade desses juízos, com o objetivo de legitimar as ciências (Matemática e Física), isto é, de justificá-las "oficialmente" já que, de fato, elas existem. Por fim, não sendo possível justificar a Metafísica como ciência, é preciso determinar sua natureza e o seu lugar na vida humana. Ela vai se fundamentar na Moral, que Kant chama "Costume".

A Matemática ( Aritmética e Geometria) é justificada na Estética Transcendental, a Física na Analítica Transcendental e a Metafísica Especial é rejeitada como ciência na Dialética Transcendental, com espaço para sua posterior reabilitação no campo da Moral, onde será fundamentada. Daí o título da obra de Kant escrita para esse fim: Fundamentação da Metafísica dos Costumes, isto é, fundamentação da Metafísica na Ciência dos Costumes ou Moral. Em seguida, escreve a Crítica da Razão Prática, com o mesmo conteúdo e o mesmo fim, obras que divergem praticamente apenas quanto ao método de exposição: a Fundamentação da Metafísica dos Costumes é exposta pelo método analítico, partindo do particular para chegar ao geral ( princípios gerais) e a Crítica da Razão Prática, usa o método sintético, do geral (princípios) para o particular. A essas obras, se ligam o escrito Metafísica dos Costumes e outros escritos menores.

Após essas observações, continuaremos a expor a parte teórica do pensamento de Kant, contido na Estética, na Analítica e na Dialética.



A ESTÉTICA TRANSCENDENTAL



Aqui, nós entramos propriamente no estudo da Crítica da Razão Pura. Kant distingue três graus de conhecimento: a sensibilidade, o entendimento e a razão. Como diz Julian Marias , à razão, Kant acrescenta o adjetivo pura. Razão pura não quer dizer apenas sem mescla de empirira, mas que se move sobre princípios a priori. E esta razão não é apenas a razão humana, mas a razão de um ser racional em geral.

O primeiro passo para o conhecimento é, portanto, a sensibilidade, pela qual começaremos.

É aqui, na Estética Transcendental, que Kant estuda a intuição ( Anschauung) e as suas formas a priori - espaço e tempo - que ele chama de formas de intuições ou apenas intuições puras ( formas puras quer dizer sem nada de empiria).

Kant entende por "transcendental" não o conhecimento dos objetos mesmos, mas as "formas" a priori pelas quais os objetos podem ser conhecidos, formas estas que são independentes dos objetos, que transcendem as esses objetos, mas não ao sujeito que os conhece (sujeito cognoscente). "Estética", aqui, não é o estudo do belo, mas das sensações, dizendo respeito ao seu sentido original grego aistesis - sensação. Estética Transcendental é, portanto, o estudo das formas a priori que entram na composição ou elaboração do conhecimento dos objetos sensíveis. É "uma ciência de todos os princípios da sensibilidade a priori” (KrV – Estética transcendental, p.72 /B 36).

Que é, então sensibilidade? “A capacidade (receptividade) de obter representações mediante o modo como somos afetados por objetos denomina-se sensibilidade” (KrV – p. 71/B 35). É por meio da sensibilidade que os objetos nos são dados e somente ela nos fornece intuições. A sensação consiste no efeito de um objeto sobre a nossa faculdade sensitiva, ao ser afetada por ele. Esse trecho de Kant é bastante esclarecedor:

"Os objetos nos são dados mediante a sensibilidade e é unicamente ela que nos fornece as intuições; porém, só o entendimento os concebe e forma os conceitos. Mas todo pensamento deve referir-se, em último caso, direta ou indiretamente, mediante certos signos, a intuições e, por conseguinte, à sensibilidade; pois de outra maneira nenhum objeto pode nos ser dado. Consiste a sensação no efeito de um objeto sobre a nossa faculdade representativa, ao ser afetada por ele. Se chama empírica a intuição que se relaciona com um objeto por meio da sensação. O objeto indeterminado de uma intuição empírica se chama fenômeno. Chamo matéria do fenômeno aquilo que nele corresponde à sensação, e forma do mesmo ao que faz com que o que há de diverso nele possa ser ordenado em certas relações. Como aquilo mediante o qual as sensações se ordenam e são susceptíveis de certa forma não pode ser, por sua vez, sensação, a matéria dos fenômenos só pode dar-se-nos a posteriori e a forma dos mesmos deve achar-se já preparada a priori no espírito para todos em geral e, por conseguinte, pode ser considerada independentemente da sensação. Chamo representação pura ( em sentido transcendental) aquela na qual não se acha nada do que pertence à sensação"[ como o espaço e o tempo] (KrV – p. 71-2/B 33-4).


As simples impressões sensíveis dos objetos sobre a nossa faculdade receptiva, por si mesmas, não tem significado algum. Isto é, as sensações só possuem algum sentido quando se organizam em volta de alguma coisa no espaço e tempo, quer dizer, quando são intuições ( “representação” ou percepção sensível de um objeto). Mas como acontece a intuição? Suponhamos que se me apresente, por exemplo, uma laranja: pelo olfato sinto-lhe o cheiro, pela visão a cor, pelo tato a impressão de sua dureza, pelos ouvidos o som, pela boca o gosto, enfim, pelas sensações o sujeito entra em contacto imediato com ela. Essas sensações são ordenadas adequadamente num espaço e num tempo em torno de uma coisa definida e em consequência disso temos consciência de um objeto, temos realmente alguma significação - numa palavra, uma intuição. Mas, como isso se processa? Sabemos que as sensações dos objetos nos chegam à mente através de diversos caminhos, pelos mais variados órgãos sensitivos; como é possível, então, que tais sensações se dirijam sempre e organizadamente para o meu entendimento e não para alguma região desconhecida ou insensível do meu ser e aí se percam no anonimato da inconsciência ou na fragmentação de um caos? Sendo a minha mente uma tabula rasa, como pregam os empiristas, esses dados sensíveis teriam que se organizar "sozinhos", automaticamente, e elaborarem por si próprios o conhecimento humano, o que seria uma teoria anti-humana e mecanicista. Portanto, é óbvio, não são as sensações por si mesmas que se agrupam organizadamente em torno de um algo (objeto), mas é o sujeito humano, com sua finalidade, com suas estruturas, com suas formas a priori, que toma o que há de diverso e espalhado nos sentidos e transforma a heterogeneidade desses materiais sensíveis numa harmonia, numa unidade significativa, numa “representação” intuitiva - no primeiro passo ou grau do conhecimento humano. É assim que se constitui a intuição. Ou, como bem o diz Will Durant , não são as sensações que passam à mente pelas intuições; mas, pelo contrário, são as sensações que são passadas a intuições pela mente, pela atividade ("espontaneidade") organizadora do sujeito humano.

Pelas intuições, percebemos o chamado "mundo exterior", ou melhor, o que dele aparece ( fenômeno), pois o “mundo exterior” em si mesmo é incognoscível. É exatamente este objeto percebido ( que aparece) na intuição que se chama fenômeno ( Erscheinung). No fenômeno, como se viu acima, Kant distingue a matéria ( Materie) e a forma ( Form). Kant não nega propriamente a existência da matéria; todavia, a matéria não é mais do que o conjunto das sensações. Para ele, os objetos materiais que conhecemos não são tais como existem independentes de nós, na "realidade-em-si" ( noumênica). As qualidades primárias ( extensão, figura, movimento, repouso, etc.) que Locke distinguia como objetivas, existentes independentemente da nossa sensibilidade, para Kant são apenas uma forma de pensar do homem, uma maneira de perceber as "coisas", ou seja, são subjetivas, tais como o eram em Locke as qualidades secundárias ( gosto, cor, cheiro, som e sensações táteis), com a diferença que as primárias são maneiras peculiares (intersubjetivas) a todos os homens, ao passo que as secundárias variam de indivíduo para indivíduo, quer dizer, não são apenas subjetivas, mas também relativas, peculiares aos indivíduos .

Em outros termos: desconhecemos os objetos tais como são na "realidade-em-si"; só os conhecemos como se nos apresentam através da sensibilidade e do entendimento. Conhecemos apenas as manifestações sensíveis de um "algo"; o objeto em si mesmo, a "coisa-em-si" ( das Ding sich) ou noumeno é incognoscível:

"Para nós é absolutamente desconhecida qual possa ser a natureza das coisas em si, independentes de toda receptividade de nossa sensibilidade. Não conhecemos dela nada mais que a maneira que temos de percebê-la, maneira que nos é peculiar, porém que tampouco deve ser necessariamente a de todo ser, embora seja a de todos os homens" (KrV – p. 83/B 60).

Como frisamos, Kant diz que no fenômeno se distinguem duas coisas: a matéria e a forma: "O que, no fenômeno corresponde à sensação eu chamo de matéria; mas o que faz com que a diversidade que ele tem em si seja ordenado segundo certas relações, eu nomeio a forma do fenômeno" (KrV – p. 72/B 34). A sensação (matéria) nos é dada a posteriori; a forma, pela qual a sensação assume uma certa disposição ou configuração capaz de ser cognoscível ou acessível aos sentidos, encontra-se a priori no sujeito. A unidade da matéria e da forma constitui, pois, o primeiro grau do conhecimento, no nível da intuição. Unidade semelhante vai ocorrer também no entendimento, no nível do conceito. Essas formas a priori que o sujeito empresta a matéria ( = sensação) para compor a percepção ( = intuição) são o espaço e o tempo.

Todos os objetos existem no espaço e no tempo. É mediante essas formas subjetivas, que não estão fora do pensamento humano mas são a ele inerentes, que percebemos ou construímos o chamado "mundo exterior" ( suposta realidade objetiva); mas não o percebemos em si mesmo, senão como mero fenômeno. Espaço e tempo não são coisas - como diz Will Durant - mas formas pelas quais percebemos as coisas. Através do espaço ( nosso sentido externo) percebemos as coisas como fenômenos existentes no "exterior"; e através do tempo ( sentido eminentemente interno), percebemos os fenômenos como sucessivos ou simultâneos. Em seguida, Kant faz uma exposição metafísica da noção de espaço e de tempo e, depois, uma exposição transcendental pela qual mostra que eles são a condição de possibilidade de todo e qualquer conhecimento.


DO ESPAÇO


Kant, na Primeira Seção, parágrafo 2, da Estética Transcendental, realiza o que ele chama de exposição metafísica do espaço: "Mediante o sentido externo (uma propriedade da nossa mente) representamo-nos objetos como fora de nós e todos juntos no espaço. Neste são determinadas ou determináveis as suas figuras, magnitude e relação recíproca” (KrV – 73/B 37).

Kant apresenta quatro argumentos metafísicos sobre o espaço:

1) "O espaço não é um conceito empírico abstraído da experiência externa" (KrV - p. 73/B 38). É, ao contrário, condição mediante a qual percebemos as coisas que formarão a própria experiência, donde se conclui que o espaço encontra-se a priori no nosso espírito e é anterior a toda e qualquer experiência (empírica). A percepção (intuição) de qualquer objeto ocorre no espaço e o pressupõe. Portanto, a experiência, que são as percepções ou é formada por elas e a partir delas, é condicionada pelo espaço, e não condição dele, poder-se-ia extinguir todos os objetos e mesmo assim o espaço permaneceria, pois não pode ser suprimido.

2) "O espaço é uma representação necessária a priori, que serve de fundamento a todas as intuições externas" (KrV – p. 73/B –38-9). Não se pode admitir que não exista espaço, embora seja possível pensar ( denken) o espaço sem os objetos nele, porque o espaço é condição de possibilidade dos próprios objetos ( como fenômenos). E, se o espaço é a priori, isto é, independente da experiência, então é puro, já que, em Kant, puro e a priori significa independente de qualquer mescla de empiria.

3) "O espaço não é um conceito discursivo ou, como se diz, um conceito universal de relação de coisas em geral, mas uma intuição pura" (KrV – p. 74/B 40). O espaço não é um conceito como uma função matemática ou como uma etiqueta representativa de vários indivíduos reais (empíricos), pois o conceito é aquilo que engloba um número infinito de membros num só conjunto. Por exemplo, os conceitos de "homem" e de "maçã" compreendem uma multidão de homens e de maçãs, respectivamente, sendo, portanto, pluralidade. Ora, o espaço é uno e quando se fala de "muitos" espaços ocorre apenas uma maneira imprecisa de expressar-se, pois deve-se entender que não se fala senão de "partes" de um só e mesmo espaço.

4) "O espaço é representado como uma magnitude dada. Ora, é verdade que se precisa pensar cada conceito como uma representação contida num número infinito de diversas representações possíveis (como sua característica comum), portanto contendo sob si [ unter sich] tais representações; mas nenhum conceito como tal pode ser pensado como se contivesse em si [in sich] um número infinito de representações. Não obstante, o espaço é pensado desse modo (pois todas as partes do espaço são simultâneos ao infinito). A representação originária do espaço é, portanto, uma intuição a priori e não um conceito" (KrV – p. 74/B 40). Bertrand Russell, em sua "História da Filosofia Ocidental", diz que não entende é como uma magnitude ( grandeza, "quantum", no original, "Grösse") infinita possa ser dada...

A seguir, Kant faz a exposição transcendental do espaço, afirmando que ele é a condição de posssibilidade de todo conhecimento a priori, especialmente da geometria. “Logo, unicamente a nossa explicação torna concebível a possibilidade da geometria como um conhecimento sintético a priori”(KrV – 75/B 42).


DO TEMPO


Sobre o Tempo, Kant apresenta praticamente uma exposição metafísica semelhante à do Espaço, e, por isso, evitamos transcrevê-lo aqui para evitar exposição demasiado cansativa (veja-se KrV - 46-48, pp. 44-45, trad. bras.) . Por isso, preferimos transcrever seus argumentos em nota de rodapé .

Do mesmo o modo, Kant, “para ser breve”, remete a exposição transcendental do tempo ao item 3 onde faz a mesma coisa com relação ao espaço, porém acrescenta que a exposição transcendental do tempo se refere ao conceito de mudança. Esta só é possível no tempo, onde ocorre a sucessão das coisas ou acontecimentos: “Nosso conceito de tempo explica, portanto, a possibilidade de tanto conhecimento sintético a priori quanto é exposto pela doutrina geral do movimento, a qual não é pouco fecunda” (KrV – p. 78/B 49).

As consequências do que se expôs acima é a justificação da Matemática como ciência. Por Matemática em Kant, entenda-se a Aritmética e a Geometria. Kant provavelmente desconhecida a Álgebra, que faz a inter-relação entre a Geometria e a Aritmética, e que foi criada pelos árabes na Idade Média e, modernamente, por Descartes. Se o espaço e o tempo são formas de intuições puras, a priori, e inerentes à natureza humana por sua própria constituição, então a Geometria, que trata das relações no espaço, e a Aritmética , que trata das relações no tempo ( pois "contar" ou "acontecer" implica mudança, sucessão, e esta só é possível no tempo) são também ciências, possuem leis a priori, existentes no sujeito humano. Embora tais leis só se manifestem mediante a experiência, são anteriores a ela. Só mesmo considerando o espaço e o tempo como formas subjetivas e a priori com que o sujeito elabora as intuições, é possível a construção dos juízos sintéticos a priori na Matemática. Com isto fica legitimada esta ciência. A título de conclusão, citamos ainda este trecho de Kant, contido nos Prolegômenos:

"O problema da presente secção está, pois, resolvido. A matemática pura, como conhecimento sintético a priori, só é possível enquanto ela não se aplica senão a objetos dos sentidos, cuja intuição empírica se funda numa intuição pura ( do espaço e do tempo) e, certamente, a priori, e pode fundar-se porque esta intuição pura não é mais do que a simples forma da sensibilidade, que precede a real aparição dos objetos, ao torná-la primeiramente possível na realidade. No entanto, esta faculdade de intuição a priori diz respeito, não à matéria do fenômeno, isto é, ao que nele é sensação, pois esta constitui o elemento empírico, mas apenas à sua forma, o espaço e o tempo. Se duvidasse minimamente que são determinações inerentes, não às coisas em si mesmas, mas apenas a sua relação com a sensibilidade, eu gostaria de saber como se pode julgar possível a priori e, por conseguinte, antes de todo o conhecimento das coisas, isto é, antes de nos serem dadas, qual é a natureza de sua intuição, o que é aqui, contudo o caso do espaço e do tempo. Mas isto só é inteiramente compreensível se tomarem apenas como condições formais de nossa sensibilidade, porque então a forma do fenômeno, isto é, a intuição pura, pode ser por nós próprios representada a priori." (Prolegômenos a toda a Metafísica Futura, 11, pp. 51-52, trad. portuguesa de Artur Morão, Lisboa, Edições 70, 1988).

Após justificar a Matemática como ciência, Kant enfrenta o problema de justificar a Física, na Analítica Transcendental.


A ANALÍTICA TRANSCENDENTAL



Kant, como se disse acima, dividiu a KrV em Estética Transcendental e Lógica Transcendental. Que é a Lógica Transcendental? Kant responde:


"Na expectativa de que talvez haja conceitos que possam se referir a priori a objetos - não como intuições puras ou sensíveis, mas apenas como ações do pensamento puro, que são por conseguintes, conceitos, mas tampouco de origem tanto empírica quanto estética - formamo-nos antecipadamente a idéia de uma ciência relativa ao conhecimento puro do entendimento e da razão mediante a qual pensamos objetos de modo inteiramente a priori. Uma tal ciência, que determinasse a origem, o âmbito e a validade objetiva de tais conhecimentos, teria que se denominar Lógica Transcendental porque só se ocupam com as leis /do entendimento e da razão, mas unicamente na medida em que é referida a priori a objetos e não, como a lógica geral, indistintamente tanto aos conhecimentos empíricos quanto aos conhecimentos puros da razão" (KrV – p. 94-5 /B 81-2. Sobre a Lógica Transcendental ainda falaremos adiante).


Quer dizer, a Lógica geral se refere a objetos já construídos, enquanto a Lógica transcendental trata das leis da entendimento e da razão enquanto se referem a esses objetos de modo absolutamente a priori.

Felix Grayeff, em seu livro "Exposição e Interpretação da Filosofia Teórica de Kant", esclarece-nos:

"Para caracterizar a sua nova ciência da lógica transcendental, Kant compara-a com a lógica geral. Enquanto o pensamento uniforme e conexo na lógica geral é entendido como um sistema de regras básicas que se reportam a objetos construídos, na lógica transcendental o pensamento é compreendido como um ato de entendimento pelo qual certas regras são realizadas, nomeadamente no tempo, isto é, pelo qual os objetos são originariamente construídos" ( p. 90, Edições 70, Lisboa, 1987) .

A Lógica Transcendental é subdividida em Analítica Transcendental e Dialética Transcendental. Trataremos agora, da Analítica Transcendental.

A Analítica Transcendental, por sua vez, compõe-se de dois livros: o Livro Primeiro, denominado Analítica dos Conceitos, onde Kant realiza o estudo de todos os conceitos puros do entendimento ( tais conceitos são as categorias), e o Livro Segundo, chamado Analítica dos Princípios, onde Kant, para demonstrar que a experiência resulta das categorias, realiza a enumeração dos quatro princípios pelos quais nossas percepções se elevam a conhecimento (científico). Assim diz Kant: “A lógica transcendental, portanto, que expõe os elementos do conhecimento puro do entendimento e os princípios sem os quais um objeto de maneira alguma pode ser pensado, é a analítica transcendental, e ao mesmo tempo uma lógica da verdade” (KrV – p. 97/B 87). Portanto, a lógica transcendental é uma lógica de conteúdo.

Vejamos a Analítica dos conceitos e, logo a seguir, a Analítica dos princípios.


Livro Primeiro - Analítica dos Conceitos


Aqui, Kant realiza a dedução das categorias, isto é, dos conceitos puros do entendimento, em duas seções, a saber: Dos Princípios de uma Dedução Transcendental em Geral e Dedução Transcendental dos Conceitos Puros do Entendimento. A Analítica Transcendental é uma análise do entendimento visando realizar "uma investigação crítica dos fundamentos do nosso conhecimento físico" ( Felix Grayeff, op. cit., p. 94). E, sobre o entendimento, Kant diz: "Se queremos denominar a receptividade de nossa mente a receber representações, na medida em que é afetada de algum modo, de sensibilidade, a faculdade de produzir ela mesma representações, ou a espontaneidade do conhecimento é, contrariamente, o entendimento" (KrV - “Da Lógica em Geral”, pp. 91-92/B 75)). O entendimento é uma faculdade de regras, dos juízos e, portanto, de pensar. É uma faculdade discursiva e não intuitiva, é uma faculdade de pensar por conceitos e não por intuição ( diz Kant que os sentidos não podem pensar, nem o entendimento sentir). E o conceito empírico é uma regra de síntese da percepção. A Dedução de Kant é a determinação dos conceitos puros do entendimento ou categorias, as quais produzem todos os demais conceitos do entendimento humano.

As categorias são as funções lógicas dos juízos e, numa nota de rodapé da primeira edição da Crítica, Kant afirmou que "as funções lógicas dos juízos: unidade e pluralidade, afirmação e negação, sujeito e predicado, não podem definir-se sem incorrer em círculo vicioso, porque toda definição deveria ser um juízo e, portanto, conter já essa função" (Crítica de la Razón Pura, vol. II, Livro Segundo da Analítica, p. 15, Editorial Losada, Buenos Aires, 1967; ed. alemã, A 246; ed. portuguesa, p. 263). As categorias não derivam da experiência; pelo contrário, determinam a própria experiência. Elas existem a priori no entendimento e são, portanto, pré-existente, isto é, "não nascem" nem são produzidas: são eternas (pelo menos enquanto durar o gênero humano), como propriedade do sujeito humano.

Já na segunda edição de Crítica, Kant diz que as categorias: "são conceitos de um objeto em geral mediante os quais a sua intuição é considerada determinada no tocante a uma das funções lógicas dos juízos" (KrV – p. 120/B 128). As categorias são conceitos primitivos e elementares, formadores de todos os demais conceitos, que são derivados delas. Nós as conhecemos através de uma análise, isto é, elas são deduzidas das próprias funções dos juízos.

Kant tenta descobrir e classificar as funções fundamentais do entendimento, que são os juízos ou a faculdade de formulá-los. Procura classificá-los e apontar uma categoria correspondente a cada classe de juízo. Para isso, ele recorre à Lógica Clássica, já que, segundo ele, depois de Aristóteles, a Lógica passou a ser uma ciência completa e acabada, nada mais sendo preciso acrescentar a ela, salvo algum refinamento secundário. Só depois de classificar os diversos tipos de juízos e determinar suas respectivas categorias, é que Kant procura demonstrar sua legitimidade ( "dedução").

Antes de fornecermos a lista das categorias, devemos lembrar que Kant introduziu algumas pequenas modificações na classificação dos juízos. Coloca um "juízo singular" entre os juízos de quantidade (na Lógica tradicional era idêntico ao universal, significando categoricamente coisa idêntica dizer este gato é um animal ou todo gato é animal); distingue o juízo infinito ( limitativo) do juízo afirmativo, e põe o juízo categórico entre os juízos de relação ( que eram hipotéticos, antes), mesmo sendo o juízo categórico contrário ao hipotético. E, por fim, entre as proposições modais, introduz o juízo assertório, que antes era oposto ao hipotético (cf. Nicola Abbagnano, História da Filosofia, vol. VIII, p. 97, Editorial Presença, Lisboa, 1970).

O entendimento, como se disse, é a faculdade das regras dos conceitos e juízos; é faculdade de julgar ou pensar, ligando conceitos ou juízos através da síntese. "Entendo por síntese - expõe Kant - em sua mais alta significação, a operação de reunir as representações uma com as outras e compreender toda sua diversidade num só conhecimento" (KrV – p. 107/B 103). Como os juízos não são apenas ligações de conceitos , mas ligações também de juízos ( caso dos hipotéticos ou disjuntivos), Kant diz que o juízo "não é senão o modo de levar os conhecimentos dados a uma unidade objetiva da apercepção" (Apperzeption)(KrV – p. 126/B 141) .

As categorias, que correspondem aos diversos tipos de juízos, são em número de doze, escolhidas, segundo Kant, não arbitrariamente, mas conforme a análise dos próprios juízos. Eis a tabela dos juízos:

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TABELA DOS JUÍZOS
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1 - QUANTIDADE 2 - QUALIDADE
- Universais - Afirmativos
- Particulares - Negativos
- Singulares - Infinitos


3 - RELAÇÃO 4 - MODALIDADE
- Categóricos - Problemáticos
- Hipotéticos - Assertóricos
- Disjuntivos - Apodíticos

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A cada tipo de juízos desses corresponde uma categoria que, portanto são também em número de doze:


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TABELA DAS CATEGORIAS
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1 - QUANTIDADE 2 - QUALIDADE
- Unidade - Realidade
- Pluralidade - Negação
- Totalidade - Limitação


3 - RELAÇÃO 4 - MODALIDADE
- Substância e Acidente - Possibilidade-impossibilidade
- Causalidade e Dependência (Causa e efeito) - Existência - Não-Existência
- Comunidade ( Reciprocidade entre Agente - Necessidade - Contingência
e Paciente)
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Para uma melhor compreensão das tábuas ( tabelas) acima, daremos exemplos de cada tipo de juízo com suas respectivas categorias, pois, de modo geral, os manuais de filosofia oferecem apenas as tabelas e esquecem-se de dar os exemplos de cada juízo. Os juízos, como se viu, são classificados:

I - Quanto à quantidade;
II - Quanto à qualidade;
III - Quanto à relação;
IV - Quanto à modalidade.

I - Quanto à quantidade - Os juízos, no que diz respeito à quantidade, podem ser de três tipos: a) universais; b) particulares; c) singulares.

Kant, em sua Lógica, assim se expressa sobre o assunto:

"do ponto de vista da quantidade, os juízos são universais, ou particulares, ou singulares, conforme o sujeito no juízo esteja inteiramente incluído na noção de predicado ou dela excluído, ou nela só em parte incluído e em parte excluído. No juízo universal, a esfera de um conceito se vê inteiramente compreendida no interior da esfera de outro conceito; no particular, uma parte do primeiro vê-se compreendida sob a esfera do outro; e, no juízo singular, finalmente, um conceito que não tem nenhuma esfera se vê por conseguinte compreendido como uma simples parte sob a esfera de um outro" (Lógica, "Doutrina Geral dos Elementos", cap. II, parágrafo 21, p. 122, trad. Guido Antônio Almeida, Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1992/edição italiana, a cura di Leonardo Amoroso, p. 94, Laterza-Bari, 1984/edição alemã, "Band III", p. 532, op. cit., indicada na Bibliografia).

Exemplo de cada juízo: a) todos os homens são mortais; b) alguns homens são fascistas; c) este homem (Pedro...) é fascista . Como se disse, os juízos são formulados mediante as categorias patrocinadoras. Assim, o juízo universal é formulado mediante a categoria de Unidade, o particular pela categoria de Pluralidade, e o singular pela categoria de Totalidade [Allheit] (Alguns autores modernos, quando tratam do assunto, erroneamente colocam a categoria de unidade para o juízo singular e a de totalidade para o juízo universal.).

II - Quanto à qualidade - No que se refere à qualidade, os juízos podem ser: a) afirmativos; b) negativos; c) infinitos. "No juízo afirmativo, o sujeito é pensado sob a esfera de um predicado; no juízo negativo, ele é posto fora da esfera do último; e, no infinito, ele é posto na esfera de um conceito que fica fora da esfera de um outro"(Kant, op. cit., 22, p. 123, trad. Guido A. Almeida/ed. italiana, p. 96/ed. alemã, p. 534).

Exemplo de cada juízo: a) Todos os homens são mortais; b) Nenhum argentino é brasileiro; c) a alma é não-mortal. As categorias correspondentes a esses juízos são, respectivamente: a) realidade; b) negação; c) limitação.

III - Quanto à relação - No que se refere à relação, os juízos são: a) categóricos; b) hipotéticos; c) disjuntivos. "Com efeito, as representações dadas no juízo são subordinadas uma à outra para a unidade da consciência, ou bem como o predicado ao sujeito; ou bem como a consequência à razão; ou bem como um membro da divisão ao conceito dividido. Pela primeira relação ficam determinados os juízos categóricos, pela Segunda os hipotéticos e pela terceira os juízos disjuntivos" (op. cit., 23, p. 124/ed. italiana, p. 97/ed. alemã, p. 535).

Exemplo de cada juízo: a) o homem é um animal racional; b) se existe uma justiça perfeita, então o delinqüente será castigado; c) o mundo existe ou por uma causa acidental, ou por ma necessidade, ou por uma causa externa. As categorias que se ocupam de tais juízos são, respectivamente: a) a de substância e acidente; b) a de causalidade e dependência; c) e a de comunidade ( reciprocidade).

IV - Quanto à modalidade - Finalmente, no que se refere à modalidade, os juízos são: a) problemático; b) assertórico; c) apodítico. "Os problemáticos são acompanhados da consciência da mera possibilidade; os assertóricos, da consciência da realidade efetiva; os apodíticos, por fim, da consciência da necessidade de julgar" (op. cit., 30, p. 127/ed. italiana, p. 102/ed. alemã, p. 539) – ou exprime uma necessidade lógica.

Exemplo de cada juízo: a) A pode ser B ( José pode ser um filósofo); b) A é realmente B ( José é, realmente, um filósofo); c) A tem que ser B ( José tem que ser um filósofo; a soma dos ângulos internos de um triângulo é igual a 180 graus; todo círculo tem um centro) (cf. verbete Apodítico, in José Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1978). As categorias responsáveis por esses tipos de juízos são: a) possibilidade; b) existência; c) necessidade.

Mas não basta identificar as categorias. É necessário demonstrar que elas são legítimas. Demonstrar isso é tarefa da dedução. O termo "dedução" não é entendido no sentido de provar um dado ou um fato, a partir de uma premissa geral, como na lógica aristotélica ou moderna, já que tal fato, no presente caso, já existe: as categorias são um dado. Como se disse, dedução, aqui, é entendida no sentido de demonstrar as condições de possibilidade das categorias, isto é, sua legitimidade. Sobre isso, assim discorre Abbagnano: "noutros termos, provar que a pessoa X está de posse do objeto Y não é dedução; mas é dedução demonstrar que X tem sobre Y um direito de propriedade" (História da Filosofia, vol. VIII, pp. 99-100, op. cit.; cf. KrV – p. 114/B 117).

Kant pretende demonstrar em sua dedução que a experiência pressupõe uma unidade formal da consciência e que esta unidade não ocorre arbitrariamente (subjetivamente), mas segundo regras que lhe dão objetividade. A esse respeito, escreve Romano Galeffi: "o escopo principal que o nosso filósofo visa alcançar com a Crítica da Razão Pura em geral, e com a 'dedução' em particular, não é o de explicar o processo psicogenético do conhecimento, mas o de explicar o valor objetivante dos conceitos" (A Filosofia de Immanuel Kant, p. 83, UnB, 1986). E, confirma Felix Grayeff: "é tarefa da dedução transcendental explicar como é que as categorias podem ser determinantes, isto é, demonstrar a legitimidade e a validade objetiva das categorias" (op. cit., p. 128) .

Essa objetividade é necessária para a fundamentação da ciência, pois se as categorias não dessem objetividade aos fenômenos, o mundo seria mera fantasia ou ilusão. Por exemplo, elas não tem validade quando são aplicadas a objeto como a Alma ou Deus. Portanto, em que sentido é legítimo, ou seja, objetivo, o emprego das categorias? Pensar ( formular juízos) é realizar conexão de conceitos ( ou de juízos, no caso das proposições de relação), mas conhecer é realizar uma conexão necessária e não subjetiva ou arbitrária; o juízo científico não é apenas relação entre dois conceitos, mas relação objetiva. Toda experiência é constituída por relações objetivas, necessárias. E onde se fundamentam essas relações objetivas, já que o verdadeiro "mundo externo" é incognoscível e as percepções ( intuições), em si mesmas, não nos fornecem nenhum caráter de necessidade? Só há - segundo Kant - uma resposta: as categorias devem ter poderes estruturadores (constituidores) sobre a construção da própria experiência. As categorias são mecanismos que moldam e modelam, ordenam e coordenam (através dos esquemas) as intuições ou fenômenos numa unidade objetiva e inteligível, constituindo assim todo o fundamento das leis que constróem e determinam o comportamento da Natureza.

"... a validade transcendental das categorias enquanto conceitos a priori repousa sobre o fato de que a experiência (segundo a forma do pensamento) é possível /unicamente por seu intermédio. Com efeito, então as categorias se referem necessariamente e a priori a objetos da experiência, porque só mediante elas pode chegar a ser pensado um objeto qualquer da experiência" (KrV – p. 118-9/B 126.) .

Mas o verdadeiro fundamento de tudo isso - pretende Kant - é o eu penso ou unidade sintética originária da apercepção. O eu penso é uma função lógica que tem o poder de acompanhar todas as minhas representações e é a possibilidade e o alicerce da unificação ou síntese das representações, compondo assim a estrutura objetiva da experiência interna e externa, do sujeito e da realidade ( fenomênica). A Natureza ( fenomênica) nada mais é do que as sensações organizadas na e pela mente.

Em suma, o eu penso ( ich denke) é o ato primitivo do entendimento que exprime a possibilidade da experiência como conexão objetiva e necessária entre os fenômenos, mediante o poder estruturador das categorias .

Exposto o conteúdo da Analítica dos conceitos, passemos à analítica dos princípios.


Livro Segundo - Analítica dos Princípios


Neste livro, Kant trata do Esquematismo dos Conceitos Puros do Entendimento, do Sistema de todos os Princípios do Entendimento Puro ( são quatro esses princípios) e, por fim, do Fundamento da Distinção de todos os Objetos em Fenômeno e Noumeno ( Phaenomena und Noumena).

Não é demais repetir que na Estética Transcendental, as coisas sensíveis ao apresentarem-se no entendimento, são pensadas como objetos das intuições, isto é, como fenômenos; portanto, o conhecimento humano tem duas origens - a sensibilidade e o entendimento: "pela sensibilidade um objeto nos é dado; pelo entendimento, ele é pensado em sua relação com esta representação ( como simples representação do espírito). Intuição e conceito, tais são, portanto, os elementos de todo nosso conhecimento, de tal sorte que nem os conceitos sem uma intuição que lhe corresponde de alguma maneira, nem uma intuição sem conceitos, podem fornecer qualquer conhecimento" (KrV – p. 91/B 74). As percepções por si mesmas são cegas e os conceitos sem suas respectivas percepções não possuem conteúdo. Intuições sem conceitos são cegas, conceitos sem intuições são vazios. Por exemplo, suponhamos que eu queira conhecer um gato. Pela sensibilidade ele me é apresentado, através da intuição, a partir das sensações de cor, dureza, cheiro (se é que cheira...), som, etc., de modo que eu faço uma representação sensível dele e inicio o processo do seu conhecimento. Em outras palavras, sem os sentidos ( os clássicos cinco sentidos: visão, audição, olfato, paladar e tato) o gato jamais seria apresentado ao entendimento, a partir da intuição, salvo se aceitássemos a teoria das Idéia Inatas, o que não é o caso. Por outro lado, sem uma faculdade de elaborar conceitos ( o entendimento), eu jamais poderia conhecer o gato . A representação sensível ( do gato ou de qualquer objeto) é concreta, singular e palpável, mas ao ser submetida às categorias, torna-se abstrata, geral, e intelectual (não sensível).

Mas isto não é tudo. Aqui aparece uma dificuldade que precisa ser superada. As intuições são particulares (singulares), concretas e heterogêneas; as categorias (formas puras de conceitos generalíssimos) são universais, abstratas e homogêneas - como é possível então o seu relacionamento, ou seja, como é possível o entrelaçamento das categorias com a diversidade do material sensível da intuição? Em suma, é possível a aplicação das categorias às intuições? Diretamente, não. Kant vai recorrer a uma função intermediária que ele chamou de Esquematismo.

Dificuldade como essa existe desde a Antiguidade. Vimos, por exemplo, como Platão tinha dificuldade de relacionar harmonicamente o mundo sensível com o mundo inteligível das Idéias. Kant, antes da Crítica da razão pura, trata dessa dificuldade na Dissertação de 70 e, mais tarde, na Carta a Marcus Herz ( de 21/02/1772), o problema é colocado da seguinte maneira:

"Mas como era então possível que uma representação se referisse a um objeto sem ser de maneira nenhuma afetada por ele? Eis a questão que deixei inteiramente de lado. Eu afirmei: as representações sensíveis representam as coisas tal como elas aparecem, as intelectuais, como elas são [ aqui, Kant ainda não dizia que a realidade em si era incognoscível] . Mas por que meio estas coisas nos são dadas se não o são através da maneira pela qual nos afetam? E se tais representações intelectuais assentam na nossa atividade interna donde vem a concordância que devem ter com os objetos que, todavia, não são produzidas por ela? E em que se fundamenta o fato de os axiomas da razão pura referentes a esses objetos concordarem com ele sem que este acordo tenha o concurso da experiência? Isso é possível em matemática porque os objetos são meras grandezas e como tal não podem ser representados pelo ato de engendrar a sua representação considerando várias vezes a unidade. Assim, os conceitos de grandeza podem constituir-se a si mesmos e os seus princípios podem ser a priori. Mas, no plano das relações de qualidade, como pode o meu entendimento constituir, inteiramente a priori, conceitos de coisas com os quais as coisas tem, necessariamente, de estar de acordo? Como pode estabelecer na sua simples possibilidade, princípios reais com os quais a experiência tem que estar fielmente de acordo, uma vez que elas são independentes dela? Estas questões arrastam sempre uma obscuridade relativa à faculdade do nosso entendimento: donde lhe vem este acordo com as próprias coisas? " (in "Textos Pré-Críticos", pp. 234-235, op. cit.).


Em outras palavras, nessa época, Kant já tinha resolvido o problema da Matemática, mas não tinha resolvido o problema da Física. Mas ele resolve esse problema na Crítica da Razão Pura introduzindo a noção de Esquematismo Transcendental, que exporemos a seguir (sobre o Esquematismo dos Conceitos Puros do Entendimento, ver KrV, 144-150/B 176 et passim).

Kant diz que, por si mesmo, o esquema é um produto da imaginação, mas que não deve ser confundido com a imagem. É uma função da imaginação cujo objetivo é ligar as noções gerais do entendimento ( categorias) com as percepções (intuições) - isto é, sensibilizar os conceitos - mediante a forma do tempo. O esquema seria uma capacidade de síntese que funcionaria como um termo intermediário entre as categorias e as intuições (singulares), porque sendo estas heterogêneas, dessemelhantes, precisam de que esse terceiro termo seja em parte semelhante às categorias e, em parte, às intuições. Quer dizer, cabe à imaginação lapidar, homogeneizar as intuições ( para que pareçam clones, no caso do ser humano) para poder encaixar esse modelos ( "esquemas") homogêneos nas categorias e assim produzir os conceitos ( derivados) sobre as coisas.

Ora, uma observação que se poderia fazer a esse terceiro termo é que ele ou deveria ser semelhante às categorias ou às intuições. Se semelhante às categorias, exigiria um quarto termo intermediário para se relacionar com as intuições. Este quarto termo, por sua vez, exigiria um quinto termo e assim, ad infinitum. O mesmo problema ocorreria se esse terceiro termo fosse igual às intuições. Se as categorias são de outra "natureza" e não derivam da sensibilidade, então relacionar uma coisa com a outra torna-se problemático. É o velho problema do "terceiro homem" que Aristóteles usou como objeção à "Teoria das Idéias" de seu mestre Platão (o assunto diz respeito à relação entre um homem real e a Idéia supra-sensível de homem, existente fora da realidade fenomênica). É a antiga aporia de conciliar o mundo sensível com o mundo inteligível. Foi talvez por ver essa dificuldade que Kant, notando a obscuridade de sua solução, admitiu que o "esquematismo do entendimento relativo aos fenômenos e à sua simples forma, é uma arte escondida nas profundezas da alma humana, bem difícil de descobrir em sua natureza o procedimento e o segredo" (KrV – p. 146/B 181-2).

Através do Esquematismo do Entendimento é possível a aplicação das categorias às intuições, por meio da determinação transcendental do tempo.

As categorias possuem seus esquemas correspondentes, que são o seu elemento-tempo. Desse modo, o esquema de Quantidade se refere à síntese ou produção do tempo em apreensão sucessivas (série) do objetos; o de Qualidade é o conteúdo do tempo; o de Relação é a ordem de classificação das percepções em todo o tempo; e o de Modalidade é o correlato da determinação de um objeto pertencente ao tempo como um todo. Kant assim explica, com mais detalhe:

“Disso tudo se vê que o esquema de cada categoria contém e faz representar uma determinação de tempo: o esquema de quantidade contém e faz representar a produção (síntese) do próprio tempo na apreensão sucessiva de um objeto; o esquema de qualidade contém e faz representar a síntese da sensação (percepção) com a representação do tempo ou o preenchimento do tempo; o esquema de relação contém e faz representar a relação das percepções entre si em todo o tempo (isto é, segundo uma regra de determinação do tempo); enfim, o esquema de modalidade e de suas categorias contém e faz representar o próprio tempo como o correlato da determinação de se e como um objeto pertence ao tempo. Os esquemas não são, por isso, senão determinações a priori de tempo segundo regras, e estas se referem, segundo a ordem das categorias, à série do tempo, ao conteúdo do tempo, à ordem do tempo, enfim ao conjunto do tempo no tocante a todos os objetos possíveis” (KrV – p. 148/B 184. Para mais detalhes, ver KrV, pp. 146-7/B 182-3.Cf. ( Arch. B. D. Alexander - A Filosofia Crítica de Kant, p. 46, Edições de Ouro, Rio de Janeiro, 1968).

A substância das sensações, através do elemento-tempo, se transforma em pensamento. Mas isso só é possível por meio de quatro princípios, que exporemos a seguir.

Depois de classificar e justificar as categorias, e depois de expor seus esquemas, Kant passa a mostrar os princípios pelos quais as percepções ( intuições) são elevadas à condição de conhecimento. Esses princípios, extraídos das próprias categorias, são regras aplicadas à realidade concreta. São quatro esses princípios: 1) Axioma da Intuição; 2) Antecipação da Percepção; 3) Analogia da Experiência; 4) Postulado do Pensamento Empírico em Geral (ver KrV - Analítica dos Princípios, cap. II, terceira seção). Eis os princípios:


1) Axioma da Intuição ( intuição = Anschauung) - "Todas as intuições são grandezas extensivas" (KrV – p. 157/B 202). Este axioma corresponde às categorias de quantidade e se resume no fato de que a intuição é uma grandeza extensiva e composta de partes. Por esse axioma, a quantidade extensiva, como uma linha, é percebida em partes sucessivas e implica duração. Por ele é possível a aplicação da Matemática ao reino da experiência, pois, como se sabe, para Kant, os juízos desta ciência são sintético a priori, envolve tanto o espaço e o tempo, como a intuição sensível.

2) Antecipação da Percepção (percepção = Wahrnehmung) - Este princípio corresponde à categoria de qualidade e transforma a intensidade da percepção em grau de qualidade. Precede a toda sensação e determina suas características, sendo uma espécie de antecipação do conhecimento. "De acordo com isso, toda sensação, por conseguinte também toda realidade no fenômeno por pequena que seja, possui um grau, isto é, uma quantidade intensiva que sempre ainda pode ser diminuída, e entre realidade e negação existe uma interconexão contínua de realidades possíveis e de menores percepções possíveis. Toda cor, por exemplo, a vermelha, tem um grau que, por pequena que seja, não é jamais o menor, ocorrendo o mesmo em geral com o calor, com o momento do peso, etc." (KrV – p. 161/B 211). Tal axioma pode ser comparado com a noção de antecipação ( prólêpsis) de Epicuro .

3) Analogia da Experiência - "A experiência só é possível mediante a representação de uma conexão necessária das percepções" (KrV – p. 165/B 219). Corresponde à categoria de relação e permite reconhecer a substância dos fenômenos e justificar a causalidade e a reciprocidade dos fenômenos. Sua utilidade é que as percepções são sucessivas e esse princípio substitui essa sucessão pela permanência (substância), pela relação necessária ( causalidade) e pela simultaneidade ( reciprocidade).

4) Postulado do Pensamento Empírico em Geral - Este princípio corresponde à categoria de modalidade e oferece objetividade aos conceitos de possibilidade, realidade e necessidade. O que satisfaz às condições formais da experiência é possível; o que satisfaz às condições materiais da experiência é real; e é necessário aquilo em que a conexão com o real está determinado segundo as condições gerais da experiência ( cf. KrV – 188 e segs/B 265 e segs).


Os dois primeiros princípios se referem à Matemática, isto é, referem-se aos objetos da percepção em termos de número e grau; e os dois últimos se referem à Física e lhe oferecem objetividade ( regras) e legitimidade. Esses quatro princípios limitam toda a experiência humana e determinam o conhecimento dos fenômenos, não podendo ter qualquer aplicação fora da esfera da experiência. Por conseguinte, não podem ser aplicados à coisa-em-si, mas apenas aos fenômenos. Diante disso, diremos algumas palavras sobre o “Terceiro Capítulo da Doutrina transcendental da capacidade de julgar (ou analíticas dos princípios)”, intitulado “do fundamento da distinção de todos os objetos em geral em phaenomena e noumena”.


O PROBLEMA DA “COISA-EM-SI”

O Capítulo Terceiro ( e último) da Analítica dos Princípios trata da distinção dos objetos em fenômenos e noumenos, isto é, do problema da "coisa-em-si" .

O conceito de coisa-em-si é problemático e sofreu evolução no pensamento kantiano e por isso temos que enfrentá-lo com muita cautela . Por isso, seremos sucinto e o trataremos aqui, de modo geral, como se encontra na Crítica da razão pura, em seu sentido negativo, como limite da sensibilidade.

Noumeno é o mesmo que coisa-em-si? Pela Crítica da Razão Pura, podemos dizer que sim. É incognoscível? Segundo Kant, sim. O noumeno ou coisa-em-si é o correlato ( o que está por baixo) dos fenômenos ou é um artifício de Kant para assegurar a existência de Deus, Liberdade e Imortalidade da Alma, isto é, para servir de objetos de sua filosofia prática? Esse três temas são objetos da Metafísica, comumente chamada de Metafísica Especial. Essas e outras perguntas são freqüentemente feitas a respeito da divisão da realidade em fenômeno e coisa-em-si. É preciso lembrar que a coisa-em-si, de modo geral, na Crítica da Razão Pura pode ser concebida como o correlato dos fenômenos.

Um conceito científico deve possuir não só uma forma lógica como também uma referência à realidade sensível. Só a forma lógica o torna vazio e problemático; por isso, requer uma intuição sensível.

“Para todo conceito requer-se, em primeiro lugar, a forma lógica, de um conceito ( do pensamento) em geral e, em segundo lugar, também a possibilidade de dar-lhe um objeto ao qual se refira. Sem esse objeto, o conceito não possui nenhuma sentido e é inteiramente vazio de conteúdo, se bem que possa sempre conter a função lógica de fazer de eventuais dados um conceito. Ora, o objeto não poder ser / dado a um conceito de outro modo a não ser na intuição, e embora uma intuição pura seja possível a priori ainda antes do objeto, ela mesma também só pode obter o seu objeto, por conseguinte a validez objetiva, mediante a intuição empírica, da qual é a simples forma” (KrV – pp. 203-4/B 299).

Quer dizer, os conceitos puros do entendimento ou categorias jamais poderão ter um uso transcendental, mas apenas empírico. Jamais poderão ser aplicados a um objeto fora da experiência ou objeto em si mesmo . Quando as categorias tentam ser aplicadas fora da experiência não produzem conhecimento, mas ilusão. “... o uso meramente transcendental das categorias não é na realidade uso algum e não possui um objeto determinado e nem mesmo determinável segundo / a forma” (KrV – 206-7/B 304-5). Ou seja, a mera possibilidade de uma coisa não pode ser provada apenas pela não-contradição de seu conceito, mas requer um documento ( intuição sensível) para atestar sua existência. Se seu conceito possui apenas a possibilidade lógica de existência, então esse conceito é problemático. Quer dizer, os conceitos das coisas em si mesmas não são contraditórios, podem ser pensados, mas não intuídos ou provados, salvo se existirem intuições intelectuais, além da empírica, o que, para o homem, tais intuições não são reais. De maneira, que a coisa-em-si ou noumeno só pode ser entendido, do ponto de vista da sensibilidade, como algo negativo. Somente do ponto de vista do intelecto pode ser uma Idéia positiva, embora não cognoscitiva:

“Se por noumenon entendemos uma coisa enquanto não é objeto de nossa intuição sensível, na medida em que abstraímos do nosso modo de intuição dela, então se trata de um noumenon em sentido negativo. Se, todavia, entendemos por ele um objeto de uma intuição não sensível, então admitimos um modo peculiar de intuição, a saber, a intelectual que, porém não é a nossa e da qual tampouco podemos entrever a possibilidade. Este seria noumenon em sentido positivo” (KrV – p. 208/B 307).

Quer dizer, do ponto de vista da sensibilidade, o noumeno é visto como negativo, como seu limite; somente do ponto de vista intelectual, é positivo. Mas, embora positivo, é incognoscível. Podemos pensá-lo, mas não conhecê-lo, já que o ser humano não pode ter uma intuição intelectual.

Desse modo, determinadas Idéias, como a de Liberdade, Imortalidade da Alma e Deus, não podem ser conhecidas, existindo apenas neste mundo noumênico, o qual só pode ser encarado como prática ética do ser humano. Kant, em suas obras sobre a moral, como a Crítica da razão prática, faz um uso positiva dessas Idéias

Ora, se as categorias são apenas formas que dão inteligibilidade e objetividade às intuições ou fenômenos ( através dos esquemas), surge logo uma dificuldade. Por que milagre sempre que eu percebo o fenômeno X ele tem sempre um aspecto constante, uma permanência, uma regularidade, uma conexão necessária como se implicasse na existência de algo também permanente e constante por baixo do mundo fenomênico, como seu correlato e sustentáculo? Em termos mais claros, por que é que sempre que eu percebo o meu amigo B ele possui invariavelmente o nariz entre os olhos, as orelhas na cabeça, a cabeça sobre o pescoço e nunca se apresenta diferentemente? Quer dizer, ele tem sempre um aspecto tal que me faz reconhecê-lo sempre como o meu amigo B? Em síntese, por que sempre que eu me encontro com esse meu amigo B, minhas formas a priori arrumam de tal modo e invariavelmente as sensações sempre de uma tal maneira que me fazem reconhecer em B o meu amigo? Essas questões certamente Kant não respondeu e é preferível, por enquanto, neste escrito, não irmos mais adiante.

A título de encerramento desta seção, fornecemos os vários conceitos da coisa-em-si de Kant, conforme Gottfried Martin, em sua obra "Kant Ontología y Epistemología" (parágrafo 29, pp. 186-187, Faculdad de Filosofía y Humanidad da Universidad Nacional de Córdoba, Argentina, 1961). Gottfried distingue quatro sentidos da coisa-em-si:

1) "en primer lugar, la realidad objetiva de las cosas en si significa su independencia de nuestra sensibilidad"; 2) "el segundo aspecto de la realidad objetiva de las cosas en si consiste en que ellas afectan nuestros sentidos"; 3) "podemos señalar como el tercer aspecto la capacidad de las cosas en si ser ordenadas"; 4) "aún acerca de los límites de las posibilidades ontológicas, y acaso más allá de ellos, se encuentra, por último, un cuarto momento: las cosas en si son obras de Dios".

Em suma, segundo este último sentido - o que parece muito com Berkeley - as coisas-em-si não são criadas por nós, mas por Deus, embora tenham o poder de nos afetarem. E, para não contradizer o espírito da KrV, o conceito de criação não é um conhecimento, mas uma idéia regulativa ou orientativa da razão.

Em conclusão, a coisa-em-si permanece problemática no pensamento de Kant. Mas é nessa terra nebulosa e gelada que se situam as Idéias que tentam fundamentar a Metafísica Especial. Sobre elas, Kant dedica a Dialética Transcendental.


A DIALÉTICA TRANSCENDETAL


A Dialética Transcendental, tal como a Analítica Transcendental, também se divide em dois livros: o Livro Primeiro, cujo título é Dos Conceitos da Razão Pura, que é o lugar onde Kant identifica os conceitos da razão pura - as Idéias Transcendentais - adquiridos pela razão em seu uso fora da experiência; e o Livro Segundo, denominado Dos Princípios Dialéticos da Razão Pura, que possui três capítulos: o Primeiro, Dos Paralogismos da Razão Pura, onde Kant trata natureza da Alma (Psicologia Racional); o Segundo, Antinomias da Razão Pura, onde é estudado o Mundo como totalidade, quanto à sua origem e limite no tempo e no espaço, natureza de sua substância e sua conexão causal ou possível Liberdade (Cosmologia Racional); e o Terceiro, O Ideal da Razão Pura, onde é questionado o problema da existência de Deus (Teologia Racional). Embora a conclusão de Kant a respeito dessas Idéias da Razão seja negativa, ele abre a perspectiva de que elas sejam trabalhadas como positivas pela prática ou ação moral do homem. Por isso, é importante estudá-las antes da exposição do pensamento moral de Kant.

O conhecimento humano, como se viu anteriormente, começa na sensação e termina na razão. "Razão é a faculdade de tirar conclusões de determinadas idéias e sua função é obter os princípios mais gerais de que a mente é capaz" (Arch. B. D. Alexander, op. cit., p. 50; cf. KrV – p. 232/B 355).

No que se refere à receptividade da sensação, o sujeito é momentaneamente passivo, "porque a intuição humana do nosso espírito é sempre passiva e só é, por isso, possível enquanto alguma coisa pode afectar os nossos sentidos" (Dissertação de 70, p 199, in "Textos Pré-Críticos", op. cit.). Mas, a partir do instante em que o sujeito recebe a sensação, inicia-se uma longa trajetória de atividade ( "espontaneidade") do espírito sobre os dados sensíveis a fim de construir o conhecimento e constituir a realidade ( fenomênica). Com o espaço e o tempo, o sujeito humano unifica as sensações em intuições, cujo conteúdo é o objeto fenomênico. Essas intuições são trabalhadas, refinadas, lapidadas e homogeneizadas pela atividade da imaginação (Esquematismo) para que possam se transformar em conceitos (derivados), graças à ação das categorias ( = conceitos primitivos). As intuições não se submetem diretamente às categorias, mas aos esquemas. Os conceitos acerca das coisas são forjados no Entendimento graças à ação ou regras impostas pelas categorias, pois o Entendimento é definido como a faculdades das regras. É aqui que ocorre a síntese dos conceitos, isto é, sua ligação ou juízo: "O entendimento constitui um objeto para a razão do mesmo modo como a sensibilidade para o entendimento" (KrV – p. 404/B 693). Mas esse trabalho de unificação não termina no entendimento. A razão procura fazer uma síntese maior, uma sistematização ainda mais ampla do pensamento humano, através da faculdade de raciocinar. Kant assim resume o que foi dito acima:

"Todo o nosso conhecimento parte dos sentidos, vai daí ao entendimento e termina na razão, acima da qual não é encontrado em nós nada mais alto para elaborar a matéria da intuição e levá-la à unidade suprema do pensamento" (KrV – p. 232/B 355).


A razão, pois, não se refere imediatamente à sensibilidade, mas ao entendimento. Enquanto labora no nível do entendimento, a razão constrói o conhecimento. Seu papel é liderar, organizar e coordenar o entendimento, visando fazer uma ampla síntese do mundo fenomênico. Mas quando ela trabalha acima do nível da experiência (entendimento), constrói ilusão. É que a razão não se contenta em se deter nos limites dos fenômenos; deseja ir além da experiência, na tentativa de alcançar a totalidade, uma grande sistematização de toda a realidade.


"Só que, em suas tentativas de estabelecer algo a priori sobre objetos e de estender o conhecimento acima dos limites da experiência possível, a/ razão é inteiramente dialética e suas afirmações ilusórias não se conformam de modo algum a um cânone semelhante ao que a analítica deve conter" (KrV – p. 141-2/B 170-1).


É nesse salto para fora da esfera da experiência que a razão deixa de ser teórica para ser dialética, ou regulativa da prática moral ( ou orientativa do pensamento em geral).

Assim como o entendimento é a faculdade das regras que unifica a experiência, a razão é a faculdade dos princípios que procura uma ampla unidade do pensamento para além da realidade sensível . "Os conceitos da razão servem para conceber, assim como os do entendimento servem para compreender (as percepções)" (KrV – p. 239/B 368). E continua Kant:

"Se o entendimento é a uma faculdade da unidade dos fenômenos mediante regras, a razão é a faculdade da unidade das regras do entendimento mediante princípios. Portanto, ela jamais se refere imediatamente à experiência ou a qualquer tipo de objeto, mas ao entendimento, para dar aos seus múltiplos conhecimentos unidade a priori mediante conceitos a qual pode denominar-se unidade da razão e é de natureza completamente diferente da que pode ser produzida pelo entendimento" (KrV – p. 234/B 359).


Mas o grande perigo a que a razão enfrenta é que ela pretende ultrapassar as fronteiras do mundo empírico. Na ânsia de fazer a mais ampla unificação do pensamento, ela ousa ultrapassar os limites da experiência e culmina por construir sofismas ou ilusão, por querer aplicar as categorias fora do mundo da empiria.

É, portanto, função da Dialética transcendental descobrir essas ilusões dos juízos transcendentais e impedir que eles enganem, embora jamais se possa fazer com que desapareçam.

Assim como a função do entendimento é o juízo, a função da razão é o raciocínio ( silogismo). Pela análise dos juízos, Kant descobre as categorias; pela análise dos diversos tipos de silogismos, Kant determina as diferentes classes de conceitos ou Idéias da razão. E, "por idéia - diz Kant - entendo um conceito necessário da razão ao qual não pode ser dado nos sentidos nenhum objeto congruente. Portanto, os nossos conceitos puros ora considerados são idéias transcendentais” (KrV – p. 247/B 384). Existem três conceitos puros ou Idéias regulativas da razão, como já se disse, que são a imortalidade da alma, a liberdade e Deus.

“Ora, tantas quantas são as espécies de relação que o entendimento se representa mediante as categorias, serão também os conceitos puros da razão. Portanto, dever-se-á procurar em primeira lugar um incondicionado da síntese categórica em um sujeito, em segundo lugar um incondicionado da síntese hipotética dos membros de uma série, em terceira lugar um incondicionado da síntese disjuntiva das partes em um sistema”(KrV – p. 245/B380).

A essas sínteses correspondem três espécies de silogismos dialéticos, a saber (KrV – pp. 255-6/B 398): categórico, hipotético e disjuntivo (cf. N. Abbagnano, História da Filosofia, vol. VIII, p. 130, op. cit.).

O primeiro tipo de silogismo corresponde ao conceito transcendental de sujeito como absoluta unidade; o segundo corresponde ao conceito transcendental de totalidade absoluta das série de condições para um fenômeno; e o terceiro correponde a um ente (absoluto) de todos os entes ou ideal da razão pura (Deus).

A alma, a liberdade ( que se relaciona com a estrutura do Mundo) e Deus são, portanto, as três Idéias ilusórias da razão em seu uso fora da experiência e constituem o objeto da Metafísica – ou melhor, da Metafísica Especial, já que a Metafísica Geral ou Ontologia se transformou, em Kant, em Filosofia Transcendental ou Lógica Transcendental, conforme a linguagem de Kant exposta em “Os Progressos da Metafísica” e outros escritos (cf. Kant – Os Progressos da Metafísica, Segundo Manuscrito, Terceiro Estádio da Metafísica, pp. 63-68, Edições 70, Lisboa, 1986). Em sua referida obra “Os Progressos da Metafísica”, Kant afirma, textualmente:

“A ontologia é a ciência (enquanto parte da metafísica) que constitui um sistema de todos os conceitos do entendimento e dos princípios [grifo nosso], mas só na medida em que se referem a objetos que podem ser dados aos sentidos e, portanto, justificados pela experiência. Ela não toca no supra-sensível que, no entanto, é o fim último da metafísica; insere nesta só como propedêutica, como vestíbulo ou antecâmara da metafísica dita; e chama-se filosofia transcendental, porque contém as condições e os primeiros elementos de todo o nosso conhecimento a priori” (op. cit., Primeiro Manuscrito, Prefácio, p. 13; no original alemão, Werke in sechs Bänden, Band III, p. 590; cf. KrV, Doutrina Transcendental do Método, p. 499/B 873).


Quer dizer, a ontologia é a ciência de um sistema de conceitos, apenas na medida em que estes conceitos se referem a objetos dados na intuição (sensível).

Kant aceita praticamente a divisão da metafísica proposta por Wolff. Este divide a metafísica em geral e especial. A metafísica geral ( metaphysica generalis) ou philosophia prima, ou ainda ontologia, trata do ser enquanto ser, do ser em geral. A metafísica especial ( metaphysica specialis), que trata de seres específicos, por sua vez, subdivide-se em cosmologia racional, psicologia racional e teologia racional (= teodicéia ou teologia natural), que se ocupam respectivamente do mundo, da alma e de Deus.

Kant, na Doutrina Transcendental do Método, última parte da KrV, faz uma outra divisão da metafísica, onde inclui a fisiologia racional que, em parte, poderia ser reduzida à Física. Afirma ele:

“o sistema inteiro da Metafísica consiste em quatro partes principais: 1 - na ontologia, 2 - na fisiologia, 3 – cosmologia racional, 4 – na teologia racional. A segunda parte, a saber, a doutrina da natureza advogada pela razão pura, contém duas subdivisões: a physica rationalis e a psychologia rationalis” (KrV – Doutrina trans. do met., p. 500/B 874-5).

Como se vê, Kant acrescenta à antiga divisão apenas a Física Racional, certamente por influência de Isaac Newton, como bem o diz Celestino Pires . Esta Física Racional ou Filosofia da Natureza é a metafísica da natureza corpórea (já justificada na Analítica Transcendental) – em contraposição à metafísica da natureza pensante (psicologia racional) – e contém os princípios a priori da natureza.

Como a ontologia se reduz a uma análise do entendimento puro, ao invés de uma simples metafísica do ser, a ontologia ( também e principalmente) se transforma também numa metafísica das condições do conhecer, numa Epistemologia, isto é, na Filosofia Transcendental ou Lógica Transcendental: Kant já tinha dito isto em 1770:

“A filosofia primeira que contém os princípios do uso do entendimento puro é, portanto, a Metafísica” (Dissertação de 70, 8, p. 197, op. cit.) .

Os verdadeiros objetos da metafísica especial são, portanto, a alma, a liberdade [que implica o problema da liberdade ou causalidade (necessidade)no mundo] e Deus, o que corresponde realmente à divisão proposta por Wolff. Como se viu acima, dentro desta perspectiva, Kant reduz a três as idéias transcendentais ( conceitos puros da razão): a idéia da alma que contém a unidade absoluta ou incondicionada do sujeito (Psicologia); a idéia do mundo, que contém a unidade absoluta da série das condições dos fenômenos (Cosmologia); e a idéia de Deus, que implica na unidade absoluta de todos os objetos do pensamento em geral (Teologia).

Os três tipos de silogismos ( categóricos, hipotéticos, disjuntivos) que correspondem a essas três idéias, como já se disse, equivalem às ilusões ou sofismas da razão em seu uso dialético, que Kant denomina respectivamente paralogismo transcendental , antinomia da razão pura, e ideal da razão pura.


A PSICOLOGIA RACIONAL


Kant começa por definir o objeto da psicologia racional: “Eu, como pensante, sou um objeto do sentido interno e denomino-me alma. Aquilo que é um objeto dos sentidos externos denomina-se corpo. Portanto, a expressão eu, como um ente pensante, significa já o objeto da Psicologia, que pode denominar-se doutrina racional da alma” (KrV – p. 257/B 400).

A alma é definida: 1) do ponto de vista da relação, como substância; 2 conforme a qualidade, como simples; 3) de acordo com a quantidade, segundo os diferentes tempos em que ela existe, como numericamente idêntica (ou seja, não perde a identidade e é pessoa), quer dizer, é unidade e não pluralidade; 4) e, no que diz respeito à modalidade como existindo em relação com possíveis objetos no espaço, mas sendo que sua existência é mais certa do que a do próprio corpo ou de qualquer outro objeto (cf. KrV – Cap. Primeiro do livro segundo da Dialética Transcendental: “Dos Paralogismos da Razão Pura”, p. 258/B 402).

Kant assevera que o erro (paralogismo) de quem quer conhecer a alma é pretender aplicar ao eu penso ( que é um conceito ou pensamento, e não uma intuição) , as categorias como se o eu penso em si mesmo fosse um objeto. A categoria de substância, por exemplo, só pode ser aplicada aos objetos da intuição e não aos objetos em si mesmos, como é o caso do eu em si. O erro ou paralogismo consiste em tomar o eu penso em dois sentidos diferentes: como coisa-em-si e como fenômeno. O que conhece não pode ser conhecido. É verdade que só temos consciência do eu na presença do mundo, do objeto fenomênico, da empiria ( daí, a refutação do idealismo), mas disso não se segue que a consciência do eu empírico seja a alma mesma (cf. KrV – “Refutação do Idealismo”, p. 192/B 275).

Em outras palavras, isto quer dizer que o pensamento não é a própria alma, mas apenas uma manifestação ( predicado) da alma. Ora – poder-se-ia objetar - se só conhecemos a alma através do pensamento, como podemos assegurar cientificamente que este seja uma manifestação daquela? Infelizmente, quem assegura isso é o pensamento e não a alma...

Assim argumenta Kant:

“o procedimento da psicologia racional é dominado por um paralogismo apresentado pelo seguinte silogismo:
O que não pode ser pensado de outro modo a não ser como sujeito não existe também de outro modo a não ser como sujeito e é, portanto, substância.
Ora, um ente pensante, considerado meramente como tal, não pode ser pensado de outro modo a não ser como sujeito.
Logo, um ente pensante existe também somente como tal, como substância” ( KrV – p. 262/B. 411).


E continua Kant sua exposição:

“Na premissa maior, fala-se de um ente que pode ser pensado em geral sob todo aspecto, consequentemente, também o modo como pode ser dado na intuição. Mas na premissa menor fala-se de um tal ente somente enquanto ele considera a si mesmo como sujeito unicamente em relação com o pensamento e a unidade da consciência, não, porém, ao mesmo tempo em relação com a intuição, pela qual é dado como objeto ao pensamento. Logo, a conclusão é deduzida per sophisma figurae dictionis, isto é, mediante uma inferência sofística” (idem) .

Os pensamentos são predicados e não substâncias (para usarmos a linguagem da metafísica substancialista). Aqui, há uma confusão entre o eu empírico e o eu transcendental. O eu transcendental é apenas a função lógica ( intelectual) que está por baixo das categorias e pelo qual, e somente pelo qual, elas tem papel cognoscitivo, segundo Kant. Não é pelo fato de o eu penso ser determinado pelo seu uso ou aplicação no mundo empírico que ele seja em si mesmo empírico ( objeto) também: a consciência do eu determinante não é objeto; objeto é a consciência do eu determinável .

A conclusão de Kant sobre a Psicologia Racional é de que ela não pode ser justificada como ciência, pois está fundamentada num simples equívoco:

“De tudo isso, vê-se que a psicologia racional tem sua origem num simples equívoco. A unidade da consequência que subjaz às categorias é tomada aqui por uma intuição enquanto objeto, aplicando-se-lhe a categoria de substância. A unidade da consciência, todavia, é somente a unidade do pensamento pela qual não é dado nenhum objeto e ao qual, portanto, não pode ser aplicada a categoria de substância, que pressupões uma intuição dada; tal sujeito, por conseguinte, não pode absolutamente ser conhecido. O sujeito das categorias pelo fato de pensá-las não pode, portanto, obter um conceito de si mesmo como objeto das categorias” (KrV – p. 267/B 422-3).

Por isso, dizer que a alma é uma substância simples, incorruptível, imortal, etc., é aplicar nela a categoria de substância, aplicá-la no próprio sujeito como se este fosse um objeto. Ora, a categoria de substância é uma função do próprio sujeito e só tem significado quando direcionada para o mundo fenomênico, isto é, como função unificadora da experiência. Nada significa quando aplicada à própria alma.

Diante do exposto, a psicologia racional é impossível como ciência.


A COSMOLOGIA RACIONAL


Com base nas categorias, que são uma série na síntese do múltiplo, Kant determina as quatro idéias cosmológicas antinômicas, de acordo com os quatro títulos da referidas categorias (ver, na Analítica, a tabela das categorias). Essas quatro idéias são: “1) a completude da composição do total de todos os fenômenos; 2) a completude da divisão de um total dado no fenômeno; 3) a completude absoluta do nascimento de um fenômeno em geral; 4) a completude da dependência da existência do mutável no fenômeno “ (KrV – p. 278/B 443).

Essas quatro idéias esbarram nas antinomias da razão pura que, correspondentemente, são quatro, a saber:

As Antinomias da Razão Pura

Primeira Antinomia – Tese: o mundo tem um começo no tempo e com relação ao espaço está encerrado em limites (KrV – p. 285/B454). Antítese: o mundo não tem começo nem limites no tempo e no espaço, mas é infinito em ambos ( KrV – p. 286/B 455).

Segunda Antinomia – Tese: no mundo, toda substância composta consta de partes simples e nada mais existe que o simples ou o composto pelo simples (KrV – p.289/B 462). Antítese: no mundo, nenhuma coisa composta consta de partes simples nem existe nada simples ( KrV – p. 290/B 463).

Terceira Antinomia – Tese: a causalidade segundo leis necessárias não é a única de que possam derivar todos os fenômenos do mundo; para explicá-los é preciso supor uma causalidade por liberdade (KrV – p. 294/B 472). Antítese: não há liberdade, mas tudo o que ocorre no mundo obedece a leis naturais ( KrV – 295/B 473).

Quarta Antinomia – Tese: é próprio do mundo algo que, seja como parte ou como causa, é um ente absolutamente necessário (KrV – p. 298/B 480). Antítese: não existe de modo algum um ente absolutamente necessário, nem no mundo nem fora dele, que seja sua causa ( KrV – p. 299/B 481).


Os grandes conflitos da razão pura consistem em que nas antinomias tanto a tese como a antítese podem ser defendidas, o que é contraditório. Entretanto, Kant diz que o erro, no que se referem às duas primeiras antinomias (que ele chama de antinomias matemáticas), ambas consideradas por ele como falsas, é tomar o espaço e o tempo como coisas-em-si. Ambas as antinomias se baseiam no espaço e no tempo e estes são apenas formas subjetivas de percepções (intuições) e não realidades objetivas, existentes em si mesmas. Se fossem realidades em si mesmas seriam condições de toda forma de existência, inclusive a de Deus . Portanto, essas contradições são removidas logo que tomamos o espaço e o tempo como simples formas (subjetivas) de percepções dos fenômenos e não como pressupostos absolutos das coisas, como condições das coisas em si mesmas .

As duas últimas antinomias (denominadas antinomias dinâmicas) são ambas consideradas por Kant como verdadeiras, isto é, tanto as teses como as antíteses. O mundo como fenômeno, a que aplicamos as categorias, é regido por leis necessárias da causalidade e nele não existe teoricamente lugar para a liberdade. Entretanto, no mundo como coisa-em-si, existe lugar para a liberdade e consequentemente para uma causa não causada, uma causa livre – numa palavra Deus ( consequentemente, há lugar também para a liberdade do homem como ser inteligível e moral).

Conclusão: de um lado, o mundo fenomênico é governado por leis necessárias e, por outro lado, o mundo noumênico é regido pela liberdade. Daí por que, na Crítica da Razão Prática e na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant vai dizer que o homem pertence a esses dois mundos: como fenômeno está sujeito à necessidade e, como noumeno, é livre, autônomo, um ser moral. Esses dois mundos devem, a final de contas, no reino dos fins, coincidirem. Deus, como postulado da razão, pertence a esse mundo noumênico e é o próprio criador das coisas-em-si, embora a noção de criação seja uma idéia regulativa e não científica. Quer dizer, a idéia de Deus não é provada teoricamente, mas é aceita como objeto da filosofia prática (moral), ocorrendo o mesmo com a idéia de liberdade.


A TEOLOGIA RACIONAL OU IDEAL DA RAZÃO PURA



Como se disse anteriormente, a razão pura persegue a mais alta unidade e sistematização de que é capaz o pensamento humano. A razão trabalha em dois níveis: enquanto coordena o entendimento produz conceitos científicos (“objetivos”), já que se limita ao mundo da experiência; mas fora do entendimento, passando por cima da experiência, a razão produz apenas conceitos vazios ou Idéias. Tais Idéias estão acima das categorias e muito distanciadas da experiência:

“as idéias, porém, estão ainda mais afastadas da realidade objetiva do que as categorias, pois não se pode encontrar nenhum fenômeno em que as idéias se deixem representar in concreto. Elas contêm uma certa completude que nenhum conhecimento empírico possível chega a alcançar e a razão visa nelas somente uma unidade sistemática, à qual procura aproximar a unidade empírica possível sem jamais a alcançar inteiramente. Entretanto, mais afastada ainda da realidade objetiva do que a idéia parece estar aquilo que denomino o ideal e pelo qual entendo a idéia não simplesmente in concreto mas in indivíduo, isto é, como uma coisa singular, determinável ou mesmo determinante unicamente mediante a idéia” (KrV – p. 356/B 395-6).

Quer dizer, a razão, ainda não contente por ultrapassar os limites da experiência e construir essas idéias transcendentais, busca ademais alcançar o ponto mais alto de unificação, um ideal da razão pura ou Deus. “O que para nós é um ideal era para Platão uma idéia do entendimento divino, um objeto na intuição desse entendimento, o mais perfeito de toda espécie de entes possíveis e o fundamento de todas as cópias do fenômeno” (KrV – p. 356/B 597). A diferença entre o ideal de Kant e a Idéia de Platão é que esse ideal kantiano, como se viu, é único, um ente singular, um protótipo ( prototypon), enquanto que para o platonismo existiam várias idéias – uma idéia para cada espécie de coisas do mundo fenomênico.

Mas esse ideal existe ou é mera ilusão da razão?

Para que se possa provar a existência de Deus, para Kant, há três possibilidades: a) a prova ontológica; b) a prova cosmológica; c) e a prova físico-teológica, as quais são apresentadas e, em seguida, refutadas por Kant.

Kant assegura que só há três supostas provas da existência de Deus:

“Todos os caminhos que com este objetivo se queiram empreender ou começar com a experiência determinada e com o modo de ser do nosso mundo dos sentidos conhecido através dela, daí descendo segundo leis da causalidade até a causa suprema fora do mundo; ou põem empiricamente como fundamento somente uma experiência indeterminada, isto é, uma existência qualquer; ou, finalmente, abstraem de toda a experiência e de modo totalmente a priori inferem de simples conceitos a existência de uma causa suprema. A primeira prova é a físico-teológica, a segunda é a cosmológica, e a terceira é a ontológica, não há e não pode haver um número maior de provas” (KrV – p. 367-8/B 619; cf. B 621-622-623).

A seguir, iremos expor as três provas da existência de Deus com suas respectivas refutações.


A ) A Prova Ontológica

A prova ontológica ou argumento ontológico possui uma longa história ( cf. Michele Federico Sciacca – História da Filosofia, vol. I, Editora Mestre Jou, São Paulo, 1967), por isso ousamos fazer uma pequena digressão, a fim de melhor esclarecer o assunto.

Na Idade Média, Santo Anselmo o formula alegando que Deus é um “ser do qual não é possível pensar outro maior” ( Proslógio, cap. II, p. 101, in “Os Pensadores”, Abril Cultural, São Paulo, 1979) . Logo, Deus existe, pois do contrário não seria o ser do qual não se pode pensar outro maior. Eis a continuação do argumento, literalmente:

“Mas ‘o ser do qual não é possível pensar nada maior’ não pode existir somente na inteligência. Se, pois, existisse apenas na inteligência, poder-se-ia pensar que há outro ser existente também na realidade; e que seria maior. Se, portanto, ‘o ser do qual não é possível pensar nada maior’ existisse somente na inteligência, este mesmo ser, do qual não se pode pensar nada maior, tornar-se-ia o ser do qual é possível, ao contrário, pensar algo maior; o que, certamente, é absurdo. Logo, ‘o ser do qual não se pode pensar nada maior’ existe, sem dúvida, na inteligência e na realidade” (Santo Anselmo, Proslógio, cap. II, p. 102, op. cit.).


Gaunilo, monge de Marmoutier, criticou esse argumento dizendo que ele é semelhante à alegoria de alguém que imaginasse existir uma ilha desconhecida num ponto qualquer do oceano da qual se contassem muitas maravilhas e daí concluísse que ela existiria efetivamente, pois do contrário não teria essas maravilhas (ver essa objeção do monge de Marmoutier no Proslógio, op. cit., p. 127). Santo Tomás de Aquino, embora aceitasse a identificação entre essência e existência em Deus, rejeitou esse argumento a priori de Santo Anselmo, preferindo propor argumentos a posteriori, para provar a existência de Deus, a partir do mundo da experiência e não do mundo da lógica (cf. Compêndio de Teologia, caps. X-XI, in “Os Pensadores”, Abril Cultural, São Paulo, 1979).

Modernamente, Descartes retomou o mesmo argumento, exposto no Discurso do Método, nas Meditações Metafísicas, e nos Princípios de Filosofia (ver especialmente a “Quinta meditação”, parágrafos 7-10, pp. 172-176, in “Obra Escolhida”, Difusão Européia do Livro, São Paulo, 1973; cf. “Princípios de Filosofia, 14, pp. 64-65, Guimarães Editores, Lisboa, 1984) , onde ele afirma que Deus existe porque é perfeito, do contrário, se não existisse, não seria perfeito. Para Descartes, Deus é um ser soberano e perfeito, em cuja idéia, e somente nela, a existência é necessária: “Eu nada poderia conceber, exceto Deus só, a cuja essência a existência é necessária” (Meditações Metafísicas, 10, p. 175, Difusão Européia, op. cit.). É o velho problema da essência e da existência. Embora Descartes não separasse de fato a existência da essência nas coisas materiais, achava todavia que uma seria separável da outra, pelo menos na esfera da mente, da lógica (por abstração), de modo que eu poderia pensar logicamente suas essências sem implicar suas existências. Mas em relação a Deus, a essência necessariamente implicaria a sua existência e, portanto, pensar Deus ( sua essência) equivale a admitir a sua existência.

Em suma, o argumento ontológico deseja provar o sujeito por seus predicados, ou seja, o real pelo ideal (possível) – o que constitui um verdadeiro salto, ad hoc, da esfera lógica (onde tudo que não é contraditório é possível) para a esfera ontológica. Ora, o problema é provar se a passagem de uma esfera para outra é legítima. Nem tudo que é possível é necessariamente real .

Em Kant, a refutação do argumento é simples: se o conceito de existência resulta da aplicação da categoria de existência à realidade empírica, então Deus só teria uma existência comprovada, conhecida ( ou cognoscível) se fosse possível aplicar nele a referida categoria. Ademais, a existência não é um predicado. Assegura Kant que cem táleres possíveis (ideais) possuem os mesmos predicados de cem táleres reais, mas com cem táleres reais eu sou mais rico e com cem táleres ideais eu não posso comprar nada: infelizmente, falta-lhes a existência, pois não são sensíveis, perceptíveis, não podem ser experimentados.

“E assim o real nada mais contêm que o simplesmente possível. Cem táleres reais nada mais contêm que cem táleres possíveis. Com efeito, visto que estes significam o conceito, aqueles porém o objeto e a sua posição em si mesma, no caso de este conter mais que aquele o meu conceito não representaria o objeto inteiro, e, por conseguinte, também não seria o seu conceito adequado. Mas para o estado das minhas posses há mais em cem táleres reais que no simples conceito deles (isto é, na sua possibilidade)” (KrV – p. 371-2/B 628).

Com isto, fica refutado o argumento ontológico em favor da existência de Deus.


B) A Prova Cosmológica

Esta prova se baseia no fato de que o mundo é contingente e, por conseguinte, exige um ser necessário como seu fundamento primeiro e derradeiro. Kant expõe a prova assim: “se algo existe, também tem que existir um ente absolutamente necessário. Ora, pelo menos eu existo. Portanto, existe um ente absolutamente necessário” (KrV – p. 374/B 632).

O defeito dessa prova é concluir a partir da experiência ( contingente) uma causa necessária fora da própria experiência. Por isso, tal prova não tem valor algum. Kant aponta os princípios enganosos dessa prova, que são: 1) o princípio transcendental de inferir do contingente uma causa, pois tal princípio só tem validade quando aplicado ao mundo da experiência, perdendo o seu significado objetivo quando usado fora da experiência; ademais, o mero conceito intelectual do contingente não produz juízo sintético, como o de causalidade, que perde seu sentido, como se disse, quando usado fora do mundo fenomênico; 2) o princípio de a partir da impossibilidade de uma série infinita, concluir uma causa primeira: nem a experiência autoriza isso à razão, nem esta pode estender tal princípio por cima da própria experiência; 3) a falsa satisfação da razão consigo mesma a respeito da completude desta série pelo fato de haver terminado por suprimir toda condição, apesar de que sem tal condição não poderia haver o conceito da necessidade; 4) a confusão entre a possibilidade lógica de um conceito de toda a realidade reunida – isto é, sem contradição – e a possibilidade transcendental desse conceito que precisa de um princípio que faça factível a síntese, pois tal princípio só pode se referir ao campo da experiência possível (cf. KrV – pp. 376-7/B 637-8).

O argumento cosmológico, saltando da esfera da experiência e admitindo a existência de um ser necessário, reduz-se ao argumento ontológico, pois necessário é um ente cuja existência e essência se identificam, o qual ( argumento) já foi refutado por Kant, anteriormente. Logo, o argumento cosmológico não prova nada.


C) A Prova Físico-Teológica

Este argumento é tratado por Kant com muito respeito que inclusive se refere a este tema mais tarde na Crítica do Juízo . Baseia-se na constatação de que em toda parte existem sinais de que há uma ordem, uma harmonia e uma finalidade na natureza. Isso implica na existência de Deus. É a prova que Santo Tomás de Aquino defende na sua “Quinta via”, chamada também prova teleológica. Kant assim a expõe:

“Os principais momentos da referida prova físico-teológica são os seguintes: 1) por toda a parte no mundo encontram-se sinais claros de uma ordem segundo um propósito determinado realizado com grande sabedoria, e dentro de um todo tanto com indescritível multiplicidade de conteúdo quanto também ilimitadamente grande na extensão. 2) Esta ordem finalista é completamente estranha às coisas do mundo e lhes inere só de modo contingente; isto é, a natureza de coisas diversas não poderia, com a reunião de meios tão diversos, concordar espontaneamente com fins últimos determinados se estes não estivessem sido escolhidos e dispostos para tal de modo bem apropriado por um princípio racional ordenador segundo idéias a eles subjacentes. 3) Logo, existe uma causa sublime e sábia (ou mais de uma) que tem que ser a causa do mundo não simplesmente como uma natureza onipotente que opere cegamente mediante a fecundidade, mas como uma inteligência que atue mediante a liberdade. 4) A unidade desta causa pode ser inferida com certeza, no tocante àquilo até onde alcança a nossa observação, a partir da unidade da referência recíproca das partes do mundo enquanto membros de um edifício construído com arte, e além deste campo inferida só com a probabilidade segundo todos os princípios da analogia” (KrV – p. 384-5/B 654).


Entretanto, Kant objeta que essa prova admite no máximo um ordenador ou arquiteto do mundo e não um criador. Como diz Georges Pascal ( O Pensamento de Kant, p. 103, Vozes, Petrópolis, 1983), “é claro, porém, que a idéia a que nos conduz um tal raciocínio é a de um arquiteto do mundo, e não a de um criador do mundo (...). De sorte que o argumento físico-teológico supõe o argumento cosmológico para mostrar que o arquiteto é também criador pois não só a forma – da ordem – mas a própria matéria do mundo é contingente”.

A prova físico-teológica, por conseguinte, não passa – segundo Kant – de uma prova ontológica disfarçada, visto que pressupõe a prova cosmológica e esta pressupõe a ontológica. Desse modo, todas as provas usadas para demonstrar a existência de Deus fracassaram, embora não se possa demonstrar a sua não-existência. As categorias são princípios constitutivos da experiência e possibilitam a construção e o conhecimento da realidade fenomênica. Mas as Idéias da razão – Imortalidade, Liberdade e Deus – são apenas idéias regulativas para o pensamento teórico e para a ação moral. Produzem, ou melhor, são ilusões e não conhecimentos. Servem como máximas ou orientação para o pensamento na sua tentativa de conseguir a suprema totalização da realidade ( fenomênica + noumênica): com relação à alma, supondo o sujeito humano como substância simples e una, com relação à natureza, concebendo-a como se fosse infinita e, com relação a Deus, tomando a experiência como se formasse uma unidade absoluta, já que Deus seria o cume de sua unificação final. Mas, como argumento científico, a prova físico-teológica não demonstra a existência de Deus.

Em conclusão, a Metafísica Especial não é possível como ciência. Kant então, em sua filosofia prática, vai fazer um uso positivo dessas Idéias da razão pura, que serão postulados da moral ou razão prática.


A DOUTRINA TRANSCENDENTAL DO MÉTODO


Esta parte da obra de Kant mostra a estrutura e os planos do sistema da razão pura, levando em conta seus elementos, o material utilizado e os seus limites, já expondo pontos de vista que levam à transição para a razão prática. Diz Kant: “...entendo por doutrina transcendental do método a determinação das condições formais de um sistema completo da razão pura” (KrV – “Doutrina Transcendental do Método”, p. 427/B 735-6). Tal doutrina compreende uma disciplina da razão pura, um cânone da razão pura, uma arquitetônica da razão pura e uma história da razão pura.

Kant, na disciplina, faz distinção entre Filosofia ( = Metafísica Especial) e Matemática, visando nos precaver contra o uso da razão acima da experiência possível. A Filosofia é o conhecimento racional por conceitos e a Matemática o conhecimento racional por construção de conceitos. O conceito é uma regra de síntese da percepção e, não sendo em si mesmo uma intuição, não pode ser dado a priori. O primeiro tipo de conhecimento ( o filosófico) representa o uso discursivo da razão conforme conceitos e o segundo ( o matemático) o uso intuitivo da razão mediante construção de conceitos. Todos os nossos conhecimentos se referem a intuições reais ou possíveis e só pelas intuições os objetos nos são dados. No seu uso discursivo a razão pode ultrapassar os limites da experiência no propósito de encontrar proposições transcendentais ( sintéticas) feitas em cima de conceitos vazios e, por isso, a Filosofia se transforma em dogmática. Ora, não existem juízos sintéticos a priori na Filosofia (Metafísica Especial), porque seus juízos são formulados por mera análise de conceitos já dados cuja origem não é a priori; mas a Matemática, que se baseia em definições (que constróem o próprio conceito), axiomas e demonstrações (coisas que não existem na Filosofia) e que se referem ou remetem a intuições, possui juízos sintéticos a priori, sendo, portanto, uma ciência.

Quanto à razão dogmática, caracteriza-se esta por desejar provar suas proposições, formuladas sem o auxílio da experiência, apenas por junções de conceitos vazios. Isto atrai ataques a esta pretensões, contrapondo-se-lhe outras proposições, ou seja, opondo-se-lhe proposições contrárias, mas igualmente sem serem provadas na experiência. Estas contestações correspondem ao oposto do uso dogmático da razão: é o uso polêmico da razão. O uso polêmico nega e o uso dogmático afirma. Mas ambos sem fazer a destreza de apresentar as provas de suas proposições. Por isso, a razão deve abandonar seu uso dogmático ou polêmico, como também o uso cético, e adotar a atitude crítica, isto é, deve recusar-se a aceitar objetos que não sejam dados intuitivamente. Somente o uso prático da razão poderá acatar “objetos” dados acima dos limites do mundo fenomênico.

O Cânon é o conjunto de princípios a priori que orientam a aplicação da faculdade de conhecer segundo a razão na sua finalidade última para a qual se destina: seu uso transcendental. Tal finalidade consiste em três objetos: Imortalidade, Liberdade e Deus. Tais objetos só podem ser tratados pelo uso prático da razão, sendo o Cânon de uso eminentemente prático ( servindo ainda para distinguir opinião, fé e razão):

“Ainda assim tem que haver, em algum lugar, uma fonte de conhecimentos positivos pertencentes ao domínio da razão pura; talvez é só por um mal-entendido que dão azo a erros, perfazendo de fato, no entanto, o objetivo dos esforços zelosos da razão. Com efeito, a que causa dever-se-ia imputar de outro modo a ânsia indomável / de tomar pé firme em esferas que ultrapassam de todo os limites da experiência? A razão pressente objetos que se revestem de um grande interesse para ela. Enceta o caminho da simples especulação para se aproximar destes objetos; estes últimos, no entanto, se esquivam dela. Presumivelmente poderá esperar melhor sorte na única senda que ainda lhe resta, a saber, a do uso prático” (KrV – p. 473/B 824).

Isto significa que, no final da Crítica da Razão Pura, Kant já está preparando a transição para a Crítica da Razão Prática, isto é, para a metafísica dos costumes, quer dizer, para a moral.

Continuando a exposição, por Arquitetônica, Kant entende a arte dos sistemas e compreende ele por sistema, segundo Nicola Abbagnano, “a unidade de múltiplos conhecimentos englobados numa única idéia. Como sistema, a filosofia é apenas um ideal, nunca uma realidade. Não se pode aprender a filosofia, mas pode-se aprender a filosofar, isto é, a exercer a razão a aplicar-se à consideração e à crítica dos seus próprios princípios” (História da Filosofia, vol. VIII, XV, p. 140, op. cit.). Como legisladora da razão, a Filosofia trata de dois objetos, a saber, a Natureza e a Liberdade, que correspondem a uma razão teorética ( ou técnico-prática) e a uma razão prática ( ético-prática), constituindo ambas a Metafísica: - Metafísica da Natureza e Metafísica dos Costumes. Mais uma vez, lembramos que, neste final da KrV, preparam-se os antecedentes da filosofia moral .

Finalmente, por História da razão pura, Kant entende uma classificação das várias filosofias: segundo o objeto do conhecimento, em sensualistas e intelectualistas; conforme a origem do conhecimento, em empiristas ( Aristóteles, Locke, etc.) e noologista (Platão, Leibniz), etc.). E, no que diz respeito ao método, em naturalista e científica. No que se refere a este último (método científico), pode-se proceder dogmaticamente (Wolff) e ceticamente ( Hume), mas todas devem proceder sistematicamente. Mas é claro que, no tocante ao método científico, somente o caminho crítico é exequível e ainda está aberto (cf. KrV – p. 504/B 884).

Como as Idéias de Deus, Imortaliddade e Liberdade são meras ilusões, a Metafísica Especial é impossível como ciência, chegando a Crítica da Razão Pura, no campo especulativo, a uma conclusão puramente negativa (cf. KrV - B 473-4/823, op. cit.) a respeito da capacidade da razão teorética de conhecer Deus, justificar a liberdade e provar a imortalidade da alma. Essas Idéias, como já o dissemos, são apenas máximas regulativas da nossa prática moral, e orientativas da sistematização do pensamento em geral, do pensamento em sua totalidade (sistema).

Em suas obras éticas, Kant irá fazer um uso positivo desses objetos da Metafísica Especial, inalcançáveis pela razão especulativa, mas alcançáveis pela razão prática.

No próximo capítulo, iremos expor a tentativa de Kant de fundamentar a Metafísica Especial na razão prática, ou seja, na moral - isto é, nos costumes. Daí o título de sua obra, Fundamentação da Metafísica dos Costumes.

III - CAPÍTULO 2 – DA RAZÃO PURA TEÓRICA À RAZÃO PURA PRÁTICA II – A RAZÃO PURA PRÁTICA



Kant, na Crítica da Razão Pura (KrV), tem uma visão negativa das idéias da razão, mas no final desta obra ele já começa a dar indícios de um uso positivo dessa idéias. Ele começa a fazer isso logo a partir do Apêndice à Dialética Transcendental.

Ele confirma que todas as tentativas da razão teórica pura de fazer inferências para além do campo da experiência conduzem apenas a ilusões, mas nos ensinam...

“ao mesmo tempo a peculiaridade de que todas as idéias transcendentais lhe [ à razão] são exatamente tão naturais quanto as categorias ao entendimento, se bem que com a diferença de que enquanto as últimas levam à verdade, isto é, à concordância de nossos conceitos com o objeto, as primeiras produzem uma simples mas irresistível ilusão [grifo nosso], cujo engano não se pode impedir nem através da mais simples crítica” (KrV – Apêndice... Do uso regulativo das idéias puras da razão, p. 393/B 671).

As ilusões da razão dialética são inevitáveis, mas possuem um uso regulativo para a ordenação do conhecimento teórico como um todo, procurando ordenar com o máximo de extensão possível os conceitos do entendimento, para formar um amplo sistema, isto é, uma totalidade. “... assim como o entendimento reúne o múltiplo no objeto mediante conceitos, a razão por sua vez reúne o múltiplo dos conceitos mediante idéias, ao pôr uma certa unidade coletiva como objetivo das ações do entendimento” (KrV - p. 394B 673). Quer dizer, se o entendimento não pode alcançar a totalidade, esta pode ser trabalhada pela razão em seu uso regulativo, isto é, orientativo ou prático. A idéia da razão “serve para propiciar a tais conceitos [ do entendimento] a máxima unidade ao lado da máxima extensão” possíveis (KrV – p. 394/B 673). Esse trecho mais extenso de Kant nos dá mais explicação:

“Se temos presentes os conhecimentos de nosso entendimento em todo o seu âmbito, então descobrimos que aquilo de que a razão de modo totalmente peculiar, e que procura realizar, é o sistemático do conhecimento, isto é, sua interconexão a partir de um princípio. Esta unidade da razão pressupõe sempre uma idéia, a saber, da forma de um todo do conhecimento que precede o conhecimento determinado das partes e contém as condições para determinar a priori o lugar de cada parte e a sua relação com as demais. Tal idéia postula por isso uma unidade completa do conhecimento do entendimento; graças a essa unidade, o conhecimento não se torna simplesmente um agregado contingente, mas um sistema interconectado segundo leis necessárias. Não se pode propriamente dizer que essa idéia seja um conceito do objeto, mas sim da unidade perfeita desses conceitos na medida em que esta serve de regra ao entendimento. Tais conceitos da razão não são formados a partir da natureza, antes nós interrogamos a natureza segundo essas idéias e consideramos o nosso conhecimento defeituoso enquanto não lhes for adequado. Confesse-se que dificilmente se encontra uma terra pura, uma água pura, um ar puro. Apesar disso, tem-se necessidade dos conceitos respectivos (cuja pureza, todavia, possuía sua origem somente na razão) para determinar convenientemente a participação que cada uma dessas causas naturais possui no fenômeno” (idem, 320, ed. 2000, p. 395) .

Essas idéias puras ou protótipos, como já se disse, são as idéias da razão. E tais idéias não são apenas orientativas da razão em seu uso especulativa ( visando construir um sistema), mas estão também relacionadas com a moral. Quando tais idéias se relacionam com a moral, chamam-se regulativas. Segundo Kant, como já o dissemos alhures, três são as idéias regulativas da Metafísica Especial: a idéia de Imortalidade da Alma, de Liberdade e a de Deus, sendo esta última a responsável pela noção de unidade mais geral possível, isto é, de totalidade, que em sua ordenação engloba tanto a completude da razão teórica como da razão prática (essas três idéias também são estudadas por Kant na “Crítica da Razão Prática”). Quer dizer, qualquer outra idéia da razão está subsumida nessas idéias, especialmente na Idéia de Deus, que representa a unidade da totalidade suprema.

A razão prática é essencialmente moral. Pela ação moral, podemos realizar, alcançar (completar, integrar ) a totalidade dessas idéias. Assim, a filosofia prática de Kant se transforma num programa, numa tarefa, num objetivo, num fim a ser realizado, mesmo sem garantia teórica de que isso seja conseguido, contanto que o seu alcance seja ao menos possível.

As idéias morais são estudadas por Kant em vários escritos, cujos principais citamos a seguir: “Fundamentação da Metafísica dos Costumes” (Grundlegung zur Metaphysique der Sitten, de 1785); “Crítica da Razão Prática” (Kritik der praktischen Vernunft, de 1788); e “Metafísica dos Costumes” (Metaphysik der Sitten, de 1797) . Como diz Arch. B. D. Alexander, a Fundamentação da Metafísica dos Costumes – GMS – trata das leis morais, a Crítica da Razão Prática – KpV - da faculdade de estabelecê-las, e a Metafísica dos Costumes – MS - dos deveres particulares (cf. A Filosofia Crítica do Kant, cap. II, p. 63, Edições de Ouro, Rio de Janeiro, 1968. Nota: As abreviaturas dessas obra utilizam as letras iniciais dos títulos em alemão).

O objetivo do presente trabalho- como já frisamos - é expor a doutrina moral de Kant que está contida especialmente na “Fundamentação da Metafísica dos Costumes” e na “Crítica da Razão Prática”, pois esta complementa aquela. Entretanto, achamos por bem complementar nossa exposição com algumas observações sobre outros escritos de Kant. Mas, neste capítulo 2, limitamo-nos à “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”.

Aqui, na moral, Kant procura responder à sua segunda pergunta: que devo fazer?



1 - EM TORNO DA “FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA DOS COSTUMES”


A Fundamentação da Metafísica dos Costumes é composta por um prefácio e três secções, intituladas: Primeira Seção – Transição do conhecimento moral da razão para o conhecimento filosófico; Segunda Secção – Transição da Filosofia Moral Popular para a Metafísica dos Costumes; Terceira Secção – Transição da Metafísica dos Costumes para a Crítica da Razão Prática Pura.

Kant começa o Prefácio de sua obra dizendo que a filosofia grega dividia-se em três ciências, a saber: Física, Ética e Lógica. Diz ele que isto está de acordo com a natureza das coisas e que nada há que corrigir nesta divisão.

Kant afirma que todo conhecimento racional é...

“ou material e considera qualquer objeto, ou formal e ocupa-se apenas da forma do entendimento e da razão em si mesmas e das regras do pensar em geral, sem distinção dos objetos. A filosofia formal chama-se Lógica; a material porém, que se ocupa de determinados objetos e das leis a que eles estão submetidos, é por sua vez dupla, pois que estas leis ou são leis da natureza ou são leis da liberdade. A ciência da primeira chama-se Física, a da outra é a Ética; aquela chama-se também Teoria da Natureza, esta Teoria dos Costumes” (Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Prefácio, p. 13, trad. Paulo Quintela, Lisboa, Edições 70, 2001).

A Lógica, como já se viu anteriormente ( Capítulo 1), não pode basear-se em princípios retirados da experiência, senão não seria um cânone para o entendimento ou para a razão. Assim, existem leis pelas quais tudo acontece (referem-se ao mundo da experiência); e leis pela quais tudo deve acontecer (referem-se ao mundo da liberdade, da moral).

“Em contraposição, tanto a Filosofia natural como a Filosofia moral podem cada uma ter a sua parte empírica, porque aquela tem de determinar as leis da natureza como objeto da experiência, esta porém as da vontade do homem enquanto ela é afetada pela natureza; quer dizer, as primeiras como leis conforme as quais tudo acontece, as segunda como leis segundo as quais tudo deve acontecer, mas ponderando também as condições sob as quais muitas vezes não acontece o que devia acontecer” (idem, p. 14).

Toda filosofia que se baseia na experiência é denominada de empírica, mas a que se fundamenta em princípios a priori chama-se filosofia pura. Quando esta é simplesmente formal, recebe o nome de Lógica, como já se disse...

“mas quando se limita a determinados objetos do entendimento chama-se Metafísica. Desta maneira surge a idéia duma dupla metafísica, uma Metafísica da Natureza e uma Metafísica dos Costumes. A Física terá portanto a sua parte empírica, mas também uma parte racional; igualmente a Ética, se bem que nesta a parte empírica se poderia chamar especialmente Antropologia prática [ ou pragmática], enquanto a parte racional seria a Moral propriamente dita” (ibidem ).

Sobre a Física, Kant faz a sua justificação racional na “Analítica Transcendental”, uma das partes da “Crítica da Razão Pura”, e sobre o assunto ainda escreve “Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza”; porém não satisfeito com essa obra, Kant volta novamente ao tema em “Transição dos Princípios Metafísicos da Ciência Natural para a Física”, obra que infelizmente ficou inacabada e é fruto de sua avançada velhice, razão por que é encarada pelos especialistas com bastante reserva. Quanto à Ética, Kant, além das obras mencionadas anteriormente, ainda deixou também uma “Antropologia Pragmática” .

Iremos nos ocupar apenas da Ética como Metafísica dos Costumes e não como Antropologia. Mas a filosofia de Kant é interpretada como uma antropologia, não só empírica como também e principalmente filosófica. Embora Kant tenha escrito apenas a antropologia empírica, sua obra como um todo implica numa antropologia metafísica ou filosófica, que se poderia denominar “visão ético-antropocentrista do universo”.

A seguir, Kant procura mostrar a importância, isto é, a necessidade de uma Metafísica dos Costumes, seu Objeto, e Método que usará para elaborá-la.

“Uma Metafísica dos Costumes, é, pois, indispensavelmente necessária, não só por motivos de ordem especulativa para investigar a fonte dos princípios práticos que residem a priori na nossa razão, mas também porque os próprios costumes ficam sujeitos a toda sorte de perversão enquanto lhes faltar aquele fio condutor e norma suprema do seu julgamento. Pois que aquilo que deve ser moralmente bom não basta que seja conforme à lei moral, mas também que cumprir-se por amor dessa mesma lei; caso contrário, aquela conformidade será apenas muito contingente e incerta, porque o princípio imoral produzirá na verdade de vez em quando ações conformes, mas mais vezes ainda ações / contrárias a essa lei” ( idem, p. 16-17).

Quer dizer, precisa-se investigar a idéia e os princípios de uma vontade pura e não as ações e circunstâncias do querer empírico do ser humano em geral, que se baseia em sua maior parte na Psicologia.

O objetivo principal do livro de Kant, pois, é determinar o objeto da Moral, que é a procura de um princípio supremo da moralidade (imperativo categórico) e que deve ser determinado a priori.

Quanto ao método usado por Kant na Fundamentação, ele usa o método analítico. Sobre a diferença entre método analítico e sintético, utilizado por Kant na elaboração e exposição de suas obras, Sofia Vanni Rovighi assim se expressa em sua obra, quando trata dos “Prolegômenos” ( História da Filosofia Moderna, 20, pp. 572-573, Edições Loyola, São Paulo, 1999):

“A doutrina exposta nos Prolegômenos é a mesma da Crítica [ da Razão Pura], apenas o método é diferente: analítico nos Prolegômenos, sintético na Crítica. Os termos ‘analítico’ e ‘sintético’ aplicados ao método tem significado totalmente diferente daquele em que são aplicados aos juízos. Método analítico é o que parte do condicionado para chegar às condições; método sintético é o que parte das condições para explicar o condicionado. Aqui o condicionado é a ciência, as ciências que se revelaram válidas, como a matemática e a física. As condições são a razão, os elementos ( os conceitos) e suas leis (G. S., IV, p. 274, trad. it., p 43). A diferença de método talvez seja menor do que pareça, pois a Crítica também não questionava se são possíveis juízos sintéticos a priori, mas como eles são possíveis; já pressupunha, portanto, como nos Prolegômenos, sua validade. No entanto, está acentuado nos Prolegômenos o pressuposto de que há ciências com valor, ciências cuja / segurança contrasta com a incerteza da metafísica. Em lugar de apodítica reina na metafísica a incerteza e, portanto, a divergência de opinião. Para responder ao problema se a metafísica é possível é preciso, portanto, perguntar como são possíveis a matemática e a física”.


Em outras palavras, o método analítico começa com uma análise dos fatos, da experiência construída, parte do particular para o geral; é semelhante à indução, mas é conveniente lembrar que Kant não reconhece a autoridade da indução para estabelecer uma proposição universal e necessária – muito menos uma obrigatoriedade, isto é, um imperativo categórico. Só a razão pura ( sem mescla de experiência) pode fazer isso. Já o método sintético seria o contrário, uma espécie de dedução, embora a palavra dedução em Kant possa ter duplo sentido. Dedução é um raciocínio que vai do geral ( universal) para o particular, mas também, em Kant, significa demonstrar a legitimidade de um conceito ou fato, isto é, suas condições de possibilidade. Por exemplo, a dedução das categorias pretende mostrar que elas são legítimas em sua aplicação à realidade empírica ( aos esquemas); por essa dedução é demonstrado que a Física é legítima, embora na realidade seja um fato que essa ciência já existe, apenas era preciso demonstrar sua legitimidade, sua razão de ser, suas condições de possibilidade.

Enfim, é isso o que Kant expressou em sua Fundamentação:

“O método que adotei neste escrito é o que creio mais conveniente, uma vez que se queira percorrer o caminho analiticamente do conhecimento vulgar para a determinação do princípio supremo desse conhecimento, e em seguida e em sentido inverso, sinteticamente do exame deste princípio e das suas fontes para o conhecimento vulgar onde se encontra a sua aplicação” (idem, p. 20).

Kant, na última Seção da Grundlegung zur Metaphisik der Sitten (GMS) já usa o método sintético, mas esse método é usado essencialmente na Crítica da Razão Prática (KpV). Na Lógica, Kant o explica com mais concisão:

“O método analítico opõe-se ao método sintético. Aquele começa do condicionado e fundamentado e prossegue em direção aos princípios ( a principiatis ad principia), este ao contrário vai dos princípios às consequências ou do simples ao composto. Ao primeiro poder-se-ía também chamar regressivo, assim como ao segundo progressivo. (...) O método analítico também é chamado de método da invenção. Para fins de popularidade, o método analítico é mais apropriado, mas, para fins de elaboração científica e sistemática do conhecimento, mais apropriado é o método sintético” (Lógica, “Doutrina Geral do Método”, 117, p. 166, Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1992).


A Fundamentação começa com a concepção de boa vontade. Ora, para se falar de vontade é preciso falar de liberdade e, para falar de liberdade, temos que falar de necessidade causal. Por isso, nossa exposição tentará esclarecer os conceitos de Necessidade e Liberdade. Em seguida, falaremos do princípio supremo da Lei Moral, que é o Imperativo Categórico, contrapondo-o ao Impetrativo Hipotético. Estes imperativos estão relacionados com a questão da Autonomia e Heteronomia do homem, razão por que diremos algumas palavras sobre o assunto. Em seguida, falaremos sobre o soberano bem ( virtude e felicidade), que leva à posse do Reino dos Fins, com que encerraremos o presente Capítulo.

Encaremos, pois, o problema da Liberdade.

2 - O PROBLEMA DA LIBERDADE



A noção de liberdade é uma idéia da razão e não um conceito científico. No mundo dos fenômenos não há liberdade, pois neste mundo o que governa é o princípio da causalidade mecânica.

Daqui, surge o conceito de necessidade. Os fenômenos ocorrem no mundo, isto é um fato. Mas a sucessão desses fenômenos - são livres (ou contingentes) ou são encadeados de tal maneira em conexão um com o outro que são necessários que aconteçam do modo como acontecem? Necessidade, aqui, significa que os acontecimentos devem ocorrer de um maneira tal, forçosamente; quer dizer, de modo absoluto, por alguma conexão causal independente da vontade do Homem.

E se os acontecimentos ocorrem necessariamente, como haveria liberdade para os seres vivos, especialmente o homem, agirem autonomamente? E se existirem acontecimentos apenas em si, nada ocorrendo na realidade captável sensivelmente, sendo as mudanças somente ilusões dos sentidos? Essa é a posição de muitos autores, desde Parmênides, na Antiguidade. Kant diz que existem dois mundos: o mundo inteligível, onde existe a liberdade e o mundo sensível, onde impera a lei da causalidade mecânica.

Esta foi a solução de Kant para esse problema .

Podemos remontar o problema da liberdade em Kant, do ponto de vista teórico, à Crítica da Razão Pura, na “Observação a respeito da terceira antinomia” da razão pura. Aqui, Kant diz que o homem é livre para iniciar uma série de acontecimentos. Textualmente:

“Quando agora (por exemplo) me levanto da cadeira, completamente livre e sem a influência necessariamente determinante de causas naturais, nesta ocorrência, com todas as suas consequências naturais, até ao infinito, inicia-se absolutamente uma nova série precedente, embora quanto ao tempo seja apenas a continuação de uma série precedente. Com efeito, esta resolução e este ato não são consequência de simples ações naturais, nem a mera continuação delas, porque as causas naturais determinantes cessam por completo com respeito a este acontecimento antes dessas ações; o acontecimento sucede certamente a essas ações naturais, mas não deriva delas e deverá portanto considerar-se, em relação à causalidade, que não ao tempo, o começo absolutamente primeiro de uma série de fenômenos” [negrito nosso] ( KrV, trad. portuguesa de Manuela Pinto dos Santos / Alexandre Fradique Morujão, p. 410. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1986).


Quer dizer, o homem, por sua própria vontade, iniciou uma série de acontecimentos no mundo fenomênico, o que é um indício prático de sua liberdade. Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (GMS), Kant toca no mesmo tema ao dizer que a razão...

“tem de considerar a si mesma como autora dos seus princípios, independentemente de influências estranhas; por conseguinte, como razão prática ou como vontade de um ser racional, tem de considerar-se a si mesma como livre; isto é, a vontade desse ser só pode ser uma vontade própria sob a idéia da liberdade, e, portanto, é preciso atribuir, em sentido prático, uma tal vontade a todos os seres racionais ( GMS - Terceira Seção, p. 96, Edições 70, Lisboa, 2001).

Kant mantém que a origem da liberdade não pode ser provada teoricamente; mas ele quer pelo menos que ela teoricamente seja possível.

Kant, na GMS, Terceira Seção, diz que a liberdade deve ser pressuposta como a propriedade de todos os seres racionais . A liberdade é a “independência de causas determinantes do mundo sensível” (GMS, Terceira Seção, p. 105). No caso do homem (pois talvez existam outros seres racionais além dos homens), o problema se resolve, como já se disse, na dualidade entre mundo sensível e mundo inteligível. Como ser que tem a propriedade de sensibilidade, enquanto encontra-se sujeito a ela, o homem está submetido às leis da causalidade, ao determinismo causal, onde não há liberdade; mas como ser pertencente ao mundo inteligível, o homem é livre. Esses dois mundos devem coincidir, numa totalidade, no reino dos fins.

O mundo inteligível (que é o fundamento do mundo sensível) é o responsável pela moralidade.

“O ser racional, como inteligência, conta-se como pertencente ao mundo inteligível, e só chama vontade à sua causalidade como causa eficiente que pertence a esse mundo inteligível. Por outro lado tem ele consciência de si mesmo como parte também do mundo sensível, no qual as suas ações se encontram como meros fenômenos daquela causalidade; mas a possibilidade dessas ações não pode ser compreendida por essa causalidade, que não conhecemos, senão que em seu lugar têm aquelas ações que ser compreendidas como pertencentes ao mundo sensível, como determinadas por outros fenômenos, a saber: apetites e inclinações. Se eu fosse um mero membro do mundo inteligível, todas as minhas ações seriam perfeitamente conformes ao princípio da autonomia da vontade pura; mas, como mera parte do mundo sensível, elas teriam de ser tomadas como totalmente conformes à lei natural dos apetites e inclinações, por conseguinte à heteronomia da natureza. (As primeiras assentariam no princípio supremo da moralidade; as segundas no da felicidade.)” (idem, pp. 103-104).


O mundo inteligível é a fonte da liberdade e, portanto, da moralidade. E isso ocorre porque o mundo inteligível é o fundamento do mundo sensível; portanto, não deve haver incompatibilidade entre os dois:

“Mas porque o mundo inteligível contém o fundamento do mundo sensível, e portanto também de suas leis, sendo assim, com respeito à minha vontade ( que pertence totalmente ao mundo inteligível), imediatamente legislador e devendo também ser pensado como tal, resulta daqui que, posto por outro lado me conheça como ser pertencente ao mundo sensível, terei, como inteligência, de reconhecer-me submetido à lei do mundo inteligível, isto é, à razão, que na idéia de liberdade contém a lei desse mundo, e portanto à autonomia da vontade; por conseguinte terei de considerar as leis do mundo inteligível como imperativos para mim e as ações conformes a este princípio como deveres” ( GMS - idem, p. 104).


O homem é livre como noúmeno, mas sujeita ao determinismo como fenômeno. Não há uma terceira alternativa, porém, segundo Kant, não há contradição entre as duas (cf. op. cit., pp. 107 e 109) .

Kant ainda reafirma que a idéia de liberdade é uma simples idéia regulativa e por isso não deve de modo algum ser explicada segundo leis naturais. De maneira nenhuma Kant abre mão de uma explicação mecanicista para o mundo dos fenômenos . O conceito de mundo inteligível é apenas “um ponto de vista que a razão se vê forçada a tomar fora dos fenômenos para se pensar a si mesma como prática” (GMS - Idem, p. 110).

A liberdade faz parte do mundo inteligível e é a única idéia regulativa que nos permite efetivamente penetrar no mundo inteligível .

Uma vez pressuposta a liberdade, é possível uma Razão Pura Prática. Razão é a faculdades dos princípios e normas, assim como o Entendimento é a faculdade das regras. Pura que dizer a priori, independente da experiência, livre de qualquer mescla de empiria. E “Prático é tudo aquilo que é possível através da liberdade” (KrV – Doutrina Transcendental do Método, p. 475, in “Os Pensadores, 2000).
Com essas considerações iniciais, passaremos a expor o conteúdo da Fundamentação da Metafísica dos Costumes.


3 - A LEI MORAL – IMPERATIVO CATEGÓRICO E IMPERATIVO HIPOTÉTICO



Kant começa a Primeira Seção da Fundamentação da Metafísica dos Costumes com a afirmação de que não existe no mundo ou fora dele nenhuma coisa considerada como boa absolutamente, a não ser a boa vontade. Vontade é a “faculdade de escolher só aquilo que a razão independentemente da inclinação, reconhece como praticamente necessário, quer dizer, como bom” (op. cit. Primeira Seção, p. 47).

Assim, Kant diz que não adianta apenas ter talento, como discernimento, argúcia de espírito, capacidade de julgar, ou temperamento moderado, coragem, decisão, perseverança, etc., porque nada disso constitui valor moral em si, podendo até ser prejudicial, dependendo do uso ou circunstância. A moderação nas paixões, o autodomínio, a calma na reflexão, que são consideradas qualidades boas, podem se transformar em sangue-frio num facínora perigoso. O mesmo acontece com os dons da fortuna, como poder, honraria, riqueza, saúde, bem-estar, tudo isso que designamos com o nome de felicidade, tudo isso pode desandar na soberba, se não estiver acompanhado de boa vontade , de um bom caráter.

A boa vontade é boa em si mesma, e não pelos resultados que produz. O ser humano que, por uma ingratidão do destino, não conseguisse atingir seus objetivos em tudo que praticasse, com boas intenções, mesmo assim, sua boa vontade continuaria brilhando como uma jóia por si mesma, pois a utilidade ou inutilidade nada poderia acrescentar a ela ou dela tirar qualquer valor. A boa vontade possui valor absoluto (cf. GMS, Primeira Seção, p. 23 et passim).

Não é papel primordial da boa vontade conseguir a felicidade do homem, mas obedecer à razão na escolha de uma conduta virtuosa. Se o objetivo do homem fosse a felicidade – a satisfação de suas necessidades -, certamente a natureza nos teria dado antes o instinto de que a razão, pois esta é falha em nos proporcionar a bem-aventurança.

“Portanto, se a razão não é apta bastante para guiar com segurança a vontade no que respeita aos seus objetos e à satisfação de todas as nossas necessidades ( que ela mesma – a razão – em parte multiplica), visto que um instinto natural inato levaria com maior certeza a este fim, e se, no entanto, a razão nos foi dada como faculdade prática, isto é, como faculdade que deve exercer influência sobre a vontade, então o seu verdadeiro destino deverá ser produzir uma vontade, não só boa quiçá como meio para outra intenção, mas uma vontade boa em si mesma, para o que a razão era absolutamente necessária” (idem, p. 25).

Essa vontade não é o único bem nem o bem total, mas é o bem supremo e condição de tudo, até mesmo da aspiração à felicidade.

Para desenvolver o conceito de boa vontade, Kant encara o conceito de dever, que contém em si o próprio conceito de boa vontade (cf. op. cit., loc. cit., p. 26). “Dever é a necessidade de uma ação por respeito à lei” (idem, p. 31). Ora existe gente que cumpre o seu dever não por respeito à lei, mas por amor ou temor de algo externo a si mesmo. Daí vem a distinção entre ações conforme o dever e ações por dever. Por exemplo, se dois comerciantes vendem um mesmo tipo de mercadoria por seu justo e verdadeiro preço, um deles pode estar agindo moralmente ( por dever) e o outro apenas por inclinação ( conforme o dever). Aquele que está agindo moralmente vende a mercadoria por seu justo preço sem nenhuma intenção subalterna, mas pelo simples cumprimento do dever. Já o outro pode vender pelo justo preço apenas pelo desejo egoísta de não perder a clientela e ficar pobre, ou pelo desejo de adquirir mais clientes e ficar rico. Este comerciante, pois, não age moralmente: age de acordo com o dever ( o direito), mas não pelo puro dever (moral) .

“Os homens conservam a sua vida conforme ao dever, sem dúvida, mas não por dever. Em contraposição, quando as contrariedades e o / desgosto sem esperança roubaram totalmente o gosto de viver; quando o infeliz, com fortaleza de alma, mais enfadado do que desalentado ou abatido, deseja a morte, e conserva contudo a vida sem a amar, não por inclinação ou medo, mas por dever, então a máxima [ do cumprimento do dever] tem um conteúdo moral” ( GMS – loc. cit., pp. 27-28) .


Por exemplo, um indivíduo que faz o bem ao próximo, mas faz isso porque sente prazer em distribuir alegria pelo mundo afora, não age moralmente. Mas o filantropo que faz o bem aos desgraçados, mas não se comove com a desgraça alheia, mantém-se insensível, sem nenhuma inclinação, mas mesmo assim pratica sua ação por simples dever, então sua ação tem um autêntico valor moral.

Assim, uma ação não tem o seu valor moral no propósito, mas somente no princípio do querer. O propósito é determinação a posteriori da vontade, por meio do objeto, e por isso não tem qualquer valor moral; apenas o princípio da própria vontade, em sua boa intenção, que é a priori, tem valor moral. Somente esse princípio formal (universal) deve determinar a vontade.

“Ora, se uma ação realizada por dever deve eliminar totalmente a influência da inclinação e com ela todo o objeto da vontade, nada mais resta à vontade que a possa determinar do que a lei objetivamente, e, subjetivamente, o puro respeito por esta lei prática, e por conseguinte a máxima que manda obedecer a essa lei, mesmo com prejuízo de todas as minhas inclinações. O valor moral da ação não reside, portanto, no efeito que dela se espera...” ( op. cit., p. 31).

Mas que lei é essa que devemos obedecer pelo seu próprio valor intrínseco?

“Mas que lei pode ser então essa, cuja representação, mesmo sem tomar em consideração o efeito que dela se espera, tem de determinar a vontade para que esta se possa chamar boa absolutamente e sem restrição? Uma vez que despojei a vontade de todos os estímulos que lhe poderiam advir da obediência a qualquer lei, nada mais resta do que a conformidade a uma lei universal das ações em geral que possa servir de único princípio à vontade, isto é: devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que minha máxima se torne uma lei universal” (op. cit., p. 33).


Esta lei, que implica não só universalidade como também imputabilidade e incondicionalidade, chama-se imperativo categórico e seu enunciado acima representa apenas a pura forma dessa lei, sem nenhuma determinação material, isto é, de conteúdo. Mas Kant depois desdobra essa fórmula acima em mais três, dando uma determinação de conteúdo a cada uma delas, das quais falaremos mais adiante.

Essa lei imperativa exige que o meu procedimento, minha ação, possa se universalizar. Por exemplo, posso fazer promessa que não poderei cumprir? Posso pregar o roubo, o suicídio, a mentira? Ora, essas ações não podem se universalizar, pois levariam a uma contradição e por isso se destruiriam a si mesmas. “É absolutamente boa a vontade que não pode ser má, portanto quando a sua máxima, ao transformar-se em lei universal, se não pode nunca contradizer” (op. cit. Segunda Seção, p. 80). Examinemos, por exemplo, o caso da mentira , a que Kant se refere não só na Fundamentação como em vários outros escritos.

“Toda gente pode fazer uma promessa mentirosa quando se acha numa dificuldade de que não pode sair de outra maneira?” [negrito nosso] (idem, p. 34).

Esta questão colocada por Kant se parece muito com uma situação (fictícia) colocada por Voltaire, no Dicionário Filosófico , que presumivelmente Kant conhecia, pois era leitor do filósofo francês. É por isso que vamos nos deter um pouco nela, pois Kant considera a mentira a falta moral mais grave que possa existir.

Kant diz textualmente, ao dar importância fundamental à veracidade, que: “A maior violação do dever de um ser humano consigo mesmo (negrito nosso) considerado meramente como um ser moral ( a humanidade em sua própria pessoa) é o contrário da veracidade, a mentira” (Metafísica dos Costumes – Doutrina da Virtude, Livro I, cap. II, p. 271).

No escrito “Por um suposto direito de mentir por amor à humanidade”, Kant afirma que a mentira prejudica exatamente à Humanidade, causando “uma injustiça na parte essencial do dever: ou seja, faço, no que a mim se refere, com que as declarações em geral fiquem desprovidas de crédito e com que todos os direitos fundados em contratos sejam abolidos e percam sua força – eis uma injustiça causada à humanidade em geral” (in Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos - p. 124, Martins Claret, São Paulo, 2002) . Kant diz que...

“É meramente por acaso (casus), e não na condição de uma ação livre (no sentido jurídico) que a veracidade da declaração prejudicava o habitante da casa. Pois o direito a exigir de outro que deva mentir para vantagem nossa resultaria em uma exigência contrária a toda legalidade. Todo homem, porém, possui não só o direito mas até mesmo o estrito dever de enunciar a verdade nas proposições que não pode evitar, mesmo que venha a prejudicar a ele ou a outras pessoas. Ele mesmo, por conseguinte, não comete com isso propriamente nenhum dano a quem é lesado, sendo o acaso a causa desse dano. Porque nesse caso o indivíduo não é absolutamente livre para escolher, porquanto a veracidade (desde que seja obrigado a falar) é um dever incondicionado” (op. cit., p. 126).

Quer dizer, se um indivíduo se encontrar na contingência de dizer a verdade por tortura, por exemplo, deve fazê-lo; e se não o tiver, deve dizer assim mesmo, pois será por um mero acaso que tal verdade poderá prejudicar alguém e, assim, o declarante não foi responsável por esse acaso. E homem algum pode ser responsabilizado por uma circunstância cuja origem ele não deu causa livremente. Por isso, em nome da credibilidade, devemos dizer a verdade mesmo numa situação difícil, pois ao fazer isso nada poderá nos atingir em nossa moralidade:

“Mas se te limitares a dizer a estrita verdade, a justiça pública em nada te poderá atingir [certamente, em tua moralidade], por imprevistas que sejam as consequências. Por conseguinte, é possível que, após teres honestamente respondido “sim” à pergunta do assassino quanto à presença em tua casa da pessoa odiada que ele persegue,...(...) aquele que mente, por mais bondosa que possa ser sua intenção, deve responder pelas consequências de seu ato mesmo diante do tribunal civil, e penitenciar-se dele, por imprevistas que possam ser essas consequências; ora, a veracidade é um dever que deve ser considerado base de todos os deveres (grifo nosso) a serem fundados sobre um contrato, e a lei desses deveres, ao se lhe permitir a menor exceção, torna-se vacilante e inútil” (idem, p. 125).

Ora, Kant sabe que na vida cotidiana, os homens mentem ( como praticam outros atos contraditórios contra a humanidade) , mas o que ele quer dizer é que, pelo fato de eu mentir, não posso querer, sem contradição, que a minha mentira se transforme num valor universal, nem pretender ter agido moralmente: “Em breve reconheço que posso em verdade querer a mentira, mas que não posso querer uma lei universal de mentir” (GMS – Primeira Seção, p. 34). Por isso, a primeira fórmula do imperativo categórico, que é apenas uma forma vazia da lei, diz, absolutamente:

Age sempre de maneira que possas querer também que a tua máxima se torne uma lei universal .


Kant, na Crítica da Razão Prática, diz que a consciência dessa lei é um fato da razão. Na KrV, Kant define um fato como algo ( fenômeno) oriundo da sensibilidade. Fato é um conceito que se liga a uma intuição sensível e nada tem a ver com a razão. Esta, pois, trata da normatividade, enquanto a sensação se refere à facticidade. Entretanto, a consciência do imperativo categórico é o único fato [da razão] que não é sensível, pelo contrário, se impõe à sensibilidade.

“À consciência desta lei fundamental pode chamar-se um fato ( Faktum) da razão, porque não se pode deduzi-la com sutileza de dados anteriores da razão, por exemplo, da consciência da liberdade ( porque esta não nos é dada previamente), mas porque ela se nos impõe por si mesma, como proposição sintética a priori que não está fundada em nenhuma intuição, nem pura, nem empírica; seria no entanto analítica, se pressupusesse a liberdade da vontade, mas, para isso, exigir-se-ia, enquanto conceito positivo, uma intuição intelectual que aqui não é permitido admitir. No entanto, importa observar, a fim de se considerar, sem falsa interpretação, esta lei como dada, que não é um fato empírico mas o fato único da razão pura, que assim se proclama como originalmente legisladora” (KpV – Analítica... Princípios... p. 43)


Isto significa que aceitar o imperativo categórico como um fato da razão seria renunciar à pretensão de fundamentar racionalmente a Moral ( evidentemente que este fato não é fato no sentido humano). Isso seria um golpe fatal na filosofia moral de Kant . Mas mesmo não sendo fundamentado argumentativamente, o imperativo categórico é a lei suprema da moralidade em Kant e, evidentemente, esse fato não é um fato empírico. Entretanto, ele diz que existe também um imperativo hipotético, o qual não pode fundamentar nenhuma lei moral.

Vimos, na KrV, que na razão teórica a forma e o conteúdo se completam no conhecimento: o entendimento fornece a forma e a sensibilidade o conteúdo. O casamento das duas coisas numa unidade constitui o conhecimento teórico. Mas no caso da razão prática, a forma não se harmoniza com o conteúdo. A vontade, em sua faculdade superior, é determinada pela razão, em sua forma genérica. Mas a determinação material de vontade, em sua faculdade de desejar inferior, é movida por sentimento egoísta e cada ser humano procura defender seus próprios interesses particulares, querendo para si mesmo uma exceção nas regras universais das leis. Daí surgem dois tipos de imperativos: o categórico e o hipotético. Kant define imperativo assim: “A representação de um princípio enquanto obrigante para uma vontade chama-se imperativo” (op. cit. Segunda Seção, p. 48). Mas como existem dois tipos de imperativos, enquanto um, em sua forma pura, é despido de egoísmo e ordena o universal, o segundo é egoísta e defende os interesses individuais. Enquanto um deriva do mundo inteligível, o outro emana do mundo sensível. No imperativo hipotético age-se por interesse, sob condição, utiliza-se algo como meio para obter um fim:

“no caso de a ação ser apenas boa como meio para qualquer outra coisa, o imperativo é hipotético; se a ação é representada como boa em si, por conseguinte como necessária numa vontade em si conforme a razão como princípio dessa vontade, então o imperativo é categórico” (idem, p. 50).

Por exemplo, se alguém diz: eu não devo mentir, este preceito tanto pode ser uma imposição do imperativo categórico como pode ser um embuste do imperativo hipotético. Se a minha intenção de não mentir é pura, não tem nenhum interesse senão o interesse da razão pura ( prática), então o imperativo é categórico: não devo mentir por respeito à lei. Mas se não devo mentir a fim de tirar alguma vantagem ou evitar um dano, então o imperativo é hipotético e deveria ser expresso assim: se eu mentir, posso cair em descrédito e me arruinar; se eu não mentir, mantenho o crédito e tiro vantagem; logo, não devo mentir para o meu próprio bem. Este é um imperativo que não tem boa intenção, está despido da boa vontade e, portanto, não tem nenhum valor moral.

Daí Kant condenar toda moral baseada no imperativo hipotético, que no fundo não passa de um balcão de negócio: se fizeres isso te darei aquilo, se agires assim, terás tal e qual galardão, etc. Neste ponto, ele condena até mesmo a religião que obriga o fiel a agir bem por temor do castigo de Deus o do diabo. Ou então para ganhar um bom lugar no céu, certamente uma cobertura na Nova Jerusalém, com cerca de doze mil estádios, com ornamento de jaspe ou safira, etc .

Quer dizer, qualquer interesse egoísta que estiver por baixo de um imperativo, o invalida como fonte da moral.



AS FÓRMULAS DO IMPERATIVO CATEGÓRICO.


O Imperativo categórico se desdobra em três fórmulas que determinam o seu conteúdo, pois afinal, uma forma absolutamente genérica seria vazia e por isso precisa de uma matéria (na KpV, Kant só preserva a fórmula geral). Essas fórmulas são expostas a seguir.


1ª fórmula de conteúdo – “Age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza” (idem, p. 59). Como somos seres sujeito ao mundo sensível, nossa ação tem que levar em conta a natureza, que é o conjunto de todos os fenômenos, regidos por leis causais . Kant, na KpV, diz que “a diferença entre as leis de uma natureza à qual a vontade está submetida e de uma natureza que está sujeita a uma vontade ( tendo em conta a relação que existe entre esta e as suas ações livres) assenta no fato de que, naquela, os objetos devem ser as causas das representações que determinam a vontade mas, nesta, é a vontade que deve ser a causa dos objetos, de modo que a causalidade da mesma tem o seu princípio de determinação unicamente na faculdade da razão pura, a qual pode, por conseguinte, ser também chamada uma razão pura prática” (Analítica – Princípios...p. 57, Edições 70, Lisboa, 1999). A questão de como a liberdade da razão (como causalidade) se manifesta na natureza, isto é, como a razão pura prática sai do alto de seu pedestal para agir na terra suja do mundo sensível é resolvida por Kant com a teoria do tipo, exposta na Crítica da Razão Prática, que se constitui na única maneira de determinar materialmente a formalidade do imperativo categórico (disto falaremos adiante, no Capítulo 3 deste trabalho).

2ª fórmula de conteúdo – “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa, como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente, como fim e nunca simplesmente como meio” ( idem, p. 69). Fica implícita aqui a condenação, por parte de Kant, de qualquer tipo de sociedade que se fundamente na exploração do homem pelo homem .

3ª fórmula de conteúdo – “Age de tal maneira que a idéia da vontade de todo ser racional possa ser concebida como vontade legisladora universal” [ princípio da autonomia] (idem, p. 72). Esta é uma determinação completa de todas máximas, visando integrar a conduta de todos os homens como legisladores no rumo de um reino dos fins. Aqui, o homem tem que se submeter absolutamente à lei, pois ela é fruto de uma vontade ideal de todos, de uma comunidade onde cada homem é membro-legislador e chefe ao mesmo tempo . Este é o ápice da moral humana, que é o princípio da autonomia humana, da qual trataremos a seguir .


Essas “três formulações do imperativo categórico ( segundo a universalidade da lei natural, fim em si e autonomia) – diz Francisco Javier Herrero - têm um caráter essencialmente teleológico e possibilitam um desdobramento da lei / moral fundamentalmente abstrata” (op. cit. loc. cit., p. pp. 25-26). Quer dizer, determinam e particularizam o conteúdo da lei moral.


4 - AUTONOMIA E HETERONOMIA

Kant, na GMS trata da autonomia especialmente nas seções Segunda e Terceira. Segundo ele, “Autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças à qual ela é para si mesma a sua lei ( independentemente da natureza dos objetos do querer)” (Segunda seção, p. 85). Isto significa que a autonomia não escolhe senão segundo as máximas do querer que levam a uma lei universal.

Mas “Quando a vontade busca a lei, que deve determiná-la, em qualquer outro ponto que não seja a aptidão das suas máximas para a sua própria legislação universal, quando, portanto, passando além de si mesma, busca essa lei na natureza de qualquer dos seus objetos, o resultado é então sempre heteronomia.” (idem, p. 86). Aqui, não é a vontade que oferece a si mesma a lei, mas o objeto que dobra a vontade em sua relação com esta. Assim, a vontade passa a administrar o interesse alheio e perde a sua autoridade de legisladora suprema .
Kant, na KpV, volta ao assunto, onde mostra que a natureza sensível dos seres racionais é a fonte da heteronomia, enquanto a natureza inteligível é a fonte da autonomia:

“A natureza sensível dos seres racionais em geral é a existência dos mesmos sob leis empiricamente condicionadas, portanto, uma heteronomia para a razão. Em contrapartida, a natureza supra-sensível dos mesmos seres é a sua existência segundo leis que são independentes de toda a condição empírica, por conseguinte, pertencem à autonomia da razão pura. E visto que as leis, segundo as quais a existência das coisas depende do conhecimento, são práticas, assim a natureza supra-sensível, tanto quanto dela podemos fazer um conceito, nada mais é do que uma natureza submetida à autonomia da razão pura prática. Mas a lei desta autonomia é a lei moral; a qual é, pois, a lei fundamental de uma natureza supra-sensível e de um puro mundo inteligível cujo equivalente deve existir no mundo sensível sem, no entanto, fazer dano às leis do mesmo” ( KpV – Analítica, Princípios..., p. 56, Edições 70, Lisboa, 1999).


Isto significa que a moral se fundamenta na autonomia do homem, que deve ser uma cabeça que carrega e sustenta os dois mundos: de uma lado, o mundo sensível, imutável, cujas leis mecânicas não podem ser violadas, e do outro, o mundo racional, moral, que deve ser fundamento desse mesmo mundo sensível, embora não possamos saber teoricamente como isso ocorre. Somente a prática poderá nos guiar no mundo por entre esse abismo de duas esferas de realidades em que estamos inseridos e/ou que estão inseridas em nós: a realidade em si e a realidade fenomênica. A saída é a crença de que existe uma moralidade ( é a prática que nos impele a crer nisso) e que esta poderá nos dar um destino de bem-aventurança – um final feliz.

As morais tradicionais, de modo geral, baseavam-se na heteronomia da vontade e não na sua autonomia, exatamente porque elas, com poucas exceções, tinham como finalidade da vida a busca da felicidade, a procura de um bem exterior à própria boa vontade, que então se submetia aos caprichos de objetos estranhos, caindo no mundo das sensações, das inclinações, dos apetites que enganavam a sua razão. Se a felicidade, por exemplo, consiste na prazer ( como diziam os epicuristas), então o objetivo da vida seria andar em busca desse bem e, assim, minha vontade não seria autônoma, mas seria movida, “puxada” constantemente pelo desejo do prazer, ao invés de ser movida pela boa vontade em si mesma (certamente, a boa vontade não é incompatível com o prazer, mas não o seria necessariamente um forma de prazer). Se por acaso o homem coloca o bem supremo de sua vida em ganhar o céu e se comporta bem por temor de ir para o inferno, também não age com autonomia, pois perde a liberdade sobre si mesmo. Esclarecedor é esse texto de Herrero:

“Kant determina o conceito de autonomia sempre em oposição ao princípio de heteronomia. A autonomia é pensada primeiro como negação de toda determinação alheia vinda de fora, que eliminaria a vontade como vontade, isto é, como faculdade do homem de determinar-se por si mesmo para a ação. Heterônoma é toda determinação da vontade por representações materiais, porque aqui a lei, segundo a qual se produzem os efeitos, é finalmente a lei da / necessidade da natureza. Também é heterônoma a moral que prescreve preceitos a realizar, baseados na idéia de prêmio ou castigo. O móvel da ação também é sensível. A autonomia, pelo contrário, mostra que o homem tem em si mesmo a possibilidade de ser dono de si e de ser livre de toda dependência diferente de sua razão. A lei oral [moral] é, portanto, o único acesso para determinar a essência do homem” (op. cit., cap. I, p. 22).


Sem autonomia, o homem não realizaria seus objetivos, que seria alcançar o bem supremo ou reino dos fins ou reino de Deus. Este reino só se alcança pela razão prática, pelo uso da lei maior do imperativo categórico. Isto é corroborado por Kant na KpV:

“A autonomia da vontade é o único princípio de todas as leis morais e dos deveres a elas conformes; pelo contrário, toda heteronomia do livre arbítrio não só não funda nenhuma obrigação, mas opõe-se antes ao princípio da mesma e à moralidade da vontade. (...) a lei moral nada mais exprime do que a autonomia da razão pura prática, isto é, da liberdade e esta é mesmo a condição formal de todas as máximas, sob a qual unicamente elas podem harmonizar-se com a lei prática suprema” (KpV - Analítica... Princípios... p. 45).

E assim como Descartes dizia ( Discurso do Método, I) que o bom-senso era a coisa melhor distribuída no mundo, pois estava ao alcance de todos, Kant diz que a noção de autonomia está em todos, até mesmo no entendimento mais vulgar ( cf. KpV – loc. lit., p. 49; cf. GMS – pp. 35-36). O entendimento mais vulgar possui a consciência moral do dever, apenas não conhece teoricamente sua fonte. Determinar esta é que consiste a tarefa de uma filosofia prática, de filósofos profissionais.

No final da Segunda seção da GMS, Kant faz a “classificação de todos os princípios possíveis da moralidade segundo o adotado conceito fundamental da heteronomia”. Afirma que a raça humana, antes de aprender a usar a crítica, experimentou todos os caminhos errados antes de conseguir encontrar o único verdadeiro. Em seguida aponta os princípios errados que fundamentavam as morais heterônomas. Esses princípios são dois: 1) os empíricos; 2) e os racionais.

1) Os princípios empíricos da moralidade. São os derivados do princípio da felicidade e assentam no sentimento físico ou moral. Eles nunca servem para fundamentar a moral. A universalidade advinda deles, quer por limitação advinda da particular constituição da natureza humana, quer por limitação das circunstâncias, sempre contingentes, nunca é incondicionada. E desses princípios empíricos da felicidade, o mais condenável é o princípio da felicidade própria, não só porque é falso, como também “porque a experiência contradiz a suposição de que o bem-estar se rege sempre pelo bem-obrar” (idem, p. 87). Pois uma coisa é fazer um homem feliz e outra é fazê-lo bom. Além do mais os móveis que levariam supostamente o homem à felicidade própria são da mesma classe de motivos que levam o homem tanto à virtude como aos vícios. Neste item da felicidade está também o sentimento moral ( Hutcheson), que Kant também rejeita como fundamento de uma moral verdadeira (cf. Kant, op. cit., p. 88, in nota). Na Metafísica dos Costumes Kant diz que “nenhum princípio moral é baseado, como por vezes as pessoas pensam, em qualquer sentimento que seja [ estético ou moral]” ( Parte Segunda – Doutrina da Virtude, Prefácio, p. 220). Pois “o sentimento, seja lá o que for que possa despertá-lo, sempre pertence à ordem física” (idem, p. 221). Nesta obra, Kant faz distinção entre sentimento patológico e moral. “Um sentimento do efeito que a vontade legisladora dentro do ser humano exerce sobre sua capacidade de agir de acordo com a sua vontade, é denominado sentimento moral, um sentimento especial (sensus moralis), por assim dizer” (idem, Introdução, p. 231). O sentimento patológico se refere à sensação ou aos apetites em geral. “É verdade que o senso moral é amiúde objeto de mau uso de uma maneira visionária, como se ( como o dáimon de Sócrates) ele pudesse preceder a razão ou até mesmo dispensar o julgamento da razão. Ainda assim, constitui uma perfeição moral, através da qual se faz do objeto de cada um todo fim particular que é também um dever” (ibidem). Quer dizer, o que Kant rejeita é o sentimento moral – senso moral ou moral sense – que defende uma base irracional, (anterior à razão ou contra ela) para a moral. Kant diz até que não se deveria usar essa palavra [ senso], pois ela tem uma conotação intelectual que não condiz com a irracionalidade dos sentidos: “Não é apropriado chamar esse sentimento de senso moral [...moralischen Sinn...], já que pela palavra “senso” se entende usualmente uma capacidade teórica de percepção dirigida para um objeto, ao passo que o sentimento moral [... moralische Gefühl...] (como o prazer e desprazer em geral) é algo meramente subjetivo, que não produz nenhuma cognição” (idem, p. 242) . Enfim, Kant rejeita qualquer princípio empírico como capaz de proporcionar a felicidade humana aqui na terra.

2) Os princípios racionais da moralidade. São os que se fundamentam na razão. Desses princípios, o preferível é o princípio ontológico de perfeição. Ele se assenta “ou no conceito racional dessa perfeição como efeito possível, ou no conceito de uma perfeição independente ( a vontade divina) como causa determinante da nossa vontade” (GMS - idem, p. 87). Ora, o conceito de perfeição está muito afastado da sensibilidade, (pertence à realidade imensurável), o que nos obriga a classificá-lo de vazio e indeterminado (e, portanto, inútil). Ademais, basear a perfeição em Deus – que é infinitamente perfeito - é querer dizer que podemos intuir a perfeição divina, o que não é verdade. A perfeição divina pode apenas ser derivada de nossos conceitos, dentre os quais o de moralidade, que é o mais nobre deles; portanto, querer explicar a perfeição de Deus por nossos conceitos e estes por aquela seria cair num grosseiro círculo de explicação. Entretanto, Kant prefere o conceito ontológico de perfeição do que o teológico (de perfeição). Mas se tivesse de escolher entre o conceito de moral do sentimento e o conceito de moral da perfeição, “decidir-me-ia por este último, porque, afastado pelo menos da sensibilidade e levando ao tribunal da razão pura a decisão da questão, embora este aqui também nada decida, conserva no entanto, para uma determinação mais precisa, sem falsear, a idéia indeterminada ( de uma vontade boa em si)” (idem, p. 89). Ora, não é que Kant seja contra a perfeição, mas sim contra um tipo de perfeição, a perfeição ontológica ( que, no fundo, é teológica), da metafísica tradicional, cuja existência não depende do homem. Na Introdução da Segunda Parte da Metafísica dos Costumes ( Doutrina da Virtude, pp. 229-231), no item intitulado “Quais são os fins que também são deveres?”, Kant diz que são dois esses deveres: o da perfeição e o da felicidade. O primeiro deles é o dever de cada um procurar a perfeição e o outro é o dever de procurar a felicidade. Isto significa que ele aceita um tipo de perfeição como meta que pode e deve ser alcançada pelo homem, em sua autonomia e na sua virtude, dependendo apenas de sua vontade. O outro tipo de perfeição é inalcançável pelo simples esforço do homem, pois depende da vontade de Deus. A perfeição defendida por Kant seria elevar-se da condição de um simples ser da natureza (animalidade), à humanidade, a um ser moral. Isto ocorre combatendo a ignorância pela instrução, corrigindo os erros, e cultivando a vontade para conduzi-la à mais pura disposição virtuosa.


Podemos concluir o raciocínio de Kant sobre esse tema com suas concisas palavras:

“A vontade absolutamente boa, cujo princípio tem que ser um imperativo categórico, indeterminada a respeito de / todos os objetos, conterá pois somente a forma do querer em geral, e isto como autonomia; quer dizer: a aptidão da máxima de toda boa vontade [negrito nosso] de se transformar a si mesma em lei universal é a única lei que a si mesma se impõe a vontade de todo ser racional, sem subpor qualquer impulso ou interesse como fundamento” ( idem, p. 91).

É por essa boa vontade, que é um princípio categórico, que o homem pode alcançar o reino dos fins, de onde poderá sair sua possível felicidade.


5 - FELICIDADE, VIRTUDE E REINO DOS FINS

Trataremos agora da doutrina da felicidade que, juntamente com a virtude, irá constituir o soberano bem e, por conseguinte, o reino dos fins.

A FELICIDADE

A Fundamentação não tem um item específico que trate do problema da felicidade. Isto só ocorre na Metafísica dos Costumes, e assim mesmo sobre a felicidade dos outros, e não a própria. Mas ao longo de todo o texto da GMS, Kant se refere frequentemente a ela. Argumenta, como já se viu, que a natureza não nos predispôs, com instintos, para sermos necessariamente felizes e a boa vontade, através da razão prática, não é em si suficiente para nos trazer a felicidade, apenas para nos tornarmos digno dela. “... a boa vontade parece constituir a condição indispensável do próprio fato de sermos digno da felicidade” (GMS – Primeira Seção, p. 22, grifo nosso).

Na Crítica da Razão Prática, Kant faz distinção entre o princípio da moralidade e o princípio da felicidade, mostrando que este não fundamenta aquele, pois a felicidade se baseia apenas em princípios empíricos, que jamais nos fornecem a universalidade e a obrigatoriedade . Na verdade, Kant se rebela contra o eudaimonismo, que é o conjunto das filosofias que colocam o princípio da moralidade ou o bem supremo da vida humana na felicidade e não na virtude – que é a dignidade de merecer a própria felicidade ( refere-se principalmente a Aristóteles).

“Sob certos / aspectos, pode ser mesmo um dever preocupar-se com a sua felicidade; em parte, porque ela (compreendendo a habilidade, a saúde e a riqueza) contém meios para o cumprimento do dever, e em parte, porque a carência da felicidade ( por exemplo, a pobreza) encerra a tentação de violar o dever. Só que o fomento da própria felicidade nunca pode constituir imediatamente um dever, e menos ainda um princípio de todo dever. Ora, visto que todos os princípios determinantes da vontade, com exceção apenas da lei pura prática da razão ( a lei moral), são todos empíricos, como tais dependentes, portanto, do princípio da felicidade, devem no seu conjunto ser separados do princípio moral supremo e nunca nele ser incorporados como condição, porque isso suprimiria assim todo valor moral” (KpV- Analítica... Princípios... pp. 108-109).


Felicidade e moralidade, pois, são distintas porque “A dignidade do dever em nada se coaduna com a satisfação de viver” (ibidem, p. 104). Kant diz que essa distinção não leva a uma oposição entre ambos, apenas deve ocorrer, no caso de conflito, a primazia do moralidade sobre a felicidade: “Esta distinção, porém, do princípio da felicidade relativamente ao princípio da moralidade nem por isso é uma oposição entre ambos, e a razão pura prática não quer que se renuncie forçosamente à pretensão à felicidade, mas apenas que não se tome em consideração, quando se fala de dever.” (ibidem, p. 108).

Mas em que consiste a felicidade , para Kant?

A felicidade seria a satisfação de todas as nossas inclinações. Mas quais são essas inclinações? Todas elas podem ser satisfeitas? Tomemos, por exemplo, o desejo de ser rico como condição para ser feliz. Ora, se ponho a felicidade na fortuna, esta não é um bem que obrigatoriamente dure a vida toda e pode de repente me fugir das mãos, tornando-me infeliz. E se coloco a felicidade na saúde, luto por ela e consigo uma vida saudável - posso, por outro lado, ter uma vida longa, mas cheia de desgostos, perdendo filhos, esposa, parentes, podendo ser preso, humilhado, enganado, etc., o que poderá acarretar certamente a minha infelicidade. Quer dizer, o mundo empírico não pode garantir a minha felicidade.
Esses obstáculos que enfrentamos na busca da felicidade consistem principalmente na inconstância da posse dos bens materiais.

Quer dizer, a vida humana é tão instável, tão frágil e as necessidades dos homens são tantas e diversas, e estas tantas ainda criam outras quantas – que é praticamente impossível encontrar a felicidade neste mundo, embora seja um dever moral ( e não um dever por inclinação), procurá-la ou pelo menos tentar merecê-la pelo bom comportamento ( virtude).

“Assegurar cada qual a sua própria felicidade é um dever ( pelo menos indiretamente); pois a ausência de contentamento com o seu próprio estado num torvelinho de muitos cuidados e no meio de necessidades insatisfeitas poderia facilmente tornar-se numa grande tentação para transgressão deveres. Mas, também sem considerar aqui o dever, todos os homens tem já por si mesmos a mais forte e íntima inclinação para a felicidade, porque é exatamente nesta idéia que se reúnem numa soma todas as inclinações. Mas o que prescreve a felicidade é geralmente constituído de tal maneira que vai causar grande dano a algumas inclinações, de forma que o homem não pode fazer idéia precisa e segura da soma de satisfação de todas elas a que chama felicidade” (GMS – idem, p. 29).


O homem tem uma finalidade e necessidade natural de procurar a felicidade, mas nem a natureza nem a razão podem garanti-la nesta vida, embora não seja teoricamente impossível que ela venha a acontecer. A razão prática nos obriga a lutar por ela e a ter esperança.

Kant, na Metodologia da Crítica da Razão Pura, pergunta – “Se faço o que devo fazer, o que me é permitido esperar?” (KrV- Metodologia... p. 478/B 834). Quer dizer, se cumpro o meu dever moral, se sou virtuoso, quem me garante que isto valha alguma coisa, quem me garante que isto me traga a felicidade?

Aqui teríamos que definir o que é virtude e o que é o bem supremo da vida. Kant, na Metafísica dos Costumes, diz que existem fins que são deveres e que estes deveres são a própria perfeição e a felicidade dos outros (cf. MS – Segunda Parte, Doutrina da Virtude, Introdução, p. 231 et passim). Em vista disso, existem dois tipos de felicidade, a felicidade natural e a felicidade moral. A felicidade natural, que é a satisfação de nossas necessidades empíricas, como tem origem externa ao nosso mundo interior, não depende de nós e é impossível alcançá-la. Já a felicidade moral é a satisfação com nossa própria pessoa, com nossa própria conduta, o que é possível alcançar, mas isto não constitui a verdadeira bem-aventurança, mas apenas a perfeição moral. Logo, em que sentido devo procurar a felicidade e em que consiste ela, já que só devo lutar pela felicidade dos outros?

Ora, “Quando se trata de eu fomentar felicidade como um fim que é também um dever, é forçoso, consequentemente, que seja a felicidade de outros seres humanos, de cujo fim ( permitido) faço assim o meu próprio fim também” (ibidem, p. 232). Mas em que consiste o dever de lutar pela felicidade dos outros? Para satisfazer o bem-estar natural dos outros eu precisaria ter uma benevolência ilimitada. Por outro lado, eu não posso sacrificar a minha própria felicidade para satisfazer aos outros, pois isso seria uma contradição com a lei maior que diz que eu devo agir de modo a tornar minha conduta universal e anular-se a si mesmo para fazer a felicidade alheia não pode se converter em lei universal, implicando numa contradição. Portanto, pela felicidade dos outros devo entender não o seu bem-estar natural, mas o seu bem-estar moral ( salubritas moralis) e para isso eu devo apenas usar um dever – o dever negativo – de promover esse fim. Esse dever negativo é não fazer o mal, isto é, não colocar obstáculos na caminhada dos outros lutarem por sua própria felicidade. É isto o que, atualmente, na Bioética, os principalistas chamaram de princípio da não-maleficência e que Kant, em seu livro “O Conflito das Faculdades” denominou de sabedoria negativa. Se o homem tem o dever de procurar se aperfeiçoar como indivíduo, deve lutar também para que a Humanidade progrida também moralmente e atinja a República Ideal. Neste último livro mencionada, no artigo “Estará o gênero Humano em Constante Progresso para Melhor”, Kant responde que sim ( que o homem está no rumo do pregresso) e que mesmo que a Natureza trabalhe para isso com sua astúcia, o homem precisa contribuir também e uma das maneiras de fazer isso é o dever negativo: não fazer guerra ofensiva, não causar o mal e abster-se de fazer obstáculo ao progresso inevitável:

“... mas para o que aqui se pode esperar e exigir dos homens é de esperar simplesmente uma sabedoria negativa para o fomento de tal fim [ o progresso do Estado ou da Sociedade Universal], a saber, que se vejam forçados a tornar a guerra, o maior obstáculo do [sic!] moral, que leva sempre este a retroceder, primeiro, paulatinamente mais humana, em seguida, mais rara e, por fim, a desvanecer-se de todo como guerra ofensiva, de modo a enveredar por uma constituição que, por sua natureza, sem se enfraquecer, e fundada em genuínos princípios de direito, possa avançar com consistência para o melhor” ( “O conflito das faculdades”, “Estará o homem em constante progresso para melhor?” – Segunda Parte, p. 111, Edições 70, Lisboa, 1993).

Em suma, não é função minha fazer a felicidade dos outros, pois cada um sabe o que é melhor para si, mas apenas não atrapalhar a vida dos outros, como não perseguir, não caluniar, não fazer falso testemunho, enfim, não cometer injustiça, negando a cada um os seus direitos. Sem esse princípio do dever ou sabedoria negativa, a sociedade humana seria impossível e não existiria nenhum pacto social. Logo, não atingiríamos jamais o soberano bem e o reino dos fins.

E quanto à minha própria felicidade, o máxima que posso fazer é ser virtuoso, isto é, esforçar-me por ser digno dela. O restante, caberá ao Senhor (Deus).

A VIRTUDE

Como já expomos a doutrina da felicidade, chegou o momento de falarmos sobre o soberano bem. Este é a união da virtude com a felicidade. Na Fundamentação, Kant fala com frequência da felicidade, mas não trata da virtude, cuja concepção fica apenas implícita. Trata desta na KpV, ( e na MS) que exporemos adiante, mas algumas palavras diremos sobre ela, já que na GMS Kant trata do reino dos fins e este seria incompreensível sem a doutrina da virtude.

O soberano bem compreende a virtude e a felicidade. A virtude depende apenas do homem, mas a felicidade vai depender de Deus . Daí por que na KpV, Kant postula, através da moral, a imortalidade da Alma e a existência de Deus, para recompensar o homem virtuoso.

Kant, na MS, diz que “a faculdade e a intenção de resistir a um oponente vigoroso, mas injusto... [é], no que tange ao que opõe a disposição moral em nós, a virtude ( virtus, fortitudo moralis)” (Segunda Parte, Doutrina da Virtude, Introdução, p. 224). E, mais adiante (idem, p. 238), acrescenta:

“Virtude é a força das máximas de um ser humano no cumprimento de seu dever. Força de qualquer tipo pode ser reconhecida somente pelos obstáculos que pode superar, e, no caso da virtude, esses obstáculos são inclinações naturais que podem entrar em conflito com a resolução moral do ser humano; e visto que é o próprio homem que coloca esses obstáculos no caminho de suas máximas, a virtude não se limita a ser auto-constrangimento ( pois então uma inclinação natural poderia impulsionar para sobrepujar uma outra), mas é também um auto-constrangimento de acordo com um princípio de liberdade interior e, deste modo, através da mera representação do dever de cada um de acordo com sua lei formal” .


A virtude não é uma força para as ações, mas uma força para as máximas das ações. Em seguida, Kant critica algumas concepção de virtude dos antigos e, neste particular, ataca nominalmente Aristóteles (loc. cit., p. 246) . Este havia dito que a virtude ( ética) era uma mediania entre dois extremos ou vícios. Kant diz que esse princípio é falso e não podemos estabelecer a virtude por grau em que alguém acata certas máximas entre virtude e vício, mas na qualidade específica das máximas em relação à lei moral. E considera erro aceitar que a virtude possa ser aprendida a partir da experiência. A virtude implica o domínio de si mesmo e também uma espécie de apatia, não como a indiferença (dos estóicos), mas apenas como a ausência de afeto ( uma espécie de resistência aos afetos), considerado este um sentimento ligado à sensibilidade e que leva o homem momentaneamente ao entusiasmo que esgota o sujeito.

Na Crítica da Razão Prática, Kant afirma que a virtude, juntamente com a felicidade, é que constituem o soberano bem de um mundo possível:

“Ora, na medida em que a virtude e a felicidade constituem conjuntamente a posse do soberano bem numa pessoa e em que também a felicidade é repartida em proporção com a moralidade ( como valor da pessoa e seu mérito de ser feliz), formam o soberano bem de um mundo possível: isto significa, pois, o todo, o bem perfeito, em que, no entanto, a virtude enquanto condição, é sempre o bem supremo, porque não tem acima de si mais nenhuma condição, porque a felicidade é sempre algo agradável para aquele que a possui mas que, por si mesma apenas, não é absolutamente e em todos os aspectos boa, mas pressupõe sempre como condição a conduta moral conforme à lei “ (KpV - Dialética, cap. II, p. 130).


É pela virtude que o homem se torna digno da felicidade. E esta só pode ser alcançada no reino dos fins ou além dele – no mundo transcendente do além.


O REINO DOS FINS

O soberano bem (moral) é o mesmo que o reino dos fins ou reino de Deus. Mas que é mesmo esse reino dos fins?

Uma das fórmulas de Imperativo Categórico diz que nunca devemos tomar o homem como meio e sim como fim. O homem é fim em si mesmo. Cada homem tem seu fim. E o fim de todos os seres humanos, a totalidade dos fins, o fim-término (Endzweck), constitui o reino dos fins, ou reino de Deus, ou comunidade perfeita, ou sociedade ética, ou soberano bem . Quer dizer, o junção da virtude com a felicidade só é possível nesse reino. Não confundir esse reino com a sociedade política universal perfeita (Constituição Civil Perfeita ou Sociedade Cosmopolita), porque esta assegura apenas a liberdade universal e a paz perpétua, mas não garante a virtude e a felicidade ( soberano bem), que só são possíveis numa sociedade ética perfeita (porém esta, para ser alcançada, não pode prescindir daquela). Para alcançar a primeira a própria natureza se encarrega disso ( com sua astúcia), pois a finalidade última da natureza é o homem livre; mas para conseguir a segunda, só o homem, com sua autonomia, consegue realizar.

O homem está de tal modo direcionado para um fim que Kant chama a vontade de faculdade dos fins e define a ética como a ciência dos fins: “Por essa razão a ética também pode ser definida como o sistema dos fins da pura razão prática. Fins e deveres distinguem as duas divisões da doutrina dos costumes em geral” (MS – loc, cit. p. 225). Evidentemente que não o fim egoísta que cada um estabelece para si mesmo, mas o fim que pode se tornar universal, abrangendo todos os homens, levando-os à perfeição e bem-aventurança ( virtude e felicidade ou beatitude).

“O princípio supremo da virtude é: age de acordo com uma máxima dos fins que possa ser uma lei universal a ser considerada por todos. De acordo com este princípio, um ser humano é um fim para si mesmo, bem como para outros, e não é suficiente não estar ele autorizado a usar a si mesmo ou a outros meramente como meios ( uma vez que ele poderia, neste caso, ainda ser indiferente a eles); é em si mesmo seu dever fazer do ser humano como tal seu fim” (idem, p. 239).


Aqui surge, aparentemente uma contradição. Se o homem não deve agir por interesse, como conciliar sua ação com a busca de um fim? Se sua conduta moral não tem um fim, o homem cai numa ética do nada e se transforma numa “nulidade”. Se aceita um fim (externo), que impõe deveres para atingi-lo, passa a agir por interesse ou heteronomamente e sua ética perde a pureza original que deveria ter, perdendo a autonomia. Francisco Javier Herrero desfaz muito bem essa aparente contradição (op. cit., p. 40), como se expõe a seguir (resumido):

Esse fim (efeito) que o homem persegue não é causa de sua ação, mas consequência dela, do seu agir teleológico. Logo, não é interessado o fim que almejo, porque ele é colocado por Deus, o autor moral do mundo. O fim-término é de natureza moral e, portanto, todos os meios racionais utilizados para atingi-los não podem ser interessados.

Quer dizer, se o homem age racionalmente, ele deve ser responsável por sua ação, pelo efeito que ela produz. E se produz um efeito, este efeito é um fim. “Mas, como a determinação da ação é efetuada pela lei moral, segue-se que o fim não é determinante, mas consequência dessa determinação. Portanto, os fins pertencem à ação moral” (Francisco Javier Herrero – Religião e História em Kant, cap. II, p. 40 et passim).

Citando a “Religião nos limites da mera razão”, Herrero diz:

“’Nesse fim, mesmo quando lhe seja proposto pela simples razão, o homem procura alguma coisa que possa amar’ (Rel B, XII). Assim, o homem encontra na idéia do Soberano Bem possível no mundo um móvel mais para a ação. Mas como entender a presença de um motivo mais para a ação, se a lei moral exclui todo e qualquer motivo? Kant responde: a lei estende-se para seu bem até admitir o fim-término moral da razão entre seus princípios de determinação” ( idem, p. 42).

Por isso, diz Herrero (p. 43), Kant pode encontrar uma quarta fórmula para o Imperativo categórico, que é: “cada um deve propor-se como fim-término o Soberano Bem possível no mundo’ (Rel B, Xi n.)”. Quer dizer, se o fim-término é um efeito da lei moral, então fica justificada a Quarta fórmula do imperativo categórico. O homem deve lutar pela realização do soberano bem, partindo das ações impostas pela lei, para um fim, por meio de uma inclinação amorosa, só que esta inclinação não é de um amor patológico, mas racional ( moral).

“... a lei moral, sendo formal e limitando-se à legislação universal, prescreve absolutamente, seja qual for o resultado da ação, e o fim acrescenta um efeito que não está contido nela, mas que é moral, porque desinteressado. Assim, apesar de todo fim ser sempre objeto de ‘uma inclinação’ (Rel B, X), o fim-término da vontade pode ser um móvel porque toda a sua força vem da lei moral” (idem, p. 42).

Se isto não ocorresse, se não nos preocupássemos com o resultado de nossas ações, agiríamos não só de modo absolutamente desinteressado, mas de modo absolutamente vão ( e até mesmo irresponsável) – e desembocaríamos na moral do nada: qual o objetivo da sua ação moral? Nenhum. Que é que você almeja com sua ação? Nada. Isso seria cair realmente numa nulidade, sendo vão o homem ser membro do reino dos fins . Ao mesmo tempo, repetimos, a ação é desinteressada, pois seu fim é moral e fim moral quer dizer despido de objetivos egoístas.

Kant termina a GMS com estas palavras sobre o reino dos fins:

“De resto a idéia de um mundo inteligível puro, como um conjunto de todas as inteligências ao qual pertencemos nós mesmos como seres racionais (posto que, por uma lado, sejamos ao mesmo tempo membros do mundo sensível), continua a ser uma idéia utilizável e lícita em vista de uma crença racional, ainda que todo saber acabe na fronteira deste mundo, para, por meio do magnífico ideal de um reino universal dos fins em si mesmos ( dos seres racionais), ao qual podemos pertencer como membros logo que nos conduzamos cuidadosamente segundo máximas da liberdade como se elas fossem da natureza, produzir em nós um vivo interesse pela lei moral” (GMS – Terceira Seção, p. 116).

Neste reino dos fins, não deve haver incompatibilidade entre natureza e liberdade, felicidade e virtude. Mas enquanto o homem estiver vivendo sob o véu da sensibilidade estará sujeito aos seus transtornos, somente após a morte alcançará a felicidade plena. Giovanni B. Sala, SJ, diz que “uma vez que, por outro lado, a ligação da virtude com a beatitude só pode ser produzida ultimamente por Deus, a proteção da dignidade do homem como entidade livre e responsável só é possível no horizonte da transcendência” ( A Questão de Deus nos Escritos de Kant, p. 174, in “O Deus dos Filósofos Modernos”, organização de Manfred Oliveira e Custódio Almeida, Vozes, Petrópolis, 2002).

Aqui, para completar a totalidade no sistema de Kant, entra a Religião, unindo o mundo sensível com o inteligível, a natureza com a liberdade e produzindo um reino de bem-aventurança, sob a legislação direta de Deus. Esse reino dos fins ou reino de Deus seria o mundo da justiça e da (possível) felicidade, que uns procuram aqui na Terra ( Humanismo) e outros procuram no “Céu” ( Religião) .

Como o homem, em sua vida terrenal está sujeito às paixões e inclinações do mundo sensível, como tal não pode alcançar plenamente a felicidade aqui. Disso, presume-se que o homem virtuoso passa ( translada) do reino dos fins, da sociedade ética, da religião invisível, diretamente para o reino do além (transcendente), da imortalidade, onde receberá a bem-aventurança, a felicidade completa tão almejada. Como dissemos, é aqui que entramos no problema da Religião.

Sobre a posição de Kant diante deste problema, o campo da Religião, remetemos o leitor ao Capítulo 3 deste trabalho.


IV - CAPÍTULO 3 – EM TORNO DA “CRÍTICA DA RAZÃO PRÁTICA” E OUTROS ESCRITOS.




“A CRÍTICA DA RAZÃO PRÁTICA”



A “Crítica da Razão Prática” se liga à Terceira ( e última) Secção da Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten - GMS), intitulada “Transição da Metafísica dos Costumes para a Crítica da Razão Prática Pura”, onde Kant já usa o “método sintético”, que trata dos princípios gerais da razão pura.

Como se disse anteriormente, Kant usou o método sintético na Crítica da Razão Prática, que é o inverso do método empregado na Fundamentação. Nesta, Kant parte do particular, do sensível, do psicológico, da análise da consciência moral vulgar, do homem comum, para atingir princípios filosóficos, universais ou leis morais. Na KpV, Kant parte de princípios gerais para determinar as normas particulares da ação moral.

Entretanto, o caminho percorrido na exposição é o inverso do empregado na Crítica da Razão Pura (KrV). Nesta, Kant, parte da intuição sensível, sobe para os Esquemas, chega aos Conceitos do Entendimento ( Categorias) e vai até os Princípios da Razão. Na Crítica da Razão Prática ( KpV), Kant faz o percurso inverso: parte dos Princípios gerais da razão pura ( que ele chama de teoremas), desce para os Conceitos (as Categorias da Liberdade, aplicadas aos conceitos do Bem e do Mal), e, como não existem Esquemas na razão prática, Kant utiliza no lugar deles os Tipos ou leis naturais tomados de empréstimos da KrV, (onde são concebidas como Leis do Entendimento), que são aplicativos da razão prática ao mundo sensível ou efetivol ( concreto), isto é, são modelos por intermédio dos quais a razão pura prática trabalha, age, no mundo sensível.



Sem levar em conta o Prefácio e a Introdução, a Analítica trata dos princípios e dos conceitos da razão prática. Os Princípios da razão são em número de quatro, que Kant chama de Teorema e todos estão subordinados à Lei Fundamental da Razão Prática, que é o Imperativo Categórico. Os Conceitos são em número de doze e são as Categorias da Liberdade que devem ser aplicadas em relação ao Bem e ao Mal. No último capítulo (o Terceiro) da Analítica, Kant retoma o problema da Liberdade e trata dos motivos ou móveis da razão pura ( um desses móveis seria o Respeito à lei Moral).

Na Dialética, Kant trata de desanuviar sua ( da razão) ilusão ou aparência, com o objetivo de determinar o soberano bem, que é o acordo entre Virtude e Felicidade, a fim de superar sua antinomia, isto é, uma pretensa contradição entre a virtude e a felicidade. Para isso retoma o estudo das Idéias da Razão, que são os postulados da imortalidade da alma e da existência de Deus, além de, evidentemente, pressupor a liberdade, pois sem esta não existiria a Moral. Como todas as Críticas seguem o mesmo esquema de exposição, a KpV termina também com uma Metodologia.

Kant diz que pressupõe a razão pura especulativa, cujo conhecimento toma como base para o uso prático, o que faz com que ele divida em linhas gerais a crítica da razão prática conforme a divisão da razão especulativa:

“Devemos, pois, ter uma doutrina elementar e uma metodologia da mesma; na doutrina elementar enquanto primeira parte, uma analítica, como regra da verdade, e uma dialética, como exposição e solução da aparência nos juízos da razão prática. Na subdivisão, porém, da analítica, a ordem será por sua vez o inverso da que foi seguida na Crítica da razão pura especulativa. Com efeito, na presente [ Crítica], iremos aos conceitos, começando pelos princípios, e dos conceitos primeiramente iremos, se possível, aos sentidos; na razão especulativa, pelo contrário, começamos pelos sentidos e tivemos de terminar nos princípios. A causa disso reside, por seu turno, no fato de termos agora a ver com uma vontade e de havermos de considerar a razão não em relação aos objetos, mas em relação a esta vontade e à sua causalidade; importa, pois, começar pelos princípios da causalidade empiricamente incondicionada, após o que se pode fazer a tentativa de estabelecer os nossos conceitos do princípio de determinação de uma tal vontade, da sua aplicação a objetos e, por fim, ao sujeito e à sua sensibilidade. A lei de causalidade a partir da liberdade, isto é, um princípio prático puro, constitui aqui inevitavelmente o começo e determina os objetos com os quais apenas ele se pode relacionar” (KpV – Introdução, p. 24).


Kant, no Prefácio da KpV trata do problema da liberdade que antes na KrV era uma idéia da razão, agora é vista como uma idéia que se revela na razão prática; “Mas, a liberdade é também a única entre todas as idéias da razão especulativa, da qual sabemos ( wissen) a possibilidade a priori sem, no entanto, a discernir (einzusehen), porque ela é a condição da lei moral, que conhecemos. As idéias de Deus e de imortalidade, porém, não são condições da lei moral, mas apenas condições do objeto (Objekt) necessário de uma vontade determinada por esta lei, isto é, do uso simplesmente prático da nossa razão pura” (KpV – Prefácio, p. 12, trad. portuguesa de Artur Morão, Edições 70, Lisboa, 1999).

Se Deus e Imortalidade não fundamentam a moral, devem ter um uso moral, se não como causa antecedente, pelo menos como causa consequente. Por isso, “devemos tomar de novo as armas nas nossas mãos para buscar no uso da razão os conceitos de Deus, de liberdade e imortalidade, para os quais a especulação não encontra suficiente garantias da sua possibilidade” (idem, p. 13). Quer dizer, a realidade dessas idéias são apenas pensadas, não visando um uso teorético das categorias nem expandido o conhecimento para além do sensível, mas ressalvando que o homem também pertence ao mundo do noúmeno, inteligível, onde essas idéias podem ter um uso prático, moral capaz de, no final de contas, realizar o soberano bem na terra.


Primeira Parte
Da Crítica da Razão Prática
DOUTRINA ELEMENTAR DA RAZÃO
PURA PRÁTICA


Primeiro Livro
A ANALÍTICA DA RAZÃO PURA PRÁTICA


ANALÍTICA DOS PRINCÍPIOS


Kant começa o Capítulo I (Dos Princípios da razão pura prática) definindo o que são máximas e leis: as máximas são princípios subjetivos e são válidas apenas para o sujeito, isto é, para sua vontade pessoal; as leis são princípios práticos objetivos e valem para todo ser racional .

As máximas não são imperativos, mas as leis o são, e, mais precisamente, imperativos categóricos, pois os imperativos hipotéticos não podem fundamentar uma lei moral. O imperativo categórico, que já vimos na Fundamentação, é a lei moral para todo ser racional. Um ser santo ou Deus não teria um imperativo, porque sua vontade já seria boa em si mesma, já que não está sujeito à sensibilidade, de maneira que a lei moral só existe para os seres racionais sensíveis. Esse imperativo seria: “Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal” (Analítica – Princípios..., p. 42). Essa é a lei fundamental da razão prática e é apenas formal. Na Fundamentação, ela se desdobrava em três fórmulas, que lhe davam uma determinação menos geral.

Kant aceita essa lei moral através de quatro princípios que ele chama “Teorema”, que são:

“Teorema I - Todos os princípios [Prinzipien] práticos que pressupõem um objeto [Objekt] (matéria) da faculdade de desejar, enquanto princípio determinante da vontade, são no seu conjunto empíricos e não podem fornecer nenhumas leis práticas (ibidem, p. 31).

“Teorema II – Todos os princípios práticos materiais são enquanto tais, no seu conjunto, de uma só e mesma espécie e classificam-se sob o princípio geral do amor de si ou da felicidade pessoal” ( ibidem, p. 32).

“Teorema III – Quando um ser racional deve conceber as suas máximas como leis gerais, só pode concebê-las como princípios que contêm a base de determinação da vontade, não segundo a matéria, mas unicamente segundo a forma” (Ibidem, p. 38).

“Teorema IV – A autonomia da vontade é o único princípio de todas as leis morais e dos deveres a elas conformes; pelo contrário, toda heteronomia do livre arbítrio não só não funda nenhuma obrigação, mas opõe-se antes ao princípio da mesma e à moralidade da vontade” (ibidem, p. 45).


Tudo isso quer dizer:

- Que a lei moral não deve depender da experiência, da faculdade dos apetites, das inclinações, de tudo que é material; uma moral que se fundamente nesses princípios empíricos não é pura e não pode ser verdadeiramente uma moral.

- Que os princípios práticos materiais não podem fornecer bases para a moral por que são egoístas, preocupam-se com o amor de si mesmo, com a própria felicidade, fundamentam-se na sensibilidade e não na razão; a felicidade deve ser buscada, mas ela se baseia na faculdade apetitiva, nas carências ou necessidades (precisões), e estas são subjetivas, pessoais. Mesma que essas carências fossem idênticas em todas as pessoas, tal unanimidade seria apenas contingente, e não necessária, pois não seria derivada de princípios universais a priori.

- Que a vontade deve determinar-se a si mesma, mas não por um princípio material (objeto), por fenômenos; deve deter-se apenas em sua forma universal e só a lei moral pode determinar a vontade, que é livre. A liberdade e a lei moral implicam-se mutuamente (cf. op. cit., ibidem, p. 41) e seria absurdo uma lei moral se o homem não fosse livre.

- Que a autonomia da vontade é o princípio supremo da moralidade e a vontade só pode ser determinada moralmente pela pura forma da lei. Se como fenômeno, o homem não é livre, como noumeno, como ser inteligível, é autodeterminável.


Essa lei moral, como já se disse, é o imperativo categórico, já expresso acima, que é uma lei prática que pressupõe a liberdade humana. A razão prática avança aqui, em relação à razão especulativa, onde não se podia provar a liberdade. Aqui, a liberdade não é provada teoricamente, mas é aceita praticamente. A consciência dessa lei fundamental ( consciência moral) não é provada, mas um fato da razão (cf. op. cit., ibidem, p. 43), não um fato empírico, já que a moral não se baseia na experiência, mas num dado que existe a priori na razão, sendo ele o único fato da razão pura, que se manifesta como originalmente legislador (cf. op. cit., idem, ibidem) .

ANALÍTICA DOS CONCEITOS

Aqui, Kant procura (Capítulos II e III) estudar o conceito dos objetos da razão prática. “Por conceito da razão prática, entendo a representação de um objeto ( objekt) enquanto efeito possível da liberdade” (KpV – Analítica – Conceitos..., p. 71). Esses objetos são apenas dois: o Bem e o Mal.

“Os únicos objetos ( objekte) de uma razão prática são, portanto, constituídos pelo Bem (Gut) e pelo Mal ( Böse). Efetivamente, pelo primeiro, entende-se um objeto ( Gegenstand) necessário da faculdade de desejar, pelo segundo, um objeto necessário da faculdade de aversão, ambos, porém, em conformidade com o princípio da razão” ( idem, p. 72).

Kant chama a atenção para que não se confundam esses conceitos com o sentimento de agradável e desagradável, porque estes termos dizem respeito à sensibilidade, enquanto que o Bem e o Mal se referem à razão. Diz ele:

“A língua alemã tem a sorte de possuir as expressões que não permitem perder de vista esta dissimilaridade. Para designar o que os Latinos exprimem pela única palavra bonum, ela tem dois / conceitos muito diferentes e outras tantas expressões diversas. Para bonum, ela tem das Gute e das Wohl, para malum, das Böse e das Übel (ou Web): de maneira que são dois juízos inteiramente diferentes se, numa ação, consideramos o Gute e o Böse da mesma, ou o nosso Wohl e Web ( Übel). Daí se segue já que a psicologia supra mencionada é pelo menos duvidosa, se assim foi traduzida: nada desejamos a não ser em consideração do que para nós é bom ou mau (Wohl und Web); mas se, pelo contrário, se lhe der esta versão: nada queremos, segundo a indicação da razão, senão enquanto o tomamos por bom ou mau ( gut oder böse), então ela torna indubitavelmente certa e adquire ao mesmo tempo uma expressão inteiramente clara.
O Bem (Wohl) ou o Mal (Übel) significam sempre apenas uma relação ao nosso estado de agradabilidade ou de desagradabilidade, de prazer e de dor e se, por isso, desejamos ou detestamos um objeto (Objekt), tal acontece só enquanto ele se refere à nossa sensibilidade e ao sentimento de prazer e de desprazer (Lust, Unlust) que produz. Mas o bem ( Gute) ou o mal (Böse) significam sempre uma relação à vontade enquanto é determinada pela lei da razão a fazer de algo o seu objeto (Objekt); porque ela nunca é imediatamente determinada pelo objeto e sua representação, mas é um poder (Vermögen) de fazer de uma regra da razão a causa motora de uma ação mediante a qual se pode realizar um objeto. O bem ( Gut) ou o mal (Böse) referem-se, pois, genuinamente a ações, e não ao estado sensível da pessoa” (op. cit., loc. cit., pp. 73-74).


Kant a seguir explica o paradoxo do método numa crítica da razão pura: é que o Bem e o Mal são objetos da razão prática, mas ao mesmo tempo não devem ser determinados antes da lei moral, da qual só na aparência deveriam lhe servir de fundamento. Kant diz que o erro dos antigos foi querer estabelecer primeiro o conceito de sumo bem para depois, e de acordo com ele, estabelecer a lei moral. Ora, a lei moral é que deve determinar primeiro o bem e o mal e só depois, o sumo bem (cf. KpV, loc. cit., p. 77).

Os conceitos do Bem e do Mal são a priori e podemos em relação a eles determinar o conteúdo da ação moral, por meio de categorias. Estas são doze, agrupadas em quantidade, qualidade, relação e modalidade. Elas se relacionam com as categorias de modalidade da Crítica da Razão Pura e possibilitam a passagem dos conceitos empíricos para os conceitos de moralidade .

Esse conceitos são chamados de “categorias da liberdade” e delas resulta o conhecimento (embora distinto do conhecimento teórico), mesmo sem intuição sensível ( como se exigia na KrV):

“Estas categorias da liberdade, pois as queremos assim chamar, em vez daqueles conceitos teóricos enquanto categorias da natureza, possuem uma vantagem manifesta sobre as últimas, devido ao fato de estas serem apenas formas de pensamento, que designam mediante conceitos universais, somente de modo indeterminado e para toda intuição a nós possível, objetos ( Objekte) em geral; as outras, pelo contrário, visto que incidem sobre a determinação de um livre arbítrio ( ao qual, sem dúvida, não se pode outorgar nenhuma intuição / inteiramente correspondente, mas que se funda, o que não acontece a nenhum conceito do uso teorético da nossa faculdade de conhecer, numa lei prática pura a priori), têm, pois, por fundamento, enquanto conceitos práticos elementares, em vez da forma da intuição ( espaço e tempo) que não reside na própria razão, mas deve ser tirada de outro lado, isto é, da sensibilidade, a forma de uma vontade pura, como dada na razão, por conseguinte, na própria faculdade de desejar; segue-se pois daí que, uma vez que em todos os preceitos da razão prática pura se tem a ver apenas com a determinação da vontade e não com as condições naturais ( da faculdade prática) da execução de sua intenção, os conceitos práticos a priori tornam-se, em relação ao princípio supremo da liberdade, imediatamente conhecimentos e não têm que aguardar intuições para adquirir significação e, naturalmente, pelo motivo notável de que eles produzem por si mesmos a realidade ( Wirklichkeit) daquilo a que se referem ( a disposição da vontade) – o que não sucede com os conceitos teóricos” (KpV - Analítica - Conceitos..., pp. 79-80).


O quadro das categorias da liberdade é exposto a seguir:

Quadro das categorias da liberdade relativamente
aos conceitos do Bem e do Mal

I – Da quantidade

- Subjetivo, segundo máximas ( opiniões da vontade do indivíduo)
- Objetivo, segundo princípios (preceitos)
- Princípios a priori tanto objetivos como subjetivos da liberdade ( leis)

II – Da qualidade

- Regras práticas da ação (praeceptivae)
- Regras práticas da omissão (prohibitivae)
- Regras práticas de exceção ( exceptivae)

III – Da relação

- À personalidade
- Ao estado da pessoa
- Recíproca de uma pessoa ao estado das outras.

IV – Da modalidade

- O lícito e o ilícito
- O dever e o que é contrário ao dever
- O dever perfeito e o dever imperfeito.

São essas as categorias da liberdade em sua aplicação prática em relação ao Bem e ao Mal. Aqui, Kant diz que a liberdade é:

“uma espécie de causalidade, que não está, porém, submetida a princípios de determinação empíricos, se considera relativamente às ações por ela possíveis, como fenômenos do mundo sensível, por conseguinte, ela relaciona-se com as categorias da sua possibilidade natural, ao mesmo tempo que cada categoria, no entanto, é tomada tão universalmente que o princípio determinante daquela causalidade pode admitir-se igualmente fora do mundo sensível na liberdade enquanto propriedade de um ser inteligível, até que as categorias da modalidade introduzam a passagem, mas só de modo problemático, dos princípios práticos em geral para os da moralidade, que podem subsequentemente ser apresentados de maneira dogmática apenas pela lei moral” (loc. cit., p. 81) .

Kant a seguir encontra um problema: como aplicar à realidade concreta, sensível, esses conceitos puros da razão? Se sua aplicação ao mundo efetivo não for possível, então inútil será o imperativo categórico.

Ora, na Crítica da Razão Pura, a ligação (intermediação) entre os conceitos do entendimento puro ( categorias) e a intuição sensível era feita pelos esquemas, um produto da imaginação. Aqui, como as categorias da liberdade são conceitos da razão, - então como esta irá descer até o mundo sensível, sem uma intermediação, já que a razão prática não tem esquemas ( como o Entendimento os tinha, na KrV), tendo em vista que a imaginação é um poder ligado à sensibilidade? Kant resolve esse problema pela teoria do tipo, isto é, da lei natural . A lei natural não é o esquema mas é comparável a este, exerce o mesmo papel deste, só que agora em relação à razão prática, e não à razão teórica ( tomando-se esta em sua ação no nível do Entendimento).

“Mas esta última lei é, no entanto, um tipo para julgar a máxima segundo princípios morais. Quando a máxima da ação não é constituída de maneira a sustentar a prova em geral da forma de uma lei natural, ela é moralmente impossível. Assim julga o próprio entendimento mais vulgar; pois, a lei natural serve sempre de fundamento a todos os seus juízos mais ordinários, mesmo aos juízos de experiência. Ele tem-na, portanto, sempre à mão; só que em casos onde a causalidade deve ser julgado pela liberdade, ele faz dessa lei natural simplesmente o tipo de uma lei da liberdade, porque sem ter à mão algo de que pudesse fazer um exemplo num caso de experiência, não conseguiria na aplicação fornecer o uso a uma lei da razão pura prática.
É, pois, permitido igualmente utilizar a natureza do mundo sensível como tipo de uma natureza inteligível contanto que eu não transfira para esta as intuições e o que delas depende, mas simplesmente com elas se relacione a forma da conformidade à lei em geral ( cujo conceito se encontra também no uso mais comum da razão, mas não pode ser conhecido de modo determinado para nenhum outro fim a não ser o uso prático puro da razão). Pois, leis como tais são sob este aspecto idênticas, seja de onde for que elas queiram tirar os seus princípios de determinação” (ibidem, p. 84).


Em outras palavras, a razão prática toma a lei natural apenas como modelo, como forma, de sua atuação no mundo natural (sensível), mas de modo algum isto quer dizer o aumento do conhecimento teórico sobre a natureza. Poderíamos objetar que se essa ação moral do homem sobre o mundo não aumenta em nada nosso conhecimento sobre ele, então essa ação seria inócua e inútil para a nossa vida. Kant diz que não é assim, porque o Criador de todas as coisas harmonizou de tal modo o mundo sensível com o inteligível que ambos vão coincidir, no final de tudo, em seus resultados. Kant não pode de modo algum desprestigiar a razão prática, que considera prioritária sobre a razão teórica, mas ao mesmo tempo quer salvar a ciência e esta só é possível se suas leis não admitirem exceção alguma, se não puderem ser violadas pela intervenção da ação moral. O resultado é que dividiu a realidade em duas, uma superior, inteligível, e uma inferior, sensível, sendo a sensibilidade algo subjetivo, ou seja, apenas uma propriedade de alguns seres racionais, mais precisamente o homem.

Francisco Javier Herrero assim fala sobre o tema:

“A determinação da vontade pela qual a lei moral exclui qualquer outra determinação vinda da natureza, isto é, a aplicação do imperativo categórico a objetos da natureza não se pode dar pela intervenção de qualquer intuição [sensível]. A mediação tem de vir da própria lei moral, porque esta é essencialmente prática. A lei que ordena torna-se concreta no tipo, sendo uma lei natural para a faculdade de julgar. O homem se pergunta: caso a minha ação devesse acontecer segundo uma lei da natureza, da qual eu formasse parte, poderia vê-la como possível por minha vontade? Em outras palavras, se a universalidade da lei, segundo a qual acontecem os efeitos, constitui a natureza, isto é, a existência das coisas ( enquanto esta é determinada por leis universais), poderia ver minha ação como efeito dessa lei?” (Religião e História em Kant, cap. I, p. 24, Loyola, São Paulo, 1991).

A resposta de Kant é um sim, para salvar a aplicação prática do imperativo categórico, mas isto só é explicitado melhor na “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”, onde uma de suas fórmulas ( a segunda formulação) introduz o conceito de natureza: “Age como se a máxima da tua ação devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza”(GMS - Segunda secção, p. 59, Edições 70, Lisboa, 2001).

Mas como Kant, aqui na KpV, silencia sobre aquelas fórmulas da Fundamentação, então resolve o problema da determinação da Lei abstrata (Imperativo Categórico) através da teoria do tipo. A doutrina do tipo, ademais, salva o homem do empirismo, que coloca os conceitos morais ( do bem e do mal) na experiência, e do misticismo, que transforma em esquema aquilo que era apenas símbolo, perdendo o contato com a realidade e caindo no arrebatamento, construindo mundos fantasmagóricos, pois constrói “intuições reais” não-sensíveis de um invisível Reino de Deus. Somente o racionalismo é adequado ao homem em seu julgamento:

“Ao uso dos conceitos morais é unicamente adequado o racionalismo da faculdade de julgar, o qual nada mais tira da natureza sensível do que o que a razão pura pode também pensar por si, isto é, a conformidade à lei, e nada transporta para a natureza supra-sensível a não ser o que, inversamente, se pode realmente representar no mundo sensível por ações segundo regra formal de uma lei natural em geral” (KpV – loc. cit., p. 85).

Kant, especialmente na Crítica do Juízo, iria procurar uma passagem ou elo de ligação entre esses dois mundos: o sensível e o inteligível.

Kant, no Terceiro ( e último) Capítulo da Analítica, trata dos “móveis” ( Triebfedern) da razão pura prática .

Ora, somente a lei moral pode ser o móvel (ou motivo), isto é, somente ela pode determinar a vontade. Se a vontade fosse movida por outra coisa além da lei moral, no máximo haveria conformidade com a lei – legalidade – mas não respeito à lei – isto é, moralidade. Quer dizer, muitos móveis podem determinar a vontade, mas apenas um ( único) é móvel moral – o respeito à lei da razão prática. Todos os demais móveis são empíricos e, portanto, não-morais. É o que diz Kant:

“O essencial de todo valor moral das ações depende de que a lei determina imediatamente a vontade. Se a determinação da vontade acontece de acordo com a lei moral, mas unicamente mediante um sentimento, seja de que espécie ele for, que deve ser pressuposto para que aquela se torne um princípio determinante suficiente da vontade, por conseguinte, não por amor da lei: então, a ação conterá certamente legalidade, mas não moralidade.” (KpV - idem, p. 87).

Por isso, devemos agir por respeito à lei e não apenas de acordo com a lei e esse respeito é o móvel. Por móvel Kant entende o princípio de determinação subjetivo da vontade de um ser racional cuja razão é não necessariamente conforme à lei objetiva. Disto, segue-se que Deus não teria nenhum móbil ou respeito à lei, já que sua vontade já existente é necessariamente pela lei e conforme à lei, não estando sujeito a contingências nem à resistência da sensibilidade. Kant, entretanto, diz que o respeito à lei na verdade não é o móbil da lei moral, mas esta implica aquele e somente a lei moral pode determinar a vontade e seria hipocrisia admitir que outros móveis (como o interesse) pudessem cooperar ao lado da lei moral. Entretanto, não podemos saber o modo como a lei moral determina imediatamente a vontade, ficando isso no campo do incognoscível:

“... o modo como uma lei pode por si e imediatamente ser o princípio determinante da vontade ( o que, no entanto, é o essencial de toda moralidade) constitui um problema insolúvel para a razão humana e confunde-se com o problema de como é possível uma vontade livre. Assim, não teremos de indicar a priori a causa a partir da qual a lei moral produz em si um móbil, mas o que ele, enquanto móbil, opera ( para dizer melhor, deve operar) na alma.” (KpV - idem, p. 88).

Quer dizer, se não podemos saber de que modo a lei moral determina a vontade, podemos ao menos saber como ela opera na alma, o que será o suficiente. Kant diz que, de modo geral, quer dizer, rotineiramente, especialmente nos homens rudes, a vontade é determinada por móveis empíricos, mas somente o móvel do princípio da razão pura prática leva a uma moralidade.

Inicialmente, os efeitos da lei moral como motivo é negativo pois consiste em inibir as inclinações, contrariar os desejos da sensibilidade, o que causa um constrangimento, uma humilhação ao nosso amor próprio, ao combater a presunção. Mas se de um lado a lei moral humilha o nosso egoísmo, o nosso amor próprio, ela determina o sentimento de respeito (à própria lei), que é positivo, até porque é o homem o legislador. Evidentemente que esse sentimento de respeito à lei não é anterior à própria lei, não a fundamenta, pois Kant rejeita a teoria do sentimento moral empírico ou moral sense (Hutcheson, Hume, Rousseau, etc. Cf. Sofia Vanni Rovighi – História da Filosofia Moderna, Loyola, São Paulo, 1999). Como diz Georges Pascal, interpretando Kant, “É a lei moral que determina o sentimento moral, e não o sentimento a lei” ( O Pensamento de Kant – III, p. 135, Vozes, Petrópolis, 1999). É preciso obedecer à lei absolutamente; o sentimento moral não é o seu móvel, apenas facilita essa obediência .

Ao respeito à lei se ligam os sentimentos do dever e do mérito:

“A consciência de uma livre sujeição da vontade à lei ligada, no entanto, a uma coerção ( Zwang) inevitável, infligida a todas as inclinações, mas unicamente através da própria razão, é pois o respeito pela lei. A lei que exige e também inspira este respeito nenhuma outra é, como se vê, senão a lei moral ( porque mais nenhuma exclui todas as inclinações da imediaticidade da sua influência sobre a vontade). A ação que, segundo esta lei, com exclusão de todos os princípios determinantes a partir da inclinação, é objetivamente prática, chama-se dever ( Pflicht), o qual, em virtude desta exclusão, contém no seu conceito um constrangimento prático, isto é, uma determinação a ações, por mais relutante que seja o modo como elas tem lugar” (KpV – Analítica... Conceitos... cap. III, Dos motivos..., p. 96) .


Kant afirma que o respeito é um tributo que não podemos recusar ao mérito e mesmo que não o expressemos exteriormente, não o deixamos de sentir interiormente. Enfim, as noções de “Dever e obrigação são as denominações que unicamente podemos dar à nossa relação à lei moral” (KpV - idem, p. 98), mas só temos a obrigação do dever porque somos legisladores de um reino moral . Isto significa que o homem, como co-legislador, produtor da lei no seu agir racional, é obrigado a obedecê-la. Isto não significa perder seu livre-arbítrio, porque ele pode desobedecer. Mas ao desobedecer, não age racionalmente; e ao agir irracionalmente, perde sua condição de humanidade, pois se rebaixa ao nível dos seres irracionais. Desse modo, ele deve obedecer, por força da razão.

O dever exige ações conforme à lei, mas uma dever apenas conforme a lei constitui apenas a legalidade e não a moralidade, pois esta, além de ser de acordo com a lei, é ainda por respeito (ou até respeito e amor) à lei.(cf. loc. cit., p. 97). Mas para que uma lei seja moral é necessário um fator interno, que Kant chama intenção ( Gesinnung). Sem a intenção, ou mais precisamente, sem a boa intenção, não há ação moral, pois a intenção é a forma do ato verdadeiramente moral:

“A lei moral é para a vontade de um ser absolutamente perfeito uma lei da santidade, mas, para a vontade de todo o ser racional finito, é uma lei do dever, do constrangimento moral e da determinação das ações do mesmo mediante o respeito por esta lei e a partir da veneração pelo seu dever. Não deve admitir-se para móbil um outro princípio subjetivo porque, de outro modo, a ação pode certamente ter um resultado como a lei a prescreve mas, visto que ela é, sem dúvida, conforme ao dever ( pflichtmässig), não ocorrendo, porém, por dever (aus Pflicht), então a intenção ( Gesinnung) que, apesar de tudo, é o que verdadeiramente importa nesta legislação, não é moral” (KpV - idem, p. 98).


Esta importância que Kant dá à intenção levou alguns intérpretes a imputarem à moral kantiana uma acomodação na eficiência da ação moral, dizendo que pelas “boas intenções, o inferno está cheio de gente”, o que é uma interpretação vulgar e errônea. Dizem esses intérpretes que a intenção é condição necessária mas não condição suficiente da ação moral, citando-se como reforço dessa interpretação uma passagem da Fundamentação que diz: mesmo que a boa intenção “em seu maior esforço nada conseguisse, ela não brilharia menos por isso, tal como a jóia em relação a seu brilho, como qualquer coisa que tem em si todo o seu valor” (apud. Denis Huisman / André Vergez – A Ação, p. 213, Freitas Bastos, 1968) . Ora, Kant jamais desprezou as condições materiais, a diligência e eficiência na execução do ato moral, pois isso está dentro da boa intenção. Apenas frisa que, no caso de conflito entre a intenção ( forma) e a realização (matéria, conteúdo), na ação moral, Kant fica com a intenção, pois sem esta a moral cairia na heteronomia, e moral heterônoma não pode ser moral. O que Kant quer dizer é que a empiria jamais poderá fundamentar a ação moral, nem como base, nem como fim, pois admitir isso seria negar qualquer possibilidade de ética e botar abaixo toda a finalidade do seu sistema .

Como já se disse, à firme disposição de praticar a ação moral, isto é, de cumprir o dever, Kant chama de virtude. Virtude é a “disposição moral na luta [para realizar o ato moral], e não a santidade na suposta posse de uma plena pureza das disposições da vontade” (KpV - idem, p. 100). Um anjo ou Deus não precisam mais de virtude, pois sua razão já está de conformidade com a vontade, isto é, já são virtuosos por sua própria natureza; somente os seres racionais providos de sensibilidade precisam da virtude. E como esta é uma disposição (intenção) na luta para cumprir a lei moral, segue-se logicamente que a virtude é o verdadeiro móvel da moralidade. Para Kant, ela é o Bem Moral Supremo, acima da própria felicidade, cuja realização geralmente não está de par com a virtude, pelo menos nesse mundo terrenal.

Quanto à origem do dever, Kant diz que o homem é pessoa e, por isso, o dever se origina da personalidade , que se fundamenta na liberdade e na independência “relativamente ao mecanismo da natureza inteira, ao mesmo tempo porém considerada como uma faculdade de um ser que está submetido a leis peculiares, a saber, às leis puras práticas dadas pela sua própria razão” (idem, p. 103). A personalidade, portanto, é definida pela autonomia do ser humano, tema este de que já tratamos nosso Capítulo 2, anteriormente.

Podemos dizer que Kant conclui o conteúdo dessa primeira parte de “Dos motivos da razão pura prática” com essas palavras:

“Assim é constituído o genuíno móbil da razão pura prática; nada mais é do que a pura lei moral em si mesma, enquanto ela nos faz sentir a sublimidade da nossa própria existência supra-sensível e, subjetivamente, nos homens que são conscientes simultaneamente da sua existência sensível e da dependência com isso relacionada da sua natureza muito patologicamente afetada, suscita respeito pela sua mais elevada determinação” (KpV - idem, p. 104).


Kant, na última parte deste Capítulo ( III), subintitulado de “Elucidação crítica da analítica da razão pura prática”, retoma o problema da liberdade, sobre o qual já falamos. O homem como fenômeno não é livre, está sujeita às leis causais da natureza, mas esse mesmo homem como noúmeno, como ente inteligível, tem livre-arbítrio. Sobre isso, escreve Georges Pascal:

“Ser livre, neste sentido, é ser capaz de obedecer à razão. Podemos chamar-lhe também de liberdade do sábio. Mas esta liberdade supõe uma outra, que Kant chama de liberdade transcendental, e à qual se costuma aplicar a designação de livre-arbítrio. Se a liberdade prática consiste na obediência à lei moral, mister se faz que o homem não se encontre sujeito ao determinismo da natureza. Ser livre praticamente é não depender da compulsão sensível das inclinações; mas o homem não se libertará dessa compulsão, se não for livre absolutamente, noutros termos, os seus atos não devem ser necessariamente determinados. Ora, na medida em que existe tempo, o homem está sujeito à lei mecânica do encadeamento dos fenômenos: toda ação que ocorre num dado instante é condicionada por aquilo que ocorreu nos instantes anteriores. Logo, enquanto se encontra inserida no mundo dos fenômenos, a ação humana não é livre. A solução esboçada na primeira Crítica [ KrV] consiste em distinguir o homem considerado como fenômeno, sujeito à necessidade natural, do homem considerado como coisa em si [ noúmeno], ou livre” (G. Pascal, op. cit., III, p. 137).


Mas Kant faz ainda uma recapitulação de sua exposição, comparado-a com a da Crítica da Razão Pura, mostrando que nesta:

“A analítica da razão pura teórica foi dividida em estética transcendental e em lógica transcendental, a da prática [ isto é a Analítica da Crítica da razão prática], pelo contrário, em lógica e em estética da razão pura prática ( se me é permitido utilizar aqui estes termos, aliás não adequados, simplesmente em virtude da analogia); a lógica [ da KrV], por seu turno, foi aí dividida em analítica dos conceitos e em analíticas dos princípios e, aqui [ na KpV], em analítica dos princípios e em analíticas dos conceitos. Além [na KrV], a estética tinha ainda duas partes devido às duas espécies de uma intuição sensível [ a saber, espaço-tempo e sensação]; aqui, a sensibilidade não é considerada como capacidade de intuição, mas somente como sentimento ( que pode ser um princípio subjetivo do desejo) e, a este respeito, a razão pura prática não admite mais nenhuma divisão.”( idem, p. 106).

Quer dizer, na KpV, Kant, em sua explanação, desceu dos princípios aos conceitos e destes à sensibilidade, podendo esta ser tomada, em termos de moral, apenas como sentimento ou faculdade do desejo.

Segundo livro

DIALÉTICA DA RAZÃO PURA PRÁTICA


O objetivo da Dialética da razão pura prática é a determinação do soberano bem, que é um acordo entre a virtude e a felicidade.

Aqui, não basta determinar o soberano bem, mas afastar a aparência dialética que impede o homem de perceber o acordo entre a virtude e a felicidade. E evidentemente, Kant diz que no conceito de soberano bem já está contido o de lei moral, pois ninguém o atingirá fora da lei.

Desde Aristóteles – para não remontarmos a um tempo mais antigo – a maioria das doutrinas morais tinha por finalidade da vida, o sumo bem, que era a felicidade. A virtude vinha identificada com ela ou de par com ela, com importância secundária. Por outro lado, as morais que davam ênfase à virtude, vinculavam a ela a felicidade, identificando uma com a outra, ou dando à felicidade um importância menor do que a virtude. É o que acontecia, segundo Kant, com as morais epicurista e estóica:

“O epicúrista dizia: ter consciência da máxima que conduz à felicidade é a virtude; mas o estóico afirmava: ser consciente da sua virtude é a felicidade; para o primeiro, a prudência equivalia à moralidade; para o segundo, que escolhia para a virtude uma designação mais elevada, só a moralidade era a verdadeira sabedoria” (KpV – Dialética... p. 130). “O conceito de virtude, segundo o epicurista, residia já na máxima de fomentar a própria felicidade; pelo contrário, o sentimento da felicidade, segundo o estóico, estava já contido na consciência da sua virtude. Mas o que está contido num outro conceito é certamente idêntico a uma parte do continente, mas não ao todo e, além disso, dois todos podem ser especificamente diferentes entre si, embora consistam na mesma matéria, se as partes estiverem em ambos unidas num todo de modo inteiramente diverso. O estóico afirmava que a virtude é todo o soberano bem, e a felicidade constitui apenas a consciência da posse da mesma virtude enquanto inerente ao estado do sujeito. O epicurista alegava que a felicidade é todo o soberano bem, e a virtude é somente a forma da máxima de a ela se candidatar, isto é, consiste no uso racional dos meios para a conseguir” ( idem, p. 131).


Para resolver esse problema, Kant volta à distinção entre juízos analíticos e sintéticos, doutrina de que ele já tratara na Introdução da KrV. O juízo analítico é aquele em que o predicado já está contido no sujeito como identidade ( toda esfera é redonda) e o juízo sintético é o que não tem o predicado identificado com o sujeito, tendo algo além de seu campo para determinar sua necessidade (segundo a KrV, as categorias, na Física). Exemplo de juízos analíticos: “todo corpo é extenso”, “toda esfera é redonda”, “o trilátero tem três lados”, etc. Nesses juízos, o predicado já está contido no sujeito como identidade. Por isso, o predicado nada de diferente acrescenta ao sujeito. É uma simples tautologia. Já no juízo “toda mudança tem uma causa”, o predicado não se identifica com o sujeito, o que implica que o juízo é sintético. O que faz com que o predicado seja necessário ao sujeito não é o princípio de identidade, mas o princípio de causalidade, princípio este já demonstrado como válido, segundo Kant, na “Analítica Transcendental” da KrV. É o que Kant quer dizer ao afirmar:

“Duas conexões unidas necessariamente num conceito devem estar conexas como princípio e consequência, e sem dúvida, de tal modo que ou esta unidade é considerada como analítica (conexão lógica) ou como sintética ( conexão real), aquela segundo a lei da identidade, esta de acordo com a lei da causalidade” (idem, p. 130).

Ora, o que Kant quer detectar é se os juízos da moral, no que diz respeito ao soberano bem, são analíticos, isto é, se a relação entre os conceitos de virtude e felicidade, é analítica ou sintética:

“A conexão da virtude com a felicidade pode, pois, conceber-se de tal modo que ou o esforço por ser virtuoso e a busca da felicidade não são duas ações diferentes, mas ações totalmente idênticas, visto que não é preciso fundar a primeira numa outra máxima diversa da segunda; ou essa conexão é estabelecida de modo que a virtude produz a felicidade como algo distinto da consciência da virtude, tal como a causa produz o efeito” (idem, p. 130).

Kant diz que os juízos (“a virtude é a felicidade” ou “a felicidade é a virtude” ) referentes a esses dois conceitos não são analíticos: isto é, afirmar que a virtude é a felicidade (ou a felicidade é a virtude), não é uma proposição analítica: “Ora, é claro, segundo a Analítica [ da razão prática], que as máximas da virtude e as da própria felicidade, relativamente ao seu princípio prático supremo, são totalmente heterogêneas” ( idem, p. 131).

Quer dizer, em conclusão: o juízo referente a esses conceitos são sintéticos, ou seja, a virtude é diferente da felicidade. Mas que causa faz com que um conceito implique necessariamente o outro? Veremos em seguida que essa causa é Deus.

A virtude se baseia na firme intenção de cumprir a lei moral, sem nenhum interesse ou condição, pelo puro respeito à lei. A felicidade se baseia na satisfação das precisões e essas são diversas, infinitas ( ou indefinidas) e se referem ao mundo da sensibilidade, das inclinações, em que não se pode basear uma proposição moral. A finalidade essencial do homem é a virtude, não necessariamente a felicidade. Se uma se conflitar com a outra, o homem deve optar pela virtude, mesmo ficando infeliz. Eis o grande conflito da razão prática. O finalidade do homem é ser digno da felicidade, não necessariamente ser feliz (pelo menos neste mundo). Mas se o homem pode ser virtuoso mas ao mesmo tempo, infeliz, de que adianta a virtude? Algo está incompleto na vida do homem. Tem a virtude, mas lhe falta a felicidade. Esta pode ser procurada neste mundo, mas nada garante que o homem a conseguirá. Nesta caso, os dois conceitos são incompatíveis? Como será possível uma ligação sintética entre felicidade e virtude e ligação necessária, já que aqui não entra a categoria de causalidade da Física? Eis a antinomia da razão prática. Como é possível resolver essa antinomia? Kant diz que...

“não é impossível que a moralidade da disposição ( Gesinnung) tenha, com a felicidade enquanto efeito no mundo sensível, uma conexão necessária, a título de causa, se não imediata, apesar de tudo mediata ( por intermédio de um autor inteligível da natureza), conexão essa que numa natureza que é simplesmente objeto ( Objekt) dos sentidos, jamais pode ter lugar a não ser acidentalmente e não pode ser suficiente para o soberano bem” (idem, p. 134).

Ora, para se conseguir a conexão necessária entre a virtude e a felicidade, só apelando para Deus. Kant então resolve essa antinomia como resolveu o problema da liberdade: existe um mundo dos sentidos, da necessidade causal, e um mundo inteligível, da liberdade e da felicidade (mundo dos noumenos), embora essas noções de liberdade, mundo inteligível, etc., sejam apenas idéias regulativas da razão.

“A tese que diz ser o desejo de felicidade o móvel das máximas da virtude é absolutamente falsa. Mas a tese que vê na máxima da virtude a causa eficiente da felicidade é falsa apenas condicionalmente. Dizer que a virtude engendra a felicidade só é falso se considerarmos a existência no mundo sensível como a única possível” (Georges Pascal, op. cit., III, p. 141).


Quer dizer, se aceitarmos a existência do mundo dos noumenos, tudo se resolve. Como diz Georges Pascal ( idem, p. 141), não é a virtude que o homem pratica no mundo fenomenal que produz a felicidade, embora essa virtude seja necessária para que o homem seja digno desta, mas uma causa noumenal, que é Deus. Deus não pode ser provado pela razão especulativa, mas pode ser postulado pela razão prática. Ademais, se Deus irá proporcionar a felicidade num outro mundo, no mundo supra-sensível (transcendente), o homem precisa ser imortal. Daí, os postulados da razão prática: imortalidade da alma e Deus. A este, se acrescenta a liberdade, pois a virtude seria impossível sem ela. É que diz Kant, textualmente:

“Estes postulados são os da imortalidade, da liberdade, considerada positivamente ( como causalidade de um ser enquanto ele pertence ao mundo inteligível) e da existência de Deus. O primeiro decorre da condição praticamente necessária da conformidade da duração com a plenitude do cumprimento da lei moral; o segundo promana da disposição necessária da independência relativamente ao mundo sensível e da faculdade da determinação da sua vontade segundo a lei de um mundo inteligível, isto é, da liberdade; o terceiro, da necessidade da condição requerida para um tal mundo inteligível ser o soberano bem, mediante o pressuposto do bem supremo independente, isto é, da existência de Deus” (KpV – Dialética..., VI – Sobre os postulados da razão pura prática em geral, p. 151).


Somente uma vontade santa tem a perfeição completa da conformidade das intenções com a lei. No homem, isto não existe, ele não é capaz de alcançar esta perfeição no mundo sensível. Mas deve lutar para alcançar essa perfeição. O homem pode ao menos admitir uma capacidade infindável de buscar essa perfeição, num progresso infinito (cf. KpV – Dialética, IV, p. 141) .

“Este progresso infinito, porém, só é possível sob o pressuposto de uma existência e de uma personalidade indefinidamente persistentes do mesmo ser racional ( a que se dá o nome de imortalidade da alma). Portanto, o soberano bem, praticamente, só é possível sob o pressuposto da imortalidade da alma; por conseguinte, esta, enquanto indissoluvelmente ligada à lei moral, é um postulado da razão pura prática ( KpV – Dialética... IV – A imortalidade da alma como um postulado da razão pura prática, p. 141).


Este é um postulado necessário mas não suficiente para proporcionar a felicidade . Precisamos de um outro postulado, que é o da existência de Deus :

“Quer dizer: a felicidade supõe o acordo entre a ordem da natureza, os desejos do homem e a lei moral. Mas o homem não é autor da natureza, pelo que não é possível fazer, com seus próprios recursos, com que esta natureza se harmonize com seus desejos quando ele obedece a lei moral, Mas como essa harmonia é necessária ao bem supremo, forçoso nos é conceber uma causa supra-sensível que haja criado a natureza de forma a possibilitar um acordo entre ele e a lei moral, ou antes, a representação desta lei pelo homem como princípio determinante de sua vontade. O autor do mundo de-/verá ser, pois, ao mesmo tempo, inteligência e vontade, ou seja, Deus” (Georges Pascal, op. cit., III, pp. 142-143).


O terceiro postulado é o da Liberdade ( que já está pressuposto nos outros), do qual já tratamos anteriormente.

O postulado da existência de Deus liga o homem à religião. Evidentemente que o conceito de Deus, Imortalidade e Liberdade são apenas idéias da razão, regulativas, que, para a razão teorética, funcionam apenas como hipóteses. E Deus não é causa da lei moral, pois se fosse assim o homem não seria livre e cairíamos na heteronomia. Deus não seria causa antecedente, mas consequente, da lei moral; não seria um a priori, mas um a posteriori da referida lei.

“Deste modo a lei moral conduz, através do conceito de soberano bem enquanto objeto ( objekt) e fim derradeiro da razão prática, à religião, isto é, ao conhecimento de todos os deveres como mandamentos divinos, não como sanções, isto é, ordens arbitrárias e por si contingentes de uma vontade estranha, mas como leis essenciais de toda vontade livre por si mesma, as quais, no entanto, devem ser consideradas como mandamentos do Ser supremo, porque de uma vontade moralmente perfeita (santa e boa), ao mesmo tempo também todo poderosa, apenas podemos esperar o soberano bem que a lei moral nos faz um dever propor como objeto do nosso esforço e, por conseguinte, aí chegar pela consonância com esta vontade” ( KpV – Dialética...V – A existência de Deus..., p. 148). “Eis porque [ por que] a moral não é propriamente a doutrina sobre como nos tornarmos felizes, mas como devemos tornar-nos dignos da felicidade. Só quando a religião se acrescenta é que também surge a esperança de um dia participarmos da felicidade na medida em que tivemos o cuidado de dela não sermos indignos” ( idem, p. 149).


Sobre a solução religiosa, Kant escreveu a “Religião dentro dos limites da mera razão”; e sobre à passagem (Übergang) da natureza à liberdade, da razão teórica para a razão prática, visando eliminar o abismo entre uma e outra, ele escreveu a Crítica do Juízo, sobre as quais diremos algumas palavras mais adiante.

A conclusão geral da filosofia de Kant, pelo menos em sua intenção, é a superioridade de razão pura prática sobre a razão pura teórica, da moral sobre o conhecimento. No Prefácio da 2ª edição da Crítica da razão pura, ele diz: “Tive, portanto, de suprimir o saber para obter lugar para a fé” ( crença moral, religiosa ou humanista). Quer dizer, os valores superiores do homem não são os conhecimentos ( as ciências), mas o valor moral, a beleza, a fé, que estão no âmbito da razão prática .

Não é por acaso que Kant termina a KpV com estas famosas palavras: “Duas coisas enchem o ânimo [ a alma] de admiração e veneração sempre novas e crescentes, quanto mais frequentemente e com maior assiduidade delas se ocupa a reflexão: O céu estrelado sobre mim e a lei moral em mim” ( KpV – Conclusão, p. 183). Quer dizer, a moralidade existente internamente na minha alma e externamente a maravilha da natureza.

Segunda Parte
Da Crítica da Razão Prática

METODOLOGIA DA RAZÃO PURA PRÁTICA


Kant entende por metodologia da razão pura prática...

“a ciência de um método, isto é, de um procedimento segundo princípios da razão, por meio dos quais apenas o diverso de um conhecimento pode tornar-se um sistema. Por esta metodologia, pelo contrário, entende-se o modo como, às leis da razão pura prática, se fornece acesso à alma ( Gemüt) humana, influência sobre suas máximas, isto é, como se poderia fazer também subjetivamente prática a razão objetivamente prática” (KpV – Metodologia..., p. 171).

Quer dizer, Kant propõe uma formação e fortalecimento do ânimo moral, dirigidos à prática da lei moral. Importa fornecer à alma um puro princípio de determinação que forme um caráter que pense praticamente segundo máximas imutáveis e ensine o homem a sua própria dignidade, para o livrar do apego ao sensível e encontrar a independência da sua natureza livre e inteligível.

Kant encerra a “Crítica da razão prática”, com essas palavras, que significam uma transição para sua obra “Metafísica dos costumes”:

“Quis aqui indicar simplesmente as máximas mais gerais da metodologia de uma cultura [Bildung = formação, educação] e de um exercício morais. Visto que a multiplicidade dos deveres exigia para / cada espécie dos mesmos ainda determinações especiais, e isso constituiria um assunto muito extenso, desculpar-se-me-á se eu, num escrito como este, que é apenas um exercício preliminar, me atenho a estas linhas fundamentais” (idem, pp. 181-182).

Quer dizer, se na KpV Kant se atém apenas às linhas fundamentais ou máximas gerais da Moral, numa outra obra ele procura detalhar os diversos deveres particulares. Esta obra é a Metafísica dos Costumes ( Die Metaphysik der Sitten).


A METAFÍSICA DOS COSTUMES

A Metafísica dos Costumes ( Die Metaphysik der Sitten – MS) é o estudo do deveres particulares, que Kant chama de casuística. Por casuística entenda-se a “aplicação das regras éticas às circunstâncias particulares, o questionamento e investigação dos problemas que abarcam particularidades resultantes de dita aplicação” ( Edson Bini, em sua tradução da Metafísica dos Costumes, p. 27, EDIPRO, Bauru, São Paulo, 2003) .

“A Metafísica dos costumes completa a Crítica da razão prática assim como a Metafísica da natureza deveria completar a Crítica da razão pura. A Crítica estuda o fundamento da legislação, quer natural ou moral; a Metafísica estuda a aplicação dessa legislação à experiência. Trata-se aqui de aplicar à realidade concreta dos costumes os princípios a priori, apurados na análise da lei moral. Esse trabalho é preparado por um breve capítulo apenso à Crítica da razão prática, sob o título de Metodologia da razão pura prática”. (Georges Pascal, op. cit., III, p. 145).


A Metafísica dos Costumes (MS) se divide em duas partes, publicadas, no início, separadamente: Princípios metafísicos da doutrina do direito , publicado talvez em janeiro de 1797, e Princípios metafísicos da doutrina da virtude, publicado em agosto do mesmo ano. A Introdução da MS trata dos conceitos de dever, virtude, auto-aperfeiçoamento e felicidade dos outros e faz diferença entre deveres latos e restritos. A Doutrina de Virtude trata da virtude para consigo mesmo e para com os outros. Esta parte é mais um catecismo do que uma teoria e por isso Nicola Abbagnano a considera com razão de “pouco interesse” ( Hist. da Filosofia, vol. VIII, p. 163), motivo pelo qual não trataremos dela em nosso escrito. Vamos nos limitar à doutrina do direito.

É necessário estudarmos a doutrina do direito de Kant por que ela nos fornece a sua teoria do Estado. E a construção de uma sociedade política justa e universal é condição indispensável para a realização da sociedade ética perfeita, que é o reino dos fins, o objetivo final do ser humano.

Vimos anteriormente, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (GMS), como na Crítica da Razão Prática (KpV) que Kant faz diferença entre ação praticada de acordo (de conformidade) com a lei e ação praticada por respeito à lei. Os móveis desses dois tipos de ação são diferentes: enquanto a ação por respeito à lei exige um móvel interno – a intenção – e é livre, a ação de conformidade com a lei exige um móvel externo, e não é livre, fundamentando-se na coerção exterior. A ação por respeito à lei faz parte do campo da moralidade, e a ação de conformidade com a lei está no campo da legalidade, isto é, do direito. Para o direito não importa que a ação tenha sido praticada por amor ou por temor à lei, contanto que seja praticada. Uma ação moral não é, em princípio, incompatível com uma ação legal, pois ela pode ser ao mesmo tempo moral e legal. Mas somente num mundo ideal, isto é, numa comunidade ética a moralidade se identificaria com a legalidade. Hoje, na realidade prática, do dia a dia, fica muito difícil detectar quando é que uma ação é ou não é realmente ( puramente) moral. Por isso, o direito exige somente a conformidade com a lei, ficando de fora a questão da intenção.

Pois bem, a doutrina do direito de Kant é tratada na primeira parte da Metafísica dos Costumes e se denomina, como se viu, “Princípios metafísicos da doutrina do direito”.

O problema que se apresenta ao direito é este:

“Como um ser autoconsciente e apesar disto um objeto particular no mundo, o problema da vida do homem é estabelecer a si próprio com relação a outros sujeitos, que, à semelhança dele, são também objetos particulares. A lei se torna, assim, uma determinação corretiva dos direitos e deveres, e o problema da jurisprudência é o de ‘manter as criaturas autoconscientes de suas ações a fim de não colidirem entre si’, colisão essa que só é evitável na medida em que suas ações se deixem pautar por regras que possam ser universalizadas” (Arch. B. D. Alexander, M., D.D. – A Filosofia Crítica de Kant, cap. II, pp. 76-77, Edições de Ouro, Rio de Janeiro, 1968).


Quer dizer, o homem deve lutar por realizações de fins racionais, isto é, universalizáveis, pois só o que é racional pode evitar o conflito de ações, estabelecendo a harmonia do todo e a paz. Mesmo que as ações pautada pelo direito sejam de natureza coercitiva, elas deve ser racionais, o que quer dizer, universalizáveis. Só assim o homem poderá alcançar o soberano bem político ( liberdade e paz) e o soberano bem moral ( comunidade ética).

O direito, pois, trata das relações externas entre os homens, impondo leis que possam se universalizar.

Kant diz que “O direito é, portanto, a soma das condições sob as quais a escolha de alguém pode ser unida à escolha de outrem de acordo com uma lei universal de liberdade.” (MS – Introdução à doutrina do direito, p. 76, trad. de Edson Bini, EDIPRO, Bauru, São Paulo, 2003) .

O direito se divide em inato e adquirido. O único direto inato, e que não depende de nenhum ato jurídico, é a Liberdade, tanto a minha como a de todos os homens. O direito adquirido, que depende de ato jurídico, divide-se em privado e público. Ao direito público, liga-se o direito cosmopolita.

O direito privado define a legitimidade e os limites das posse das coisas exteriores, da relação entre pessoas no que diz respeito a casamento, contratos, etc. O direito público se divide em direito dos Estados, das Nações ( gentes) e dos Cidadãos do mundo ( direito cosmopolita) e trata da vida social dos indivíduos numa comunidade juridicamente ordenada. Esta comunidade é o Estado. Estado ou Constituição Civil é o conjunto de todos os atos jurídicos.

“O conjunto das leis que necessitam ser promulgadas, em geral a fim de criar uma condição jurídica, é o direito público. O direito público é, portanto, um sistema de leis para um povo, isto é, uma multidão de seres humanos, ou para uma multidão de povos que, porque se afetam entre si, precisam de uma condição jurídica sob uma vontade que os una, uma constituição ( constitutivo), de sorte que possa fruir o que é formulado como direito. Essa condição dos indivíduos no seio de um povo na sua relação recíproca é chamada de condição civil ( status civilis), e o conjunto dos indivíduos numa condição jurídica, em relação aos seus próprios membros, é chamada de Estado ( civitas).”( MS – Parte II – Direito Público, p. 153).


Para explicar a origem do Estado, Kant estuda as teorias contratualistas de seu tempo e as reformula, considerando o contrato social não um fato real, mas uma idéia da razão. Diremos algumas palavras sobre essas teorias.

Para John Locke , o estado de natureza, anterior ao nascimento do Estado, é um estado de paz, liberdade e racionalidade. Apenas é frágil para defender a propriedade e por isso os homens livremente instituíram um pacto social, onde limitaram suas liberdades, mas adquiriram o direito de apelar em caso de sofrerem injustiças. O direito de rebelião era preservado, caso o governante traísse o pacto social e se tornasse injusto e opressor, podendo tanto os governos como os Estados serem dissolvidos. Locke acreditava na existência histórica do estado de natureza, pois chega a citar os índios das Américas como um exemplo disso.

Para Jean-Jacques Rousseau o homem é bom por natureza e o contrato social não é a alienação total dos direitos, mas apenas sua limitação. Já Spinoza diz que o homem não é bom por natureza e, depois do pacto social, deve permanecer nele guiado pelos mesmos motivos egoístas que o levaram a se juntar – conservar e/ou ampliar seus interesses pessoais. A comunidade é apenas a união para se obter mais força, já que o homem isolado é fraco, sendo que tal força deve servir para a defesa e a realização do homem como indivíduo. De modo algum Spinoza aceita a destruição do indivíduo em favor do poder absoluto da coletividade.

E Hobbes diz que o homem é mau por natureza e o pacto é para controlar sua rebeldia, seu egoísmo, sendo total a alienação de seus direitos. O Estado é um monstro, um “Leviatã”, pode tudo e o governante é absoluto. Não haverá direito de rebelião – salvo quando o governante for tão fraco que não possa proteger seus súditos, quer dizer, governo fraco não é governo ( segundo Bertrand Russell, isso justifica o fato de Hobbes ter abandonado seu rei, Carlos I, quando caiu em desgraça, ao combater Cromwell). Bertrand Russell (cf. sua “História da Filosofia Ocidental”) diz que o contrato social é algo que nunca existiu, não existe e provavelmente nunca existirá, mas do qual precisamos tomar conhecimento para entendermos bem o atual estado de coisas das sociedades.

Kant, como se disse, considerou o pacto civil apenas uma idéia regulativa da razão.

Kant diz “que o estado de natureza não necessita, simplesmente por ser natural, de ser um estado de injustiça” ( MS – Parte II, Direito Público, p. 154), mas esta pode vir a ocorrer. Por isso, o pacto é necessário como um passo adiante (em relação ao estado de natureza) no rumo da socialização (politização) do indivíduo. Como o pacto civil constitui o Estado e a Sociedade, não há distinção entre um e outra. Os homens trazem em si por natureza, um antagonismo, que os fazem disputar e por isso precisam de um Estado, para controlar sua socialidade insociável e colocar o homem no rumo de um reino da moralidade (Reino de Deus). O pacto é para evitar uma possível injustiça. E injustiça é impedir a efetivação da liberdade dos outros. Por isso, a coerção se justifica como meio para retirar os obstáculos que impedem a realização da Liberdade. Direito implica coerção. Direito é a garantia da liberdade de cada um na condição de sua concordância com a liberdade de todos. O fim do Direito é garantir a liberdade de cada um e a regulação da forma das relações entre os homens, e não o fim a que cada homem põe a si mesmo. Só existe Direito se valer para todos. Daí o Direito implicar na liberdade, igualdade ( universalidade) e co-legislação ( cada homem é um legislador).

O pacto originário, que forma o Estado, segundo Kant, é indissolúvel e não haverá direito de rebelião. A autoridade suprema do Estado é intocável, o que significa que Kant rejeita a congestão, optando por um sistema de representação, em que o cidadão comum só tem o direito de votar.

O pacto é sagrado e mesmo uma sociedade que se dissolvesse por motivos naturais, tudo que foi acordado nesse pacto teria que ser cumprido antes da dissolução. Por exemplo, ele imagina um povo de uma ilha, que tenha de abandoná-la e assim, dissolver a sociedade. Os presos por ventura existentes na ilha teriam que ser executados. Por quê? Kant explica que nenhum ser humano deve ser tomado como meio, e sim como fim. Portanto, quando alguém viola a lei deve ser castigado não para servir de exemplo a outros futuros deliquentes ( pois isso seria tomar o criminoso como meio), mas por respeito à lei ( cf. loc. cit., pp. 161, 176 e segs). Logo, antes de se abandonar a ilha , os presos teriam que ser executados para se evitar um desrespeito à lei, pois uma vez perdida a obediência à lei a sociedade estaria perdida. Podemos supor que a execução se daria porque, sendo proibido libertar os presos, estes certamente morreriam de fome, o que seria uma morte hedionda, com muito sofrimento. Mas na verdade, a execução pura e simples não seria um ato de humanidade, pois em Kant isso não existe, quando se trata de obedecer à lei. Seria apenas uma solução eficaz e definitiva, pois abandonar os presos seria correr o risco de vir alguém depois e libertá-los, provocando uma impunidade, uma violação da lei. Pelo menos é o que se deduz (Q. E. D.) .

Como é proibido o direito de rebelião, Kant “condena as revoluções inglesas e francesas que processaram e executaram os seus soberanos” ( Nicola Abbagnano – História da Filosofia, vol. VIII, 527, p. 165, Editorial Presença, Lisboa, 1970). A condenação à Revolução Francesa e, paradoxalmente, o apoio de Kant a ela, constitui uma posição ambígua do nosso filósofo de Königsberg . No escrito “O Conflito das Faculdades”, no final de uma longa nota do artigo Questão renovada: estará o gênero humano em constante progresso para melhor? ( Edições 70, p. 104, ed. citada), Kant diz que toda revolução “é sempre injusta”.

Kant aceita de Montesquieu a divisão do poder do Estado em executivo, legislativo e Judiciário, que representam a sua vontade geral. A esse três poderes correspondem três princípios que guiam os cidadãos: liberdade, igualdade independência. A liberdade é a capacidade do indivíduo, pelo seu arbítrio, buscar sua felicidade, pelo caminho que escolher, desde que não prejudique a liberdade dos outros também procurarem a sua felicidade. A igualdade significa que todos são iguais perante à lei, salvo o soberano, que não é membro do Estado, pois é quem o cria e o conserva. E a independência, pela qual o indivíduo participa do poder legislativo, mesmo que seja apenas como eleitor. Qualquer um pode participar desse poder de votar, desde que seja cidadão e possua uma propriedade qualquer. Mulheres e crianças estão fora dessa prerrogativa dos cidadãos.

A Seção II do Direito Público trata “Direito das Gentes”, isto é, das Nações. A meta final do direito das nações é a obtenção da segurança e da paz. Kant assim expões os elementos desse direito:

“Os elementos do direito das gentes são os seguintes: 1. Estados considerados na sua relação entre si, estão ( como selvagem sem lei) por natureza numa condição não-jurídica. 2. Esta condição não-jurídica é uma condição de guerra ( do direito do mais forte), mesmo que não seja uma condição de guerra real e ataques reais constantemente realizados ( hostilidades). Embora nenhum estado seja prejudicado por outro nessa condição (na medida em que nenhum dos dois deseja qualquer outra / coisa melhor), ainda assim esta condição é em si mesma de qualquer modo danosa no mais alto grau e Estados que são vizinhos estão obrigados a abandoná-la. 3. Uma liga de nações de acordo com a idéia de um contrato social original é necessária, não para que haja intromissão mútua nos desentendimentos intestinos de cada nação, mas para proteção contra ataques externos. 4. Esta aliança deve, entretanto, não envolver nenhuma autoridade soberana ( como numa constituição civil), porém somente uma associação ( federação); tem que ser uma aliança que possa ser dissolvida a qualquer momento e, assim, precisa ser renovada de tempos em tempos. Trata-se de um direito in subsidium de um outro direito original, a fim de evitar o envolvimento num estado de guerra real entre os outros membros ( foedus Amphictyonum)” ( pp. 186-187).


Na última seção (III) do Direito Público, Kant trata do direito Cosmopolita.

Kant afirma que essa “idéia racional de uma comunidade universal pacífica, ainda que não amigável, de todas as nações da Terra que possam entreter relações que as afetam mutuamente, não é um princípio filantrópico ( ético)[ethisch], mas um princípio jurídico” (MS – Parte II – Direito Público, p. 194).(cf. ed. alemã, Vol. IV, p. 475).

Os Estados estão entre si em estado de guerra, tal como em Hobbes os indivíduos encontravam-se em guerra entre si, no estado de natureza. Mas esse antagonismo entre Estados, impulsionado pela natureza, leva ao reino da razão, onde, após muito sofrimentos, os homens acabam por reconhecer que a paz é melhor do que a guerra. Daí a exigência moral de uma paz perpétua entre os Estados, almejada pela razão (prática). A paz é o mais elevado bem político e o propósito final do direito, dentro dos limites da razão .

“Ora, a razão moralmente prática pronuncia em nós o seu veto irresistível: não deve haver guerra alguma, nem guerra entre tu e eu no estado de natureza, nem guerra entre nós como Estados, os quais, ainda que internamente numa condição legal, persistem externamente ( na sua relação recíproca ) numa condição ilegal, pois a guerra não constitui o modo no qual todos deveriam buscar sus direitos. Assim, a questão não é mais se a paz perpétua é algo real ou uma ficção, e se não estamos enganando a nós mesmos em nosso julgamento teórico quando supomos que é real. Ao contrário, temos que agir como se fosse algo real, a despeito de talvez não o ser; temos que trabalhar no sentido de estabelecer a paz perpétua e o tipo de constituição que nos pareça a que mais abra caminho para ela ( digamos, um republicanismo de todos os Estados, conjunta e separadamente), a fim de instaurar a paz perpétua e colocar um fim à infame ação bélica” (ibidem, p. 196).


O homem possui uma finalidade dupla: aqui na terra, lutar por uma sociedade racional, por uma constituição (internacional) política perfeita, onde sejam asseguradas a paz e a liberdade; e, no plano celestial, postular uma vida eterna. No meio desses dois reinos, está a sociedade ética, passo final da vida humana na terra e passo inicial para a vida humana num mundo transcendente ou “sobrenatural”. Sobre a Religião, que é uma religião moral e que trata do problema da perfeição moral e da vida eterna, diremos algumas palavras mais adiante. E sobre a vida aqui na terra, a luta pela liberdade e por uma paz universais, vamos expor os mandamentos que Kant escreve em seu opúsculo da Paz Perpétua.

A PAZ PERPÉTUA

Kant escreveu dois tipos de artigos sobre a paz perpétua, um sobre os artigos preliminares da paz e o outro sobre os artigos definitivos dessa paz. A posteriori, foram acrescentados dois suplementos e dois apêndices. O título é À paz perpétua – um projeto filosófico de Immaneul Kant .

A seguir, transcrevemos os artigos da paz perpétua ( traduzido do francês, da edição de J. Vrin, citada na Bibliografia, no final deste escrito) para ilustrar com mais detalhes a moral política de Kant:

Artigos Preliminares:

1º - Nenhum tratado de paz deve [ soll] valer como tal se for concluído reservando tacitamente assunto para uma guerra futura.

2º - Nenhum Estado independente ( pequeno ou grande, não importa aqui) pode ser adquirido por outro Estado, por via de herança, de troca, de compra ou de doação.

3º - As forças armada permanentes ( miles perpetuus) devem ser inteiramente suprimidos com o tempo.

4º - Não se devem contrair dívidas públicas com vistas a conflitos exteriores do Estado.

5º - Nenhum Estado deve imiscuir-se pela força na constituição e governo de outro Estado.

6º - Quando em guerra com outro, nenhum Estado deve permitir-se hostilidades tais que, com a restauração da paz, tornem impossível a confiança recíproca, como por exemplo: a utilização de assassinos (percussores), de envenenadores ( venefici), a violação de uma capitulação, a maquinação de traição ( perduellio) no Estado com o qual está em guerra, etc...


Artigos Definitivos:

1º - A constituição civil de cada Estado dever ser republicana.

2º - O direito das nações [ gens](Völkerrecht) deve ser fundado numa federação de Estados livres.

3º - O direito cosmopolita deve se limitar às condições de hospitalidade universal .


“Para Kant – diz Miguel Duclós – o fim último da humanidade é alcançar a constituição política perfeita”. E esta visa a paz. Mas em que consiste a paz, segundo Kant? O direito à paz é:

“1. O direito de estar em paz quando acontece uma guerra nas vizinhanças ou o direito à neutralidade; 2. O direito de ser assegurado quanto à continuidade de uma paz que fora concluída, ou / seja, o direito de uma garantia. 3. O direito a uma aliança ( confederação) de vários Estados para sua defesa comum contra quaisquer agressões externas ou internas, porém não uma liga objetivando o ataque a outros estados e a anexação de território” ( MS – Direito Público, Seção II, pp. 191-192).

Os artigos preliminares e definitivos do Escrito de Kant objetivam alcançar essa paz e a liberdade, que são o supremo bem político. Sem a conquista desse supremo bem político não será possível alcançar a sociedade ética ou reino dos fins. Os artigos preliminares são de natureza puramente negativa e tem por objetivo ditar o que os Estados não podem fazer em suas relações entre si. Os artigos definitivos visam prescrever o que eles devem fazer.

Os Estados vivem em estado de natureza entre si, tal como os indivíduos em Hobbes, como lobos que procuram se devorar. Por isso, precisam fazer tratados entre si para cada um ficar seguro de seus direitos:

“Povos, como Estados, podem ser julgados como homens individuais, que em seu estado de natureza (isto é, na independência de leis exteriores) já se lesam por seu estar-ao-lado-do-outro e do qual cada um, em vista de sua segurança, pode e deve exigir do outro entrar com ele em uma constituição similar à civil, em que cada um pode ficar seguro de seu direito. Isto seria uma liga dos povos...” ( À paz perpétua, trad. A. Zingano, p. 38, São Pasulo, L&PM, 1989).

Quer dizer, um Estado não está acima de outro, mas ao lado. Portanto, não possui nenhum direito sobre o outro. A Federação dos Estados não deve visar, como fim último, a supremacia de um ou alguns sobre os outros . Ademais, a liga dos povos não objetivam apenas acabar com uma guerra (pois isso seria papel de um tratado de paz), mas com todas as guerras (paz perpétua) – porque assim o exige a racionalidade, a moral. Quer dizer, a natureza, como uma grande artista, estimula a discórdia entre os povos para que eles, no exercício dessas desavenças, descubram, pela razão, o valor da paz (cf. “Primeiro suplemento da garantia da paz perpétua”, op. cit., p. 46).

Kant coloca a realização moral do homem acima da prática política, sendo esta um meio para se conseguir aquela. Por isso, no primeiro “Apêndice” à Paz Perpétua, contra quem contrapõe uma à outra, diz:

“A moral é já em si mesma uma prática no significado objetivo, como conjunto de leis que ordenam incondicionalmente, segundo as quais devemos agir, e é um evidente absurdo, depois de se ter concedido a esse conceito de dever sua autoridade, ainda querer dizer que, porém, não se pode [ lembremos da frase de Kant: “se devo, posso”]. Pois então este conceito suprime-se por si da moral ( ultra posse nemo obligatur); por conseguinte não pode haver nenhum conflito da política, como doutrina executiva do direito como [sic!] a moral como tal” (trad. Zingano, “Sobre o desacordo entre a moral e a política a propósito da paz perpétua”, op. cit., p. 59).

A política diz: “sede astutos como as serpentes”, mas a moral acrescenta como condição limitante: “e sem a falsidade como as pombas”. Com isso, a política não é um fim em si mesmo e Kant afirma que “A divindade tutelar da moral não cede a Júpiter ( a divindade tutelar do poder)” (idem, p. 60). A moral, pois, limita a política porque é a luz que ilumina o caminho para o homem conseguir o seu fim último.

Finalmente, para concluir, lembramos que os artigos da obra de Kant certamente influenciaram na criação da Liga das Nações e, depois, da ONU, e devem ter fortalecido a idéia de um direito internacional, tanto privado como público.


A CRÍTICA DA FACULDADE DO JUÍZO

Aqui, é necessário dizermos algumas palavras sobre a “Crítica da faculdade do Juízo” porque nesta obra Kant tenta superar o abismo existente entre o mundo teórico da “Crítica da Razão Pura” e o mundo moral da “Crítica da Razão Prática”. E, no final desta “Crítica”, ele encontra uma passagem para a Religião.

A Crítica da faculdade do Juízo (Kritik der Urteilskraft – KU – publicada em 1790 ( 2ª ed. 1793) tenta superar o abismo existente entre a razão teórica e a razão prática, ou melhor, entre o mundo da natureza, regido por leis necessárias (mecânicas) do Entendimento sobre a sensibilidade, - e o mundo da moral, o mundo da liberdade, o mundo inteligível, o mundo da coisa-em-si (noúmeno), o mundo onde impera uma teleologia, o mundo supra-sensível. Procura uma passagem entre um mundo e o outro.

A KU teve uma primitiva Introdução, que não foi publicada com ela, devido à sua vasta extensão. Mas, posteriormente, essa Introdução foi “ressuscitada” e publicada tanto junto com a KU, como separadamente .

Como vimos no Capítulo 1, Kant dividiu o mundo em duas esferas: o mundo cognoscível cientificamente, que é o mundo dos fenômenos (objetos dos sentidos), e o mundo inteligível, supra-sensível. Existe, pelo menos aparentemente, um abismo entre esses dois mundos, que Kant não resolveu nas Críticas anteriores ( KrV e KpV), mas que pretende resolver agora, na Crítica da faculdade do juízo ( KU). Existe uma maneira da transpor esse abismo? Existe uma passagem ou ligação entre um mundo e outro? Já sabemos que na esfera da intuição, da sensibilidade, existe um caos e somente as categorias podem lhe dar unidade. Mas se o mundo inteligível é fundamento do mundo sensível, deve haver alguma ligação entre eles que, mesmo que não possa ser conhecida pela razão teórica, pode ser vasculhada e captada pela faculdade do juízo. Essa faculdade deve sondar o caos das intuições para ver se encontra indícios desse mundo noumênico, inteligível, que está por baixo dos fenômenos. As questões que se propõem são: como são possíveis juízos estéticos com valor universal? Que sinais existem que possam revelar esse mundo supra-sensível?

Existem dois indícios desse mundo oculto no mundo que nos aparece: a beleza e a ordem da natureza.

Kant diz que o ser humano tem três faculdades: a cognitiva – já tratada na KrV - a do sentimento ( prazer e desprazer) e a apetitiva. Esta última se divide, em sua parte inferior, em faculdade do desejo e, na sua parte superior, em faculdade da vontade. A faculdade do desejo se refere às inclinações, e a faculdade da vontade se refere às leis morais, já estudadas na GMS, na KpV e na MS. A parte cognitiva já foi vista na KrV. Resta, pois, a faculdade do sentimento, que é estudada na Crítica da faculdade do Juízo (KU).

A faculdade do juízo visa subsumir um particular sob um universal, captando um detalhe no singular como exemplo real de um conceito universal. Quer dizer, se um conceito (universal) se constrói a partir de intuições singulares, então deve existir nestas um sinal sustentador e revelador desse universal. A função do juízo, nessa perspectiva, é captar a inteligibilidade nesse particular. Existem, então, dois tipos de juízos: o juízo determinante ( constitutivo), já estudado na KrV em que o universal já é dado ( pelas categorias) e o juízo reflexivo ( reflexionante) , em que o universal não é dado, mas procurado a partir do particular. É desse juízo que Kant trata na Crítica da faculdade do Juízo. É o que diz Kant textualmente:

“A faculdade do juízo em geral é a faculdade de pensar o particular como contido no universal. No caso de este ( a regra, o princípio, a lei) ser dado, a faculdade do juízo, que nele subsume o particular, é determinante ( o mesmo acontece se ela, enquanto faculdade de juízo transcendental, indica a priori as condições de acordo com as quais apenas naquele universal é possível subsumir). Porém, se só o particular for dado, para o qual ele deve encontrar o universal, então a faculdade do juízo é simplesmente reflexiva” (KU – p. 23/XXV-XXVI) .


Se nos juízos determinantes, o universal já é dado, e no juízo reflexivo, ele não é dado, o problema agora é procurar em que universal este particular (o fato empírico) deve se encaixar, se subsumir. O problema aqui é procurar na realidade (particularizada) um parentesco entre as coisas, um significado, um objetivo, uma finalidade, mesmo que isso permaneça sempre no campo da subjetividade (ou inter-subjetividade). O juízo reflexivo é o que encontra uma finalidade na natureza ou pelo menos pensa que ela tem uma finalidade . Quer dizer, pensa em função de um sistema, ou seja, a finalidade deve estar contida na totalidade de um sistema, que abrange a parte mecânica e a parte inteligível, mesmo que a idéia de sistema seja apenas uma Idéia orientativa ou regulativa da razão.

“O princípio próprio do juízo é, pois: A natureza especifica suas leis universais em empíricas, em conformidade com a forma de um sistema lógico, em função do juízo. E aqui se origina o conceito de uma finalidade da natureza, e aliás como um conceito próprio do juízo reflexionante, não da razão, na medida em que o fim não é posto no objeto, mas exclusivamente no sujeito, e aliás em sua mera faculdade de refletir” ( Primeira Introdução, p. 273, in “Os Pensadores”, São Paulo, Abril Cultural, 1974).

Quer dizer, o juízo reflexionante não se fundamenta no objeto (como ocorre na KrV), apenas reflete sobre ele. É apenas um prerrogativa do sujeito humano de contemplar reflexivamente as coisas .

As duas maneiras de encontrar finalidade na natureza é a contemplação da beleza e a reflexão sobre a ordem da natureza. Disto resultam as duas partes da KU: a crítica do juízo estético e a crítica do juízo teleológico. Em ambos os juízos existe a finalidade.

O juízo estético é apreensão da conformidade da natureza com a liberdade. Disto resulta o prazer do belo. O juízo do gosto refere-se apenas à relação das faculdades entre si ( faculdade do conhecimento e faculdade do sentimento). E o órgão de julgar os objetos dos sentimento é o gosto, mediante o prazer ou desprazer. O objeto do prazer desse sentimento é o belo. “O juízo de gosto é meramente contemplativo, isto é, só considera sua natureza em comparação com o sentimento de prazer e desprazer” (KU – p. 54/14) . O prazer do belo não deve ser confundido com o agradável, pois este se refere apenas aos sentidos, nem deve ser confundido com aquilo que é bom (moral). O agradável é aquilo que deleita, o belo o que apraz e o bom, o que é estimado, aprovado (cf.KU – p. 54/15).

Para Kant, a beleza é a forma da finalidade de um objeto e tem essas características:

- o belo é objeto de um prazer desinteressado e, portanto, livre. Não requer nenhuma interesse nem dos sentidos nem da razão. Todo interesse pressupõe a necessidade ou a produz, o que não ocorre com o juízo sobre o belo (Cf. KU – p. 55/15); (o conceito do belo é a “conformidade a fins subjetiva formal” – KU – p. 204/270 et passim).
- o belo é aquilo que agrada universalmente, sem conceito, pois este já é dado, definitivo, fixo, constituído pelas leis mecânicas da razão teórica (categorias). Se é assim, como o belo pode ser universal, se não tem conceito? Um juízo do belo não pode ser como uma impressão agradável do tipo “isto me parece doce”, pois dizer “isto me parece belo” é puramente subjetivo, mas não intersubjetivo. O juízo do belo quer algo mais, quer comunicar-se com outros gostos. Quer dizer, o belo não é o gosto dos sentidos (embora não possa dispensar os sentidos), mas o gosto da reflexão sobre os sentidos. O juízo do belo quer uma validade comum, embora não seja uma validade objetiva, mas apenas subjetiva (que pode se transformar em intersubjetiva), referente apenas ao sujeito (ou aos sujeitos que julgam) .

Aqui, podemos introduzir o conceito de gênio: “Para o ajuizamento de objetos belos enquanto tais requer-se gosto, mas para a própria arte, isto é, para a produção de tais objetos, requer-se gênio” (KU – 156/187). O gênio é um talento natural, pois não existem regras para se fabricar gênio; ao contrário, o gênio fornece regra à arte : “Gênio é a inata disposição de ânimo ( ingenium) pela qual a natureza dá a regra à arte” (KU – 153/181). O Gênio precisa ter, acima de tudo, originalidade. Portanto, não cria mediante regras preconcebidas, mas faz a própria regra no ato de produzir, isto é, as regras são abstraída do próprio ato de produzir. A partir daí, das regras ou modelo do gênio, surgem as escolas, que não são imitações no sentido de macaquice, mas modelos, cujas próprias regras podem ser obedecidas e até desviadas (por outros gênios).

Kant então faz distinção entre a beleza da natureza e a beleza da arte: “... é necessário determinar com exatidão a distinção entre a beleza da natureza, cujo ajuizamento requer somente o gosto, e a beleza da arte, cuja possibilidade ( que também ter que ser considerada no ajuizamento de um objeto) requer o gênio” (KU – pp. 156-157/188). E explica que a beleza da natureza é uma coisa bela e a beleza da arte é uma representação bela de uma coisa. Neste caso, podemos perguntar: se para ajuizar a beleza não basta o gosto, mas preciso do gênio, como colocar o senso comum como faculdade de ajuizamento do gosto? Ora, para Kant, o senso comum nada tem a ver com o senso vulgar, mas é a capacidade de se comunicar a beleza a outros homens. Estes trechos é esclarecedor do caso:

“... digo que o gosto com maior direito que o são-entendimento pode ser chamado de sensus communis; e que a faculdade de juízo estética, antes que a intelectual, pode ser o nome de um sentido comunitário, se quiser empregar o termo ‘sentido’ como um efeito da simples reflexão sobre o ânimo, pois então se entende por sentido o sentimento de prazer. Poder-se-ia até definir o gosto pela faculdade de ajuizamento daquilo que torna o nosso sentimento universalmente comunicável em uma representação dada, sem mediação de um conceito” (KU – p 142/160; cf. p. 139-140/157).

É verdade que o gênio é exigido na produção (originária) da arte e não somente na sua apreciação, mas, nesta, o gênio é necessário, pelo menos no início, pois é quem cria o padrão, o modelo. Depois, a faculdade de comunicar procura educar outros gostos para que possam apreciar o belo.

Pois bem, o gosto é o símbolo da moralidade (KU – parágrafo 59). “O gosto torna, por assim dizer, possível a passagem do atrativo dos sentidos ao interesse moral” (KU – 199/260).

A beleza é a maneira como o homem sente a finalidade da natureza e é desinteressada. Gérard Lebrun, em seu artigo “A Razão Prática na Crítica do Juízo” ( Boletim no. 1 da SEAF, p. 15 - Belo Horizonte, Minas Gerais, 1982) diz que há uma consonância entre a razão prática (moral) e a faculdade do juízo:

“O que nos interessa na reflexão sobre o prazer do gosto é o fato de que a natureza parece favorecer um prazer desinteressado, e esta idéia nos remete à um sujeito desligado de todo projeto mundano e preocupado apenas em obedecer ao imperativo categórico que representa ‘uma ação necessária por si mesma sem relação com outro fim’ ( Grundlegund, IV, 414/p. 124).
Eis, pois, uma consonância entre faculdade de julgar e razão prática. Seria, contudo, isto suficiente para ver-se esboçar passagem de uma à outra? Não. A passagem propriamente dita está em outro lugar, reside no fato de que a razão prática determinará, como um Deus efetivo e atuante, o ‘entendimento artística’ que o juízo apenas supusera. Assim, não é propriamente o sujeito moral que se anuncia através da Crítica do Juízo, mas o Autor moral do mundo, cujo juízo teleológico o conceito esboçara. A passagem, no final das contas, é teológica. O que nada tem de surpreendente, se lembramos que, se a moralidade basta a si própria, sua existência, é, em contrapartida, inconcebível sem a base teológica. Esta verdade foi negligenciada pela interpretação kantiana que não dispensou atenção suficiente ao outro aspecto do sujeito que, além de autônomo, é também sujeito agente de acordo com a Lei que tomou como máxima. Pois o sujeito moral também está destinado a agir, e a agir em vista do fim que a razão lhe prescreve: o advento do Bem Soberano neste mundo. ‘As magníficas idéias morais’ não devem simplesmente reduzir-se a ‘objetos de assentimento e de admiração’. São, São, antes de qualquer coisa, ‘móveis de intenção e execução’ (KrV. B-841/p. 547)”( Boletim no. 1 da SEAF, p. 15).


Kant, na parágrafo 42 (p. 144/166 e segs) diz que o belo se liga a uma maneira de pensar moral boa, porque o belo é ajuizamento conforme fins e o reino dos fins devem coincidir com o reino da moral, que é o fim-término do homem.

Mas o juízo estético não se refere apenas ao belo, mas também ao sublime. Sublime é o infinito. “Sublime é o que é absolutamente grande” (KU – p. 93/80-81).

“O belo concorda com o sublime no fato de que ambos aprazem por si próprios; ulteriormente, no fato de que ambos não pressupõem nenhuma juízo dos sentidos, nem um juízo lógico-determinado, mas um juízo de reflexão; consequentemente, a complacência não se prende a uma sensação como a do agradável, nem a um conceito determinado como a complacência do bom, e contudo é referida a conceitos, se bem que sem determinar quais...” (KU – p. 89/74).

No parágrafo 25 da KU, Kant desdobra a definição de sublime acima em duas fórmulas complementares: “Sublime é aquilo em comparação com o qual tudo o mais é pequeno“ (KU – p. 96/84) ; “Sublime é o que somente pelo fato de poder também pensá-lo prova uma faculdade de ânimo que ultrapassa todo padrão de medida dos sentidos”(p. 96/85).

O sublime, pois, só pode ser entendido como um conceito da razão. Isto porque o infinito não pode ser conhecido, não pode ser dado na experiência, mas pode ser pressentido pelo juízo, diante dos espetáculos da natureza, como o oceano, as tempestades, os furacões, as altas montanhas, etc. Tais exemplos são empíricos e por isso não são sublimes, mas podem simbolicamente servir de guia para se ter uma Idéia do sublime “porque projetamos neles aquela grandeza absoluta que só é própria do supra-sensível, e que está em nós enquanto pessoas morais, pertencentes ao mundo sensível” (Sofia Vanni Rovighi, História da filosofia moderna, 595, São Paulo, Loyola, 2ª ed., 2000) .

Enfim, o juízo estético compreende o belo e o sublime e ambos se relacionam com uma teleologia, uma finalidade do mundo e do homem, finalidade esta preconizada por Deus, o autor moral do mundo (cf. KU – parágrafo 87, p. 290/424).

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Quanto ao juízo teleológico, Kant afirma que ele não é subjetivo como o estético, mas objetivo, embora não seja um juízo determinante (constitutivo) da realidade, pois nada acrescenta a esta. Continua sendo um juízo reflexionante (referente apenas ao sujeito), mas hipoteticamente pensa a natureza como tendo objetivamente uma teleologia. A natureza, pois, tem finalidade .

“Entendo, portanto, por finalidade absoluta das formas da natureza aquela configuração exterior ou mesmo a constituição interior das mesmas, que são de tal índole, que, no fundamento de sua possibilidade, tem de ser posta uma Idéia das mesmas em nosso juízo. Pois finalidade é legalidade do contingente, como tal. A natureza procede, quanto a seus produtos como agregado, mecanicamente como mera natureza: mas, quanto aos mesmos como sistemas, por exemplo, formações cristalinas, variada configuração das flores ou a constituição interna dos vegetais e animais, tecnicamente, isto é, ao mesmo tempo como arte. A distinção destes dois modos de julgar os seres da natureza é feita meramente pelo Juízo reflexionante, que pode perfeitamente e talvez também seja obrigado a deixá-la ocorrer, o que o determinante ( sob o princípio da razão) não lhe concederia, quanto à possibilidade do próprio objeto, e talvez preferisse saber tudo reduzido ao modo-de-explicação mecânico; pois pode perfeitamente subsistir, lado a lado, que a explicação de um fenômeno, que é uma operação da razão segundo princípios objetivos, seja mecânica; e que a regra do julgamento desse objeto, porém, segundo princípios subjetivos da reflexão sobre ele, seja técnica.”( Primeira Introdução, VI, p. 274) .


Mas a finalidade na natureza, para Kant, é somente uma idéia regulativa. De maneira nenhuma Kant abandona a teoria mecanicista, que é a única que explica a natureza. Este é o limite da faculdade cognoscitiva: o homem não é criador, mas estruturador do conhecimento, que não passa de um síntese do múltiplo que é dado pelos sentidos. Isso impede que o homem introduza, no momento da constituição do conhecimento, qualquer estrutura de sua moralidade. Mas é admissível que uma inteligência superior – o Autor Moral do mundo ou Deus – se sirva de leis mecânicas para realizar a ordem na natureza e nela embutir sua finalidade (cf. KU – parágrafos 65-66, p. 218/295 e segs).

Gérard Lebrun, em seu artigo citado, distingue dois tipos de finalidades em Kant: uma finalidade desinteressada e uma finalidade com objetivo final (Endzweck). A primeira se refere ao dever. Quando se trata do dever, não pode haver finalidade, pois o dever tem de ser realizado sem interesse, sob pena de o homem cair na heteronomia. Devo porque devo e basta. Mas o homem não é um mero sonâmbulo. Ele precisa saber onde sua ação o conduzirá e o que resultará dela, do contrário não seria responsável por suas ações. Precisa então acreditar que a realização de seu objetivo está em conformidade com a natureza das coisas, com o objetivo do criador:

“Dessa forma, a problemática moral desloca-se para a religião e para a filosofia da História, e é nesse preciso momento que a suposição de uma ‘causa inteligente’ adquire, enfim, todo o seu interesse; Kant então nos lembra que somos induzidos a pensar teleologicamente a natureza. ‘Ora, nós encontramos a verdade dos fins no mundo...’ Eis aí o indício ao menos de que a causa da existência do mundo não procedeu como um automatismo cego e, portanto, de que seu objetivo final poderia ser o mesmo que nossa razão nos proporciona... Como vimos, a suposição emitida pelo juízo teleológico não fornece por si mesma nenhuma indicação sobre esse objetivo final. Mas, para aquele que investiga, numa perspectiva prática, o sinal de uma Providência, uma tal suposição se torna o ponto de partida de uma teologia que lhe garantirá que a ação moral não é um esforço irrisório” (Gérard Lebrun, op. cit., p. 16).

Lebrun tira algumas consequências do que afirmou acima. Quer dizer, como os seres humanos não são apenas racionais, mas são também “seres-do-mundo” precisam agir para a realização de seu objetivo final. Para isso, postulam a existência de Deus. Mas ressalva que a moral fica intacta na sua autonomia, pois mesmo que não existisse Deus o homem deveria continuar agindo moralmente. E admite que ateus podem agir assim, embora estes não tenham a motivação da esperança e corram um risco maior de desistir de seu objetivo final. Por isso Deus é necessário para que possa suprir, com sua Providência ( concursus), as deficiências da justiça dos homens que agiram corretamente. A sabedoria de Deus, pois, seria a sua vontade de colocar o curso do mundo em harmonia com a racionalidade do homem. A glória de Deus não se manifestaria mais...

“... na economia animal e vegetal, mas na trama dos acontecimentos: não mais como sistema da natureza, mas como razão na História. Dessa maneira, nada mais resta da imagem de Deus ‘soberano em seu trono’ (Descartes) ou grande mestre da combinatória ( Leibniz): Deus será, agora, o traçado da história através do caráter eventual dos acontecimentos. Não mais garantirá a justeza do olhar teórico, como nos clássicos, mas a confiança que tenho no sentido de minha ação.” ( Gérard Lebrun, op. cit., p. 17).


Lebrun conclui que algum malévolo poderia dizer que Deus deixou de ser dogmático, para ser um ideólogo...

Enfim, há indícios de que a natureza se regula pela nossa faculdade de conhecer e que esta coincide no final de contas, in the long run, com o mundo da moral, o mundo noumênico . E, como Deus está regulando esse processo , que levará o homem ao seu fim-término, a sua existência é cada vez mais provável (cf. KU, parágrafo 87).

“...a Crítica do Juízo – diz Georges Pascal (op. cit., IV. P. 177) – assegura a transição entre o entendimento e a razão; estabelece um intermediário entre o mundo sensível e o mundo inteligível. A Crítica da razão pura concluíra que o conhecimento humano é incapaz de transcender o mundo sensível. A Crítica da razão prática concluíra que a conduta humana não teria sentido sem a suposição de um mundo inteligível. A terceira Crítica nos mostra que entre o entendimento, fonte de nossos conhecimentos, e a razão, princípio das nossas ações, existe uma faculdade mediadora, a do juízo, cuja função é pensar o mundo sensível em referência ao mundo inteligível. E assim reaparece o tema da primazia da razão prática: a beleza e a harmonia deste nosso mundo tem um significado moral. E acresce: elas tem um sentido divino; com efeito, elas nos arrebatam deste mundo fenomenal, fazendo-nos partilhar a ordem divina. A Teleologia conduz à Teologia” .


Com isso, abrimos, aqui, as portas para a Religião, esfera em que realizaremos o soberano bem moral, parte esta que será estudada mais adiante.

Mas para alcançarmos a esfera da Religião, é necessário passarmos pela História, ou melhor, construirmos a nossa própria história, como História da Humanidade. Esta é o fio da meada que nos levará ao reino dos fins ou soberano bem moral.

A FILOSOFIA DA HISTÓRIA

Em sua concepção da História Kant mostra o dever do homem conquistar o soberano bem político – Paz e Liberdade – condição para que possa, em seguida, alcançar o soberano bem moral ou reino dos fins ou reino de Deus sobre a terra.

Kant diz, ao expor o Imperativo Categórico, que o homem deve agir. E Agir de acordo com a lei moral. Isto significa que ele não deve ser um ente estático, parado, um ente acabado, mas um ser que precisa realizar o seu destino e que deve ter uma finalidade neste e noutro mundo. A resposta ao seu destino final Kant aponta na sua Filosofia da História e na Religião.

Em seu escrito Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita (1784), Kant oferece ( e comenta) nove princípios que norteiam a história humana. Oferecemos esses princípios e depois faremos um breve comentário sobre seu conteúdo ( traduzido do espanhol, da edição de Eugenio Ímaz, Fondo de Cultura Económica, México, 1997):

1 – Todas as disposições naturais de uma criatura estão destinadas a desenvolver-se alguma vez de maneira completa e adequada.

2 – Nos homens ( como únicas criaturas racionais sobre a terra) aquelas disposições naturais que apontam para o uso de sua razão, devem-se desenvolver completamente na espécie e não nos indivíduos.

3 – A Natureza tem querido que o homem logre completamente de si mesmo tudo aquilo que sobrepassa o ordenamento mecânico de sua existência animal, e que não participe de nenhuma outra felicidade ou perfeição que a que ele mesmo, livre do instinto, procure pela própria razão.

4 – O meio de que se serve a Natureza para lograr o desenvolvimento de todas as suas disposições é o Antagonismo das mesmas em sociedade, na medida em que esse antagonismo se converta, por fim, na causa de um ordem legal daquelas.

5 – O problema maior do gênero humano, a cuja solução o obriga a Natureza, consiste em chegar a uma Sociedade Civil que administre o direito em geral.

6 – Este problema é também o mais difícil e o que mais tardiamente a espécie humana resolverá.

7 – O problema da instituição de uma constituição civil perfeita depende, por sua vez, do problema de uma legal Relação exterior entre os Estados, e não pode ser resolvido sem esta última.

8 – Pode-se considerar a história da espécie humana em seu conjunto como a execução de um secreto plano da Natureza, para a realização de uma constituição estatal interiormente perfeita, e, com este fim, também exteriormente, como o único estado em que aquela possa desenvolver plenamente todas as disposições da humanidade.

9 – Um ensaio filosófico que trate a história universal como um arranjo de um plano da Natureza que tende à associação cidadã completa da espécie humana, não só devemos considerar isto como possível, senão que é necessário também que o pensemos em seu efeito propulsor.


O problema de que trata Kant em sua concepção de História é saber se esta tem um desenrolar sensato, razoável, no meio da irracionalidade das ações humanas. Existe algum fio condutor da história que nos permita vislumbrar algum plano, alguma finalidade, já que cada um age de acordo com seus interesses particulares? Sim. É natural que todas as disposições da humanidade venha um dia a se desenvolver, se não no indivíduo, pelo menos na espécie. A Natureza se vale de um plano secreto, uma espécie de astúcia ( List), para obrigar o homem a alcançar o seu fim social. Esse plano ocorre por meio do antagonismo existente na sociedade. A discórdia, essa socialidade insociável do homem, acaba por levar o homem a refletir sobre o mal das disputas e das guerras e superar essa fase humana, no rumo do progresso, no caminho de uma melhor elevação moral da humanidade. Quer dizer, o homem começa com o mal e procura elevar-se gradativamente até o bem . Esse estado de paz e de moralidade deve ocorrer não só internamente, dentro do Estado, mas externamente, entre as nações.

Isto só é possível se o homem deixar o estado de liberdade selvagem e entrar no Estado de Direito. E o Estado deve se basear na justiça, na igualdade e na liberdade:

“O Estado não pode limitar a liberdade de cada um além do que exige a segurança do Direito e a proteção contra a violência injusta. Assim as leis que regem o Estado estão determinadas pela idéia de justiça e de igualdade. Como ser racional, o homem é liberdade autônoma e absoluto fim em si. Nisso está a sua dignidade. (...) A autonomia do cidadão como co-legislador obriga-o a obedecer só às leis universais que ele mesmo se deu ou às quais pode dar o seu assentimento. A constituição civil baseada nestes princípios é a meta que a natureza visa” (Francisco Xavier Herrero, Palestra, p. 7, proferida na UFMG, Belo Horizonte, 25-05-1981, Mimeografado).


Mas o homem não deve permanecer no nível da natureza. Precisa ultrapassar esse estado em que a Natureza assume a autonomia, se transforma no sujeito da história e transforma o homem num boneco. Ele precisa assumir seu próprio destino e ultrapassar essa fase. Entrar no Estado de Direito é um grande passo, mas esse estado pode formar um bom cidadão, mas não necessariamente um homem bom. É o que diz Xavier Herrero:

“A intenção da natureza ainda não pode parar aí, pois dotou o homem da disposição para moralidade. A grande tarefa que finalmente a natureza impõe ao homem é que ele, como ser racional, arranque da natureza a direção da história para assumí-la responsavelmente nas suas próprias mãos e, assim, construindo ele mesmo, consciente e livremente, uma sociedade política estruturada segundo princípios morais da justiça e da liberdade, possa conseguir o seu fim último que é a ‘humanidade (o ser racional do mundo) na sua completa perfeição moral’ ( Religião...)” ( Palestra cit., pp. 10-11).

O soberano bem político é o Estado de Direito, quer dizer, uma Constituição Civil (republicana) em cada Estado e uma Constituição Cosmopolita no Mundo. O soberano bem político é a conquista da paz e da liberdade, universalmente. Uma boa Constituição pode não levar o homem a praticar boas ações morais, mas sem uma boa constituição política não haverá condições propícias para a ação moral. Ora, a finalidade da humanidade é a sociedade ética (comunidade moral), que é o Reino de Deus sobre a Terra, isto é, uma sociedade religiosa (“Igreja invisível”) onde só Deus será o seu legislador. É a partir desta comunidade ética que o homem parte para a vida eterna (imortalidade da alma)(Evidentemente que expressões como “vida eterna”, ”imortalidade”, etc., são apenas “idéias regulativas.).

Portanto, precisa a humanidade lutar pela fase de moralização. Isso ocorre através do Iluminismo (Aufklärung), também chamado de Esclarecimento ou Ilustração. É a ousadia do homem em usar seu próprio intelecto para se emancipar. É através dele que o homem sai do estado de menoridade para o estado de amadurecimento. Afirma Kant:

“Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo em a direção de outrem. Sapere aude! [ ousai saber!]. Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema de esclarecimento” ( “Resposta à Pergunta: Que é Esclarecimento [Aufklärung]?”, trad. de Floriano de Sousa Fernando, “Textos Seletos”, bilingue português-alemão, p. 100, Vozes, Petrópolis, 1974. Nota: este escrito de Kant é de 1784).


Mas para que o homem possa usar seu próprio entendimento e sair da menoridade, precisa de, no mínimo, da liberdade de manifestação de pensamento. Por isso, Kant condena as ditaduras e defende a democracia.

Perguntado se já estaríamos nesse estado de moralidade, Kant responde que não. Nem mesmo o Iluminismo e a Revolução Francesa fizeram com que Kant respondesse positivamente a essa pergunta. Mas também não é pessimista. Responde que estamos em processo de conscientização e de progresso moral para melhor. Como sinais aponta a melhora nas Constituições dos Estados atuais ( do tempo de Kant) e a Revolução Francesa (sobre a conciliação dessas duas posições de Kant que condena as revoluções e apoia a Revolução Francesa, ver do livro de Lucien Goldmann – Origem da Dialética, já indicado em nota de rodapé deste Capítulo).

Porém existem alguns obstáculos que procuram impedir tal conscientização. Por exemplo, a indolência e a covardia, os profetas do povo e os revolucionários (como se viu antes, Kant condena as revoluções). E também os maus políticos, que procuram enganar e oprimir o povo, visando mantê-lo na menoridade, com a finalidade de perpetuarem sua dominação.

Enfim, a teleologia da Natureza e os sinais de progresso político e moral da Humanidade nos oferecem a esperança de que estamos no caminho certo para alcançarmos o soberano bem político e moral.

A RELIGIÃO

À pergunta “Que me é permitido esperar”, Kant responde com a religião. Para isso escreveu o livro “A Religião nos limites da simples razão”, embora essa pergunta tenha começado a ser respondida na parte “Dialética” da Crítica da Razão Prática.

A Religião nos limites da simples razão ( de agora em diante denominada simplesmente de Religião) é composta de quatro artigos que deveriam ser originalmente publicado num periódico de Berlim (Revista Mensal de Berlim), mas saiu apenas o primeiro, sendo a obra completa publicada em 1793 ( segunda edição em 1794).

Na Religião , Kant continua coerente, defendendo a autonomia da moral perante a religião. Diz que a moral não precisa da religião, não precisa da idéia de Deus para fundamentá-la; antes, a idéia de Deus se fundamenta na moral. A religião, pois, é essencialmente moral. Sua finalidade é o aperfeiçoamento moral do homem, para que este atinja o reino dos fins ou reino de Deus na terra (e, depois da morte, o reino transcendente de Deus, no céu, ou coisa que o valha).

Kant começa sua Primeira dissertação sobre o mau radical inerente à natureza humana, afirmando que o homem possui disposição original para o bem, mas também propensão natural para o mal. No primeiro artigo, Kant diz que o homem possui três classes de disposições, como elementos de determinação do homem:

“1) a disposição do homem à animalidade, como ente vivo;
2) sua disposição à humanidade, como ente vivo e ao mesmo tempo racional;
3) à sua personalidade, como ente racional e ao mesmo tempo responsável” ( Primeira parte, In “Os Pensadores”, p. 371).

A disposição à animalidade compreende o amor próprio ou físico, que é tríplice: abrange o instinto de conservação, o de propagação da espécie e o instinto gregário ( de viver em sociedade). A disposição à humanidade procura granjear valor na opinião dos outros que originariamente era um valor de igualdade, mas que pouco a pouco gerou o ciúme e a rivalidade, etc. E, finalmente, a disposição para a personalidade, que leva ao respeito à lei, à moralidade. Só a segunda e a terceira tem a ver com a razão, sendo a segunda a razão prática enquanto subordina os apetites ( heteronomia) e a terceira, a razão prática enquanto legisladora, isto é, determinando a si mesma (autonomia). Essas disposições...

“são originais pois pertencem à possibilidade da natureza humana. O homem, é verdade, pode precisar das duas primeiras inoportunamente, mas não pode exterminar nenhuma das mesmas. Sobre disposição de um ente entendemos tanto as partes constituintes necessárias como as formas de sua conjunção para ser um tal ente. São originais se pertencem necessariamente à possibilidade de tal ente; mas contingente se o ente fosse possível sem as mesmas. Deve-se ainda observar que não falamos aqui de outras disposições que não as que se relacionam imediatamente com o poder de apetição e com o uso do arbítrio” (Religião, Primeira parte, in “Os Pensadores”, p. 373).

A propensão ao mal é vinculado ao poder do livre arbítrio, pois sem este o homem não possuiria responsabilidade por seus atos.

“Por propensão ( propensio) entendo o fundamento subjetivo da possibilidade de uma inclinação ( apetite habitual, concupiscentia), enquanto contingente para a humanidade em geral. Ela distingue-se de uma disposição por poder ser inata, mas não deve ser representada como tal, mas também como adquirida (quando é boa) como contraída pelo próprio homem. Trata-se aqui, porém, da propensão para o mal propriamente dito, isto é, para o mal moral; ora, como ela não é possível senão como determinação do livre arbítrio e, por outro lado, este só pode ser julgado bom ou mau por suas máximas, deve consistir no fundamento subjetivo da possibilidade de desviar-se das máximas da lei moral e, se esta propensão deve se admitida como universal para o homem ( portanto, / como caráter de sua espécie), será denominada propensão natural do homem para o mal. – Pode-se ainda acrescentar que a capacidade ou incapacidade do arbítrio provenientes da propensão natural de aceitar a lei moral em sua máxima, ou não, podem ser chamadas de bom ou mau coração.”( op. cit., p. 374).


O homem possui, portanto, uma propensão originária para o mal, este é inato na natureza do homem. Mas qual a sua origem? Kant diz que a origem do mal não é a sensibilidade, pois esta, no máximo, levaria o homem a uma bestialidade ( animalidade). Também não tem origem na razão, pois se esta fosse originalmente perversa, o homem seria um ser diabólico, o que seria um exagero. Sua origem deve estar no conflito entre a sensibilidade e a razão . O mal é preferir as paixões ao invés da razão. O mal é inexterminável, existe em qualquer homem – mesmo no melhor homem - e no entanto é necessário lutar para vencê-lo. Mas a origem última do mal, segundo Kant, é incompreensível. “... não podemos explicar por que o mal em nós corrompeu precisamente a máxima suprema” (Idem, p. 375) das nossas ações.

É por isso que o mal é radical: “Este mal é radical porque corrompe o fundamento de todas as máximas” ( idem, p. 379). Mas o que é o fundamento de todas as máximas? O fundamento supremos de todas as máximas é o dever ( cf. op. cit., p. 386). E o que nos leva a cumprir o dever? “A firme resolução de cumprir seu dever, tornada atitude, chama-se ... virtude” (op. cit., p. 385). É pela virtude que podemos construir um novo homem. Esse redirecionamento no sentido de criar um homem moralmente bom é o que se chama conversão, ou soerguimento, ou redenção ou revolução e isso deve ser feito pelo próprio esforço do homem, rejeitando Kant a teoria da graça, isto é, a ajuda divina.

“O que o homem é ou deve vir a ser moralmente, bom ou mau, deve fazê-lo ou sê-lo por si mesmo. Ambos devem ser um feito de seu livre arbítrio; do contrário, isto não poderia ser-lhe imputado, não poderia ser moralmente nem bom, nem mau. Quando se diz: ele foi criado bom, isto não pode significar mais do que: ele foi criado para o bem e a disposição original no homem é boa” (idem, p. 384).


A disposição natural do homem é para o bem, pois nada de mau pode sair das mãos do Criador. Mas a propensão do homem para o mal dificulta a sua conversão: “Mas se o homem é pervertido no fundamento de suas máximas, como é possível que faça esta revolução por suas próprias forças e torne-se, por si mesmo, um homem bom? E, no entanto, o dever nos ordena sê-lo, não nos ordena, porém, nada que não seja praticável” ( idem, p. 486). Quer dizer, a razão prática nos ordena que cumpramos o nosso dever e a razão não poderia ordenar o que fosse impossível. Logo, se devo, posso (cf. op. cit., p. 387, in nota). E a formação moral do homem não deve começar pelos costumes, mas pela transformação da maneira de pensar e pela fundação de um novo caráter. Deus bem que poderia ajudar o homem, mas Kant diz que o homem não deve contar com isso – deve agir como se Deus não movesse uma palha para ajudá-lo. “Ele deve esperar chegar por suas próprias forças ao caminho de lá” (idem, p. 388). Por isso, Kant termina essa Primeira Parte de sua obra com essas palavras:

“... neste caso, vale o princípio: ‘não é essencial, nem necessário, a cada um saber o que Deus faz ou fez para sua glória’; mas sim saber o que ele mesmo [ o homem] deve fazer para se tornar digno desta ajuda” (op. cit., p. 389).


A Segunda dissertação de Kant trata da luta do princípio bom contra o princípio mau pelo domínio do homem.

Como o homem possui essa dupla natureza, existe uma luta de um princípio contra o outro para dominar o homem. O mal radical é o que vulgarmente chamamos de “diabo”. É possível o bem vencer o mal? Kant diz que não no tempo, mas como o homem pertence também ao mundo inteligível ( supra-sensível), é possível pensar o homem como um todo completo onde a conformidade de sua conduta se coadune com a santidade da lei moral .

Mas para alcançar o bem, o homem deve se inspirar num modelo ( arquétipo), que seria o homem ideal. Este homem ideal é personificado na pessoa de Jesus Cristo. Jesus Cristo representa a humanidade ideal, a perfeição moral da humanidade, a quem todos os demais homens devem imitar, tentando alcançar a sua perfeição moral, pois seu exemplo pode nos dar força.

“Pues bien, elevarnos a este ideal de la perfección moral, esto es: al arquetipo de la intención moral en su total pureza, es deber humano universal, en orden al cual esta misma idea que nos es propuesta por la Razón pura que la tomemos por modelo puede darnos fuerza” (Kant – La Religión dentro de los límites de la mera razón, Segunda Parte, p. 66, trad. Felipe Martínez Marzoa, Alianza, Madrid, 1986).


Kant vê apenas a parte humana de Cristo, pois se for trazer à tona a parte sobrenatural, fica impossível o homem alcançar seu objetivo final, usando a esfera divina como modelo. “Não é intenção de Kant - diz Georges Pascal - negar a divindade de Jesus Cristo; pretende apenas que a hipótese de sua origem divina não oferece qualquer vantagem do ponto de vista prático; ao contrário, o valor prático de exemplo de tal homem só poderá ganhar em não revestir qualquer caráter sobrenatural, pois que será mais humano” ( op. cit., IV, p. 183).

Mas, para alcançar a perfeição moral e elevar-se àquele ideal de “ser agradável a Deus” o homem terá várias dificuldades, que precisa vencê-las. Como o mundo sensível, fenomênico, só nos traz sofrimento e sacrifícios, o homem precisa pelo menos se apegar à intenção moral, isto é, à “pureza das intenções”, apesar de o homem ter dificuldade de perseverar no bom caminho. Mas resta a esperança de um progresso infinito, através da imortalidade, isto é, da continuidade desta vida numa outra. Assim, poderá alcançar o bem eterno, como o mal eterno. Por isso, a esperança do paraíso pode estimular o homem a perseverar no bem, tal como a idéia do inferno pode desestimulá-lo a permanecer no mal. Mas Kant ressalva que essas idéias de Paraíso ou Inferno são apenas idéias regulativas, não podendo servir de fundamento e de móvel para a moral. A luta entre o bom e o mau princípio é descrita na Escritura e mesmo sendo esta fundamento de uma religião estatutária e não de uma religião natural ( racional), que Kant defende, tem seu sentido válido para todos os homens. Ademais, Kant diz alhures que o Cristianismo é a única religião estatutária que pode ser reduzida à religião natural.

A seguir, Kant trata dos milagres e diz que eles são dispensáveis para uma religião moral e que o homem só deve contar com seu esforço pessoal.

“Cuando debe ser fundada una Religión ( que no há de ser puesta en estatutos y observancias, sino en la intención de corazón de observar todos los deberes humanos como mandamentos divinos), todos los milagros que la historia enlaza com su introducción han de hacer finalmente superflua la creencia en milagros en general” (Kant, op. cit., Segunda Parte, Observación general, p. 86).

Portanto, o destino do homem depende apenas de si mesmo. Quer dizer, o homem precisa da comunhão dos homens de boas intenções numa comunidade, mas o seu comportamento moral só depende dele próprio, se quiser atingir a perfeição moral ou Reino de Deus (na terra e, depois da morte, o reino de Deus no céu).

“Pues el hombre que, desde la época en que há adoptado los princípios del bien, há percebido a través de una vida bastante larga el efecto de estos principios sobre la acción, esto es: sobre su conducta, que progresa hacia lo cada vez mejor, y encuentra por ello motivo para inferir, sólo a modo de suposición, un mejoramiento profundo en su intención, puede también esperar razonablemente que – dado que tales progresos, com tal que su principio sea bueno, / aumentan simpre de nuevo la fuerza para los progresos seguientes – en esta vida terreno no abandonará ya esse camino, sino que avanzará sobre él cada vez com maior denuedo, e incluso, si tras esta vida le espera aún outra bajo outras circunstancias continuará, según toda aparencia, en lo sucesivo en esse camino com arreglo al mismo principio y se acercará cada vez más a la meta – aunque incalcanzable – de la perfección” (op. cit., Segunda Parte, pp. 73-74).


Só a boa intenção faz o homem abandonar o mundo do mal para ir ao mundo do bem e alcançar o reino dos fins e a imortalidade no mundo transcendente . O homem deve manter uma conduta moral como se houvesse continuidade entre o mundo “daqui” e o mundo “de lá”, pois só a consciência moral poderá nos garantir a eternidade .

Em 1794, Kant volta a tratar ainda do assunto, em seu escrito “O Fim de todas as Coisas” ( publicação brasileira In “Textos Seletos”, Vozes, Petrópolis, 1974):

“Quando prosseguimos examinando a passagem do tempo à eternidade (idéia que, teoricamente, considerada enquanto ampliação do conhecimento, pode ter, ou não, realidade objetiva), tal como a razão a representa para si na consideração moral, esbarramos no fim de to-/das as coisas, entendidas como seres no tempo e objetos de possível experiência. Este término, porém, na ordem moral das finalidades é simultaneamente o começo de uma continuação dessas mesmas coisas enquanto supra-sensíveis, por conseguinte como entes não submetidos às condições do tempo, e portanto eles e seu estado não são passíveis de outra determinação de sua natureza senão a determinação moral” (pp. 155-156).


Kant, neste artigo O fim de todas as coisas, aprofunda o assunto, colocando a idéia do juízo Final, para o qual remeto o leitor .

A Terceira dissertação trata do triunfo do princípio bom sobre o mau e do Reino de Deus na Terra.

A fim de garantir o triunfo do princípio bom sobre o mau, os homens precisam se unir numa sociedade regida pelas leis da virtude ou sociedade ética, que é o reino de Deus sobre a Terra. E Kant diz que o homem moralmente bem intencionado não deve querer outra coisa, em sua luta contra o princípio mau, senão a sua libertação dele. Deve apenas querer se livrar da escravidão do pecado para viver na justiça. Quando o homem vive no estado de natureza jurídico ele está num estado de guerra de todos contra todos. O passo seguinte, seria o estado jurídico civil, onde impera a paz e a liberdade, mas onde o homem ainda está sujeito aos incessantes ataques do princípio do mal. Depois vem o estado de natureza ético, que é um estado superior ao anterior, mas precisa ser aperfeiçoado, para que o homem possa atingir o estado civil-ético ou comunidade ética ou reino de Deus na terra, onde o homem alcançaria a sua mais alta perfeição possível, onde agiria livremente, sem coação:

“Por la Razón moralmente legisladora, ademais de las leys que ella prescribe a todo indivíduo, há sido colocada también una bandera de la virtude como punto de unión para todos los que aman el bien a fin de que se reúnam bajo ella y así consigan ante todo prevalecer sobe el mal que los ataca sin tregua.
A una liga de los hombres bajo meras leyes de virtud según prescripción de esta idea se la puede llamar sociedad ética y, en cuanto estas leyes son públicas, sociedad civil ética (en oposición a la sociedad civil de derecho) o comunidad ética. Esta puede existir en medio de una comunidad política e incluso estar formada por todos los miembros de ella ( como que, por outra parte, no podría en absoluto ser llevado a cabo por los hombres sin que esta última estuviese a la base) (La Religión, Terceira Parte, pp. 94-95, op. cit.).


Quer dizer, sem uma sociedade política, com Estado de Direito, a sociedade moral não seria possível. Mas enquanto a sociedade política ( Estado) se baseia em leis coercitivas (externas), a comunidade ética se baseia nas leis da virtude (internas), que não são coercitivas, pois se baseiam nas leis originais de um bom coração. “Un estado civil de derecho (político) es la relación de los hombres entre sí en cuanto están comunitariamente bajo leyes de derecho públicos ( que son en su totalidad leyes de coacción). Un estado civil ético es aquel en que los hombres están unidos bajo leyes no coactivas, esto es: bajo leyes de virtud” (idem, p. 95) .

Ora, o princípio que une uma comunidade ética, que é feito por intermédio da virtude, cujas leis são internas, só pode ser Deus (cf. op. cit, pp. 99-100). E esta sociedade ideal onde o homem consegue seu intento, dirigida por Deus, é a Igreja Invisível. Kant entende por Igreja Invisível:

“Una comunidad ética bajo la legislación moral divina es una iglesia, que, en cuanto que no es ningún objeto de una experiencia posible, se llama la iglesia invisible ( una mera idea de la unión de todos los hombres rectos bajo el gobierno divino inmediato – pero moral – del mundo, tal como sirve de arquetipo a todas las que han de ser fundadas por los hombres). La visible es la efectiva unión de los hombres en un todo que concuerda com aquel ideal “ (op. cit. loc. cit. p. 101).

Kant em seguida fornece os requisitos pelos quais identificamos a verdadeira Igreja, inspirado nas categorias de Quantidade, Qualidade, Relação e Modalidade. Essas características são:

- universalidade - que leva à unidade de todos os homens sob uma só Igreja – única (um só Deus, uma só Igreja) e sem divisão em seitas(categoria de quantidade);

- qualidade – que implica a pureza, isto é, seus móveis só podem ser morais, com rejeição de superstição e do fanatismo;

- relação – que ocorre sob o princípio da liberdade de seus membros: a relação acontece “bajo el principio de la libertad, tanto la relación interna de sus miembros entre sí como la externa de la iglesia con el poder político, ambas cosas en un Estado libre” (idem, p. 102). Kant rejeita o princípio da hierarquia, iluminismo [ teoria dos iluminados] e democracia, por ocorrer esta “mediante inspiraciones particulares que pueden ser diferentes según la mente de cada uno (así, ni jerarquía, ni iluminismo, especie de democracia mediante inspiraciones particulares que pueden ser diferentes según le mente de cada uno)” (idem, p. 102);

- modalidade – que significa a imutabilidade de sua constituição, “con reserva de las ordenaciones, tocantes sólo a la administración de la iglesia, las cuales pode cambiar según el tiempo y las circunstancias, si bien la iglesia há de contener a priori ya en sí misma (en la idea de su fin) los princípios seguros para tales ordenaciones” (idem, p. 103)

Esses princípios levam à negação de três tipos de igreja: a monárquica ( rejeição de papa ou patriarca), a aristocrática ( dirigida por bispos ou prelados, que levam a uma teocracia) e a democrática ( dirigida por iluminados sectários, certamente ignorantes, que estimulam e mantém a superstição e o fanatismo).

Esta sociedade ética ou Igreja Invisível ou Reino de Deus é comparada a uma sociedade familiar ou comuna . Nela não haverá sacerdotes ou funcionários da Igreja, pois Deus é seu legislador, e cada membros receberá as leis morais imediatamente de Deus. Kant diz que a única coisa que Deus pede ao homem para lhe agradar é seu bom comportamento, isto é, a prática da virtude. Mas o homem não se contenta com isso e, ainda que sabendo que só pode influir sobre outros seres do mundo e não em Deus, mesmo assim pensa que pode honrar e venerar ao Senhor através de atos públicos e estatutários, e cria assim as Igrejas Eclesiais. Porque pensa que...

“todo gran señor del mundo tiene una particular necesidad de ser honrado por sus súditos y ensalzado[ exaltado] mediante pruebas de sumisión a sus órdenes como necesita para poder dominarlos, y además el hombre, por razonable que sea, encuentra siempre en las demonstraciones de honor un placer inmediato, por eso se trata el deber, en tanto que es a la vez mandamiento divino, como gestión de un asunto de Dios, y así surge en concepto de una Religión del servicio [ culto] de Dios en vez del concepto de una Religión moral pura” (Kant, La Religión, Terceira Parte, op. cit., p. 104).

Mas as Igrejas Visíveis, estatutárias, com base em leis reveladas, tradicionais, históricas, tem seus fundamentos nas leis da Igreja Invisível, sob pena de serem falsas. A fé nelas é um fé histórica e não um fé religiosa pura ( racional). Isto é, elas devem poder ser reduzidas a Igreja Natural ( racional, invisível), mas Kant diz que a única que pode ser, no final, confundida com a Igreja Racional é a Igreja Cristã.

Mas se só existe uma única Religião, como explicar tantas religiões na face da terra? Kant mantém que só há uma Religião verdadeira, porém existem muitas crenças. Kant chega a afirmar que não se deveria usar publicamente a palavra “religião” com relação às várias crenças, mas simplesmente dizer crença judia, maometana, católica, luterana, etc.

Com relação ao Cristianismo, Kant diz que, historicamente, ele praticou muitos desvios. O Cristianismo, através de eremitas em monastério e do celibato transformou muitos homens em inúteis para a humanidade. Além disso, perseguiu hereges, incitou à guerra, castigou reis como crianças, etc., mas agora está bem melhor. Por isso, à pergunta, que tempo de toda a história da igreja até agora é o melhor - não duvida em responder: “es el actual, y lo es de modo que puede simplemente dejar que se desarrolle más y más, sin impedimento, el germen de la verdadera fe religiosa tal como ahora há sido puesto, ciertamente sólo por algunos, pero publicamente, en la Cristandad, para esperar de ello una aproximación continua a aquella iglesia que une para siempre a todos los hombres” (idem, p. 135). Por fim, o princípio bom vence o princípio mau, no homem virtuoso, mas este só receberá a felicidade no outro mundo, onde também os maus irão viver na eterna desventura ou perdição.

Finalmente, na Observação colocada no final dessa Terceira Parte, Kant diz, a respeito de Deus, que para a fé moral não é necessário tanto procurar saber a natureza de Deus. Basta saber que é um ser moral. Isto basta para a necessidade da razão prática:

“Conforme a esta necesidad de la Razón práctica, la fé religiosa verdadera es: 1) la creencia en Dios como el creador todopoderoso del cielo y la tierra, esto es: moralmente como legislador santo; 2) la creencia en él, el conservador del género humano, como gobernante bondadoso y sostén moral del mismo; 3) la creencia en él, el administrador de sus própias leys santas, est es: como juez recto” ( idem, p. 140).

A Quarta dissertação estuda o culto verdadeiro e o culto falso sob a autoridade do princípio bom e do sacerdócio.
Como se disse, a Igreja Verdadeira ou Invisível não possui funcionários legais, pois cada membro recebe suas ordens diretamente de Deus.

“Puesto que una Religión racional pura, como fé religiosa pública, da lugar a la mera idea de una iglesia ( a saber: de una iglesia invisible) y que sólo la iglesia visible, que está fundada sobre estatutos, necesita una organización hecha por hombres y es susceptible de ella, el servicio [ culto] bajo el dominio del principio bueno en la primera no podrá ser considerado como servicio de iglesia, y aquella Religión no tiene servidores legales como funcionarios de una comunidad ética; cada miembro de ella recibe órdenes inmediatamente del supremo legislador”(op. cit., Quarta Parte, p. 149).

Não haverá culto, pois o seu verdadeiro culto é o cumprimento da pura fé religiosa que nada mais é do que o cumprimento das leis morais.

Mas as igrejas positivas ( ou de crenças) possuem cultos. Kant então procura distinguir o culto verdadeiro do falso. O culto falso é esquecer esse cumprimento básico do dever, ficando o homem ligado apenas aos elementos formais, históricos e estatutários das igrejas visíveis, deixando de alcançar o objetivo de Deus. “Por falso servicio ( cultus spurius) se entiende la persuasión de servir a alguien mediante acciones que de hecho hacen que se malogre su mira” (op. cit., Quarta Parte, p. 150). O culto verdadeiro seria o cumprimento do dever moral para alcançar o reino de Deus. O resto é formalidade.

A religião é o cumprimento de todos os nossos deveres como mandamentos divinos. E a verdadeira religião é a religião natural. A religião revelada tem de ser reduzida à natural ou será falsa. Toda crença tem por finalidade preparar o caminho para a religião racional.

“Le Religión es ( considerada subjetivamente) el conocimiento de todos los nuestro deberes como mandamientos divinos. La Religión en la que yo he de saber de antemano que algo es un mandamiento divino para reconocerlo como deber mio es la Religión revelada ( o necesitada de una revelación); por el contrario, aquella en la que he de saber primeiro que algo es deber, antes de que pueda conocerlo como mandamiento divino, es la Religión natural. – Aquel que declara moralmente necesaria – esto es: deber – sólo la Religión natural puede también ser llamado racionalista (en asuntos de fe)” (op. cit. loc. cit., p. 150) .


Isto significa que a religião natural pode ser também revelada. Por isso, toda religião ( crença) contém princípios tanto da religião natural como da revelação ou parte erudita (escritural, estatutária). Kant, em dois capítulos examina a religião cristã como natural e como erudita ( tomando como documento o Novo Testamento).

“La aceitación de los princípios de una Religión se llama de modo excelente fe ( fides sacra). Tedremos, por lo tanto, que considerar la fe cristiana por un lado com una fe racional, por outro lado como una fe de revelación (fides statuaria). Ahora bien, la primera puede ser considerada como una fe libremente aceptada por cada uno (fides elicita); la segunda, como / una fe impuesta (fides imperata) “ (idem, pp. 159-160).

Finalmente, depois de exaustiva exposição, Kant nos fornece quatro observâncias para o culto de Deus, com suas respectivas formalidades (estas servem apenas como meios educativos, não são ligações necessárias a elas, e não servem para influir na vontade de Deus), visando apenas o objetivo de promover o bem moral:

“Se fundan en su totalidad sobre la mira de promover el bien moral.1) Fundarlo firmemente en nosotros mismos y despertar reiterativamente en el ánimo la intención de él (la oración privada). 2) La extensión externa de él mediante la reunión pública en días cnsagrados a ello, para allí dejar que doctrinas y deseos religiosos (y com ello intenciones de esta índole) se den a conocer y así comunicarlos de modo general (el ir a la iglesia). 3) La propagación de él a la posteridad por la admisión de los nuevos mimebros que entran en la comunidad de la fe, como deber de también instruirlos en ésta ( en la Religión cristiana el bautismo). 4) El mantenimiento de esa comunidad mediante una formalidad pública reiterada que haga permanente la unión de estos miembros en un cuerpo ético y ciertamente según el princípio de la igualdad de sus derechos entre sí y de la participación en los frutos del bien moral ( la comunión)” (idem, p. 189).


O Cristianismo é a única religião revelada que pode ser reduzida e uma religião racional, sendo ao mesmo tempo natural e doutrinal. A fé natural deve ser subordinada à fé moral, pois só a fé moral é fim em si mesma. Se isto não ocorre, o culto será falso. A oração não salvará o homem, sendo apenas um meio de estimular a fé moral. Batismo, frequência à igreja, comunhão, nada disso constitui meio de alcançar a graça, cabendo apenas ao esforço próprio do homem o realizar o seu destino final. Como diria Jean-Paul Sartre , estamos sozinhos com nossa consciência e com o nosso destino na mão. Não existem eleitos e nem favoritos de Deus, estando todos na mesma condição de igualdade. Mesmo vivendo numa sociedade sob os mandamentos de Deus, o cumprimento do dever é um esforço pessoal.

Kant aponta três modos de fé ilusória que transgridem os limites da Razão. São a crença em milagres, a fé em mistérios e a crença de poder influir em Deus por meio da graça. Isto é, o homem pode até alcançar a graça de Deus, mas não influenciá-lo por meios de adulação ou suborno, pois só o comportamento moral agrada a Deus. Os meios de que se utilizam os incautos para supostamente influenciar Deus são, curiosamente, a oração, a frequência à igreja, a iniciação ( no caso do Cristianismo, o batismo) e a renovação (comunhão) do compromisso de fé. Ora, esses meios, como já se disse acima, devem ser apenas educativos para se alcançar a fé moral, jamais instrumentos para influenciar a vontade de Deus.

Confiar nesses artifícios para influenciar Deus pode dar a entender que o homem, sem esforço, só pela veneração, pode encontrar o seu caminho. Para Kant, “el justo camino no es ir del otorgamiento de gracia a la virtude, sino más bien de la virtude al otorgamiento de gracia” (idem, p. 196).

Cumprir cada um com o seu dever moral é estabelecer o Reino de Deus sobre a Terra. Esta é a finalidade última do homem, preconizada pela filosofia kantiana. A partir deste reino, o homem passa então para a esfera da imortalidade, da vida eterna.

Isto quer dizer que o tema central da filosofia kantiana é o homem, isto é, seu destino, sua finalidade, como fim-término da criação, feita pelo Autor moral do mundo. Enfim, o homem é um conhecer, um fazer e um desejar ( possuidor de vontade), com vista ao seu aperfeiçoamento moral aqui neste mundo e com o objetivo final de alcançar a imortalidade da alma num outro mundo, o mundo supra-sensível.

Com isto Kant julga haver respondido à terceira pergunta – Que me é lícito esperar? . E também à quarta pergunta – o que é o homem?

V - CONCLUSÃO



À guisa de conclusão, limitar-nos-emos a fazer as observações a seguir.

Uma dessas observações se refere à sua concepção da sensibilidade no campo teórico e o desprezo a ela no campo moral. No campo teórico, Kant, no nosso modo de pensar, parece cair no hilemorfismo , onde o sujeito entra com a forma e as sensações entram como matéria, na composição do conhecimento e da realidade fenomênica. Ora, as sensações não são apenas materiais externos a serem trabalhados pelo sujeito, mas também atividades internas, dinâmicas, fazendo parte da nossa própria práxis, da própria atividade do sujeito humano. Quer dizer, Kant, nesse aspecto, entra debaixo da crítica que Karl Marx faz a todo materialismo tradicional, pois não concebe a sensação como práxis. É o que Marx diz em suas teses sobre Feuerbach:

“O defeito principal de todo materialismo até agora – incluído o de Feuerbach – é que o objeto, a realidade, a sensibilidade, só é conhecida sob forma de objeto ou de intuição; mas não [ é concebida] como atividade humana sensível, [não é concebida como] práxis, [que] não [é] subjetiva. Por isso ocorre que o lado ativo foi desenvolvido pelo idealismo, em oposição ao materialismo, mas só de modo abstrato, pois o idealismo naturalmente não conhece a atividade sensível real, como tal. Feuerbach quer que haja distinção real entre os objetos sensíveis e inteligíveis; mas não concebe a atividade humana mesma como atividade objetiva. Por isso, na ‘Essência do Cristianismo’ só considera a atitude teórica como a autenticamente humana, enquanto que a práxis só é concebida e fixada em sua forma suja, judia, fenomenal. Por isso, não compreende o significado revolucionário da atividade prático-crítica” .


Não estamos aqui defendendo a práxis em si mesma como critério último da verdade, pois o exagero dela, sem a teoria, leva fatalmente ao irracionalismo. Estamos apenas ressaltando a posição de Marx, que a concebe como uma forma de atividade humana e não apenas como mera matéria caótica a ser concebida e ordenada por uma forma.

Quanto à parte moral, Kant é acusado de formalismo, de utopismo, de ascetismo, de pelagianismo, escapismo (apenas a consciência boa bastaria) e negativismo, e muitas outras coisas mais. Como não iremos tratar de todas essas críticas, reproduzimos aqui apenas algumas observações que Arch B. D. Alexander, M. A., D. D. faz em seu escrito sobre Kant, (traduzido por Maria Helena Senise e publicado pelas Edições de Ouro, Rio de Janeiro, 1968):

“Dando ênfase ao dever em oposição à inclinação, Kant se expôs à pecha de ascetismo e de negativismo que alguns de seus críticos lançaram sobre a sua teoria. A acusação é fundada. Ao mesmo tempo, cumpre ter em mente que o ascetismo e a autonegação são estágios necessários na vida moral tanto do indivíduo como da raça. Todo progresso espiritual consiste na subordinação do mais baixo ao mais alto. Mas o defeito da teoria ascética – um defeito do qual a doutrina kantiana não está inteiramente livre – consiste em tratar este aspecto da vida moral como definitivo. A auto-realização não pode consistir na simples resistência ao desejo. Pois isto seria colocar uma parte da natureza humana contra a outra; seria supor que os impulsos naturais não tem justificativa e somente existem para serem extintos. Tal teoria faria a virtude depender, para a sua própria existência, da resistência contínua. A vitória da virtude envolve a sua própria destruição” (A Filosofia Crítica de Kant, cap. III, p. 100).


Quanto à sua tentativa de conciliação entre necessidade e liberdade, diremos algumas palavras sobre o ponto de vista marxista acerca do tema, embora reconheçamos ser um ponto de vista restrito, referindo-se a uma corrente um tanto mecanicista do Marxismo, representado especialmente por George Plekhanov.

Plekhanov identifica liberdade com necessidade e diz que o homem é livre quando tem consciência da necessidade de seus atos. Um ato é necessário quando um homem não pode deixar de praticá-lo em determinadas circunstâncias dadas por sua própria constituição – a sua natureza (hereditariedade) e suas relações eco-sociais, seu mundo interno e externo. “Pois bem, acrescentai a isto que a natureza desse homem é tal que não pode evitar certas volições e tereis conciliado a noção de liberdade com a de necessidade. Sou livre quando posso agir como quiser. E minha livre ação é ao mesmo tempo necessária, porquanto minha vontade é determinada por minha organização e pelas circunstâncias dadas. A necessidade não exclui, pois, a liberdade (“História da História”, p. 14, Apostilha publicada (mimeografada) pela UECE em 1973, transcrita do livro Concepção Materialista da História de George Plekhanov, Editora Escriba, Rio de Janeiro, s/d.) .

Para esclarecer mais ainda essa concepção, citamos ainda essa passagem de Plekhanov:

‘... a necessidade se identifica em minha consciência com a liberdade, e a liberdade com a necessidade, e então não sou livre unicamente no sentido de que não posso romper esta identidade entre a liberdade e a necessidade; não posso opor uma à outra; não posso sentir-me travado pela necessidade. Mas esta falta de liberdade é ao mesmo tempo sua mais completa manifestação (op. cit., p. 4, O Papel do Indivíduo na História).


Essa identidade da liberdade com a necessidade mais nos parece uma tautologia do que uma explicação. Quer dizer, a Josefinha é livre para se casar com quem quiser, contanto que seja com o seu primo Juquinha. Ora, se essa necessidade é absoluta, não há liberdade e, na página seguinte de seu livro, Plekhanov ameniza um pouco essa necessidade, dizendo que o indivíduo pode contribuir com sua ação para a realização de um acontecimento, dizendo que se ele cruzar os braços, ficar passivo, o acontecimento não ocorrerá no momento, na data certa, ou não ocorrerá com plenitude ou pode até não ocorrer de jeito nenhum. Isso nos faz deduzir que ele entende por necessidade não uma necessidade absoluta, mas uma necessidade relativa, pois esta deixa um espaço para uma decisão alternativa. Suponhamos que alguém esteja no topo de um edifício e recebe por telefone a notícia que em breve o prédio será destruído por terroristas e que ele terá que descer imediatamente. Só terá comodamente dois caminhos para descer - o elevador e a escada. Terá que escolher necessariamente um ou outro, mas terá liberdade de opção e, escolhendo racionalmente, descerá pelo elevador. Suponhamos que o elevador esteja danificado e não possa mais funcionar. Mesmo assim, se não houver helicóptero, nem escada de bombeiro, guindaste, etc. – ainda terá duas opções – descer pela escada ou pular. Será obrigado a escolher – se não quiser fatalmente morrer no ataque terrorista, e se o fizer racionalmente, irá pela escada do prédio, pois pulando fatalmente morrerá no impacto contra o chão. Mas mesmo assim ele tem liberdade de escolha. Porém se a escada estiver sob incêndio? Só restarão as alternativas de pular e morrer achatado no chão, ou morrer no ataque terrorista. Uma terceira alternativa seria o suicídio. Praticamente, não terá liberdade alguma de escolha, pois não poderia escolher entre a vida e a morte, mas apenas sobre a maneira de morrer. Enfim, o homem só será livre enquanto houver a mínima alternativa de escolha de vida, de esperança. Ora, ter a liberdade de escolher necessariamente algo (a morte, no caso) não é ser livre, é mero jogo de palavras. Uma necessidade absoluta não oferece escolha alguma e identificar com ela a liberdade seria cair no fatalismo, na sina, no destino, no predestinismo, o que seria a completa anulação do homem. A liberdade não é só consciência (subjetiva) das coisas, pois se fosse assim um prisioneiro acorrentado seria livre, desde que tivesse consciência da necessidade de seu estado. Ora, além da consciência, o homem tem vontade e esta não seria vontade se não pudesse agir sobre as coisas do mundo, no sentido de mudá-las, transformá-las e adaptá-las às suas necessidades e seus fins. Poder-se-ia objetar que estou dando um exemplo apenas com relação a obstáculos externos. Ora, a questão de distinguir entre obstáculos externos ou internos em nada muda o teor do problema. O que existe efetivamente é um sujeito que tem consciência de obstáculos para sua ação, de modo que sabe que não pode agir a seu bel-prazer, com liberdade absoluta perante esses obstáculos. Mas sabe que se não puder vencer pelo menos parte desses obstáculos e não tiver alternativa de escolha, não pode ser considerado livre.

Adolfo Sanchez Vazquez expõe de maneira mais clara e mais amena essa teoria em seu livro sobre Ética (cap. V – Responsabilidade Moral, Determinismo e Liberdade, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1982). Diz que existem três posições fundamentais em relação ao problema da liberdade: o determinismo absoluto, o libertarismo, e uma forma de determinismo mitigado “que admite ou é compatível com certa liberdade” (op. cit., p. 102). O determinismo absoluto é logo rejeitado, por ser incompatível com qualquer tipo de ética. O libertarismo – onde situa Kant – também é rejeitado, sobrando apenas aquele determinismo moderado, que atribui a Marx e Engels. Mas de modo algum abre mão da causalidade como motivo ou fundamento das ações. “Chegamos à conclusão de que a liberdade de vontade, longe de excluir a causalidade – no sentido da ruptura da conexão causal ou de uma negação total desta (indeterminismo) – pressupõe inevitavelmente a necessidade causal” (p. 108). Coloca Kant no meio desse indeterminismo e diz que não pode aceitar a tentativa de Kant de conciliar as duas esferas - a da causalidade mecânica e a da liberdade do mundo inteligível.

“Mas não podemos aceitar uma falsa conciliação das duas, como a postulada por Kant ao situar ambas em dois mundos distintos: a necessidade no reino da natureza, da qual faz parte o homem empírico, e a liberdade no mundo do noumeno, ou reino inteligível, ideal, no qual não vigora a conexão causal e do qual faz parte o homem como ser moral em sentido próprio. Kant tenta, assim, conciliar a liberdade, entendida como autodeterminação do EU, ou ‘causalidade pela liberdade’, com a causalidade propriamente dita, que vigora na esfera da natureza. Mas esta divisão assenta sobre uma divisão da realidade em dois mundos, ou sobre a divisão do homem em duas partes: o empírico e o moral “(p. 109) – divisão esta que o autor não aceita.


E acrescenta que nem mesmo Nicolai Hartmann, com sua teleologia, resolve o problema, pois “esquecendo que os fins que o homem se propõe são também causados, estabelece-se um abismo intransponível entre a causalidade propriamente dita e a causalidade teleológica” (p. 109).

Por isso, Marx e Engels, aproveitando as teorias de Spinoza e Hegel sobre o assunto, aceitam uma teoria do determinismo não fatalista da liberdade. Arremata, então: “Marx e Engels aceitam as duas características antes assinaladas: a de Spinoza (liberdade como consciência da necessidade) e da de Hegel (sua historicidade). A liberdade é, por conseguinte, a consciência histórica da necessidade. Mas, para eles, a liberdade não se reduz a isto; ou seja, a um conhecimento da necessidade que deixa intacto o mundo sujeito a essa necessidade” (p. 111).

Quer dizer, o homem não se sujeita aos ditames da natureza nem à sujeição da escravidão social, sendo um agente, um militante, encarando o mundo não como um dado feito em definitivo, mas como uma tarefa a ser produzida e alcançada. A liberdade implica um poder sobre a natureza material e sobre sua própria natureza. “O desenvolvimento da liberdade está pois, ligado ao desenvolvimento do homem como ser prático, transformador ou criador, isto é, está vinculado ao processo de produção de um mundo humano ou humanizado, que transcende o mundo dado, natural, bem como ao processo de autoprodução do ser humano que constitui precisamente a sua história” (p. 111).

xxx—xxx

Lucien Goldmann, em seu livro Origem da Dialética – A Comunidade humana e o Universo em Kant (Conclusão, op. cit.) mostra a grande importância de Kant como um dos pioneiros a descobrir que o incondicionado, o absoluto, a totalidade , só pode ser realizado pela prática e que a comunidade humana perfeita, uma exigência da moral, mesmo sendo inalcançável neste mundo, nos obriga tragicamente a lutar por ela como uma exigência moral.

Segundo ele, para Kant o homem é um ser racional e como razão quer dizer universalidade e comunidade, ele é um ser social pelo menos em parte, e não um ser isolado ou mônada. O homem faz parte do todo maior, a comunidade que, por sua vez, faz parte do universo, que é “um conjunto de seres em comunidade comigo” (Kant, Antropologia, apud L. Goldmann, p. 9). Mas a comunidade e o universo são imperfeitos, em face das ações egoístas dos homens, em face de sua socialidade insociável, de sua heteronomia, exigindo-se por isso que ele lute por superar essas imperfeições, para alcançar a racionalidade, a autonomia, a liberdade – enfim, a totalidade. Esta só pode ser realizada pela prática. “Enquanto ser racional, o destino autêntico do homem é dirigir-se por todas as suas ações e com todas as suas forças para a realização de uma comunidade perfeita, o reino de Deus na terra, o soberano bem, a paz eterna, etc. E ele só o pode fazer se sua inteligência não o interditar de crer na realização dessa comunidade e o levar a esperá-la de maneira legítima” (p. 248).

Só uma comunidade superior levaria o homem a alcançar um conhecimento e ação qualitativamente superiores, a integração com a coisa em si, com a vontade sagrada, onde não haveria mais imperativo categórico, pois aí o conteúdo se integraria com a forma, o pensamento com a ação, a teoria com a prática. Seria a realização do soberano bem. Mas como isso não pode ser realizado na terra, o destino do homem é trágico. Como o homem deve tender para ele e não consegue, “a existência do homem é trágica” (p. 249). “Um trágico que, na filosofia de Kant, só conhece duas perspectivas, duas esperanças de ser ultrapassado: a fé racional e a esperança, ainda que insuficiente, no futuro da comunidade humana, a história” (p. 49).

Entretanto, apesar deste pessimismo, Lucien Goldmann diz que:

“Kant abriu o caminho para uma filosofia nova que, reunindo a idéia cristã da limitação do homem com a imanência dos pensadores da antiguidade e dos séculos XVII e XVIII, concebia o mundo inteligível, a totalidade, como uma tarefa humana, como objeto do destino autêntico do homem como produto da ação.
E, se os filósofos do primeiro grupo, partindo do indivíduo, tinham colocado no centro de suas concepções a teoria do conhecimento ( racionalista ou empirista) e a ética ( estóica e epicurista), se os pensadores cristãos, partindo da divindade, tinham encontrado na teologia o fundamento essencial de seus sistemas, era o caminho aberto por Kant que criava, pela primeira vez [?], a possibilidade de uma filosofia baseada na idéia da comunidade e da pessoa humana, quer dizer, numa filosofia da história” (p. 250).


E Goldmann termina seu livro condenando a onda do “retorno a Kant”, exortando-nos a olhar para frente:

“Nossos olhares não devem voltar para trás, para procurar um ‘retorno a Kant’, mas para a frente, na direção de uma comunidade humana melhor; e é assim que podemos ver a figura de Emmanuel Kant em sua verdadeira luz, em sua verdadeira importância, ainda vivo e real para o presente e para o futuro. Ele nos aparece então, como um dos grandes pensadores que deram os primeiros passos difíceis no meio das pedras e abriram o caminho no qual ainda estamos marchando” (p. 254).

Kant, quanto ao âmago de sua filosofia, parte de uma fundamentação subjetiva, de uma consciência abstrata, de modo que sua filosofia é considerada como pertencente ao solipismo metódico (Descartes, Hume, Berkeley, Locke, Fichte, etc.), que fundamenta as raízes do mundo na consciência, num Eu transcendental a priori. Ora, o homem vive num meio social e sua consciência é produto da existência, da vida social (o ser social determina a consciência, e não o contrário, diz Marx no “Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política”). E esta é mediada pela linguagem. Por isso, o a priori transcendental de Kant é transferido da consciência para a linguagem, que é de natureza comunitária e não produto de um sujeito isolado. É o que diz Karl-Otto Apel: “... À medida, porém, que se trata do sujeito transcendental de Kant, a função dele dilui-se (ou submerge) na função da linguagem como limite do mundo” (Transformação da Filosofia, “A comunidade de comunicação como pressuposto transcendental das ciências sociais”, vol. II, p. 270, Loyola, São Paulo, 2002).

Em Apel, o a priori se transforma num “a priori como comunidade de comunicação, como condição de possibilidade de toda argumentação e toda interpretação, comunidade que é intrinsecamente ética” (Malferindo Oliveira, Reviravolta Pragmático-Linguística na Filosofia Contemporânea, Parte IV, p. 409, Loyola, São Paulo, 2ª ed., 2001).

Por isso, a fundamentação da ética por Kant, sem argumentação, apenas como um Faktum da razão, não é aceita por Apel. A linguagem já implica a ética. Diz Apel: “Tenho em mente aí a tese de que o mundo vital [Lebenswelt] já se interpreta desde um início através da linguagem, e de que o a priori de um acordo mútuo [Verständigung] em linguagem corrente, no contexto do mundo vital, já é, ele mesmo, a condição de possibilidade e de validade intersubjetiva de toda formação teórica científica ou filosófica concebível, bem como da ‘reconstrução’ da linguagem”, etc.(op. cit., “O a priori da comunidade de comunicação e os fundamentos da ética”, p. 440). Portanto, nem a ética nem qualquer conhecimento podem existir de maneira neutra, sem pressupor a validação intersubjetiva das normas morais, sem pressupor a ética como condição de possibilidade .
Portanto, todo discurso racional, quer dizer, com sentido, pressupõe uma ética original, como uma espécie de contrato social primitivo da linguagem e que não pode haver qualquer espécie de comunicação e, portanto, de vida social sem a observância mútua dessas normas do contrato. E a linguagem realiza isso pela sua capacidade auto-reflexiva de argumentação com sentido. Isto é o que se chama de estabelecimento da comunicação humana baseada na teoria consensual da verdade, mediante a auto-reflexão da linguagem, defendia pelo filósofo Karl-Otto Apel .

Se formos continuar a expor as opiniões dos pósteros sobre o filósofo de Königsberg, não haverá espaço que comporte todas elas. Por isso, com essas palavras que dissemos sobre Apel, encerramos nossa exposição sobre a moral de Kant, esperando ter dado nossa pequena contribuição para divulgar o pensamento de Kant entre nós.


BIBLIOGRAFIA



(A maioria das obras indicadas nesta bibliografia foi doada pelo prof. Noé Martins de Sousa – juntamente com sua biblioteca pessoal – ao Centro de Humanidades da UECE, para servir de apoio ao Mestrado Acadêmico em Filosofia, devendo estar à disposição dos alunos.).




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Herrero, Francisco Javier – Religón e historia en Kant, Madrid-Espanha, Editorial Gredos, 1975 ( traduzido para o português por José A.. Ceschin, “Religião e história em Kant”, São Paulo, Edições Loyola, 1991).

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Hume, David – in “Os Pensadores”, São Paulo, Abril Cultural, 1980. Contém: Investigação sobre o entendimento humano; Ensaios morais, políticos e literários ( em 2003, saiu no Brasil uma tradução completa do Tratado da natureza humana, de Hume).

Kant /Lambert – Correspondência, Lisboa-Portugal, Editorial Presença, 1988.

Kant, I. - “Filosofía de la Historia”, Buenos Aires-Argentina, Editorial Nova, 1964 (este livro me foi presenteado pelo colega e amigo Oscar d’Alva e Sousa Filho, de quem fui aluno). Contém: - idea de una historia universal desde el punto de vista cosmopolita; Respuesta a la pregunta Que es la Ilustración [Aufklärung]?; Definición de la raça humana; Sobre el libro “Ideas para una filosofia de la historia de la humanidad” de J. G. Herder; Comienzo verosímil de la historia humana; Acerca del refrán: “Lo que es cierto en teoría, para nada sirve en la práctica; Acerca de la ralación entre la teoría y la práctica en la moral en general; Acerca de la relación entre la teoría y la práctica en el derecho internacional, consideradas desde el punto de vista filantrópico-universal, es decir, cosmopolita; Reiteración a la pregunta de si el género humano se halla en constante progreso hacia lo mejor.

Kant, I. - “Filosofía de la Historia”, México-México, Fondo de Cultura Económica, 1997 (este livro me foi emprestado pelo colega Flávio Telles Melo, pelo que agradeço. Os escritos que ele contém já estão relacionados na obra anterior, acima, mas este volume acrescenta mais um: ”El fin de todas las cosas” ).

Kant, I. - “O Pensamento Vivo de Kant”, São Paulo, Livraria Martins Editora S. A., 1952 (este livro me foi doado pelo colega Luciano Nunes de Miranda, em 1975, pelo que agradeço). Contém uma antologia de textos de Kant extraídos das obras:- Crítica da razão pura; Princípios fundamentais da metafísica da moral; Religião dentro dos limites da mera razão; Crítica da razão prática; Crítica do julgamento.

Kant, I. - “Textos Pré-Críticos”, Porto-Portugal, RÉS-EDITORA, 1983. Contém:- Nova explicação dos primeiros princípios do conhecimento metafísico ( conhecida por Nova Dilucidatio); Uso de metafísica unida à geometria em filosofia natural cuja espécime I contém a monadologia física; Investigação sobre a evidência dos princípios da teologia natural e da moral; Acerca da forma e dos princípios do mundo sensível e do mundo inteligível ( Dissertação de 70); Carta a Marcus Herz (21/02/1772).

Kant, I. - “Textos Seletos” ( edição bilingue, português e alemão), Rio de Janeiro, Vozes de Petrópolis, 1974. Contém: - Prefácio à primeira edição da Crítica da Razão Pura (1781); Prefácio à segunda edição da Crítica da Razão Pura (1787); Que significa orientar-se no pensamento?; Resposta à pergunta: que é Esclarecimento? [Aufklärung]; Sobre um suposto direito de mentir por amor à humanidade; Sobre a discordância entre a moral e a política, a propósito da paz perpétua; O fim de todas as coisas.

Kant, I. - A Metafísica dos costumes (trad. de Edson Bini), Bauru / São Paulo, EDIPRO, 2003.

Kant, I. - À paz perpétua (trad. de Marco A. Zingano), São Paulo, L&PM, 1989 (esta obra me foi cedida gentilmente pelo prof. Dr. Kleber Carneiro Amora, da UFC, pelo que agradeço).

Kant, I. - A Paz perpétua, São Paulo, Edições e Publicações Brasil, 1936 ( também publicado pelas Edições 70).

Kant, I. - Antropologia pragmatica, Roma/Bari-Itália, Editori Laterza, 1985.

Kant, I. - Crítica da razão prática, Lisboa-Portugal, Edições 70 (trad. de Artur Morão), 1986 ( reimpressa também em 1999).

Kant, I. - Crítica da razão prática, Rio de Janeiro, Edições de Ouro, s/d.

Kant, I. - Crítica da razão pura ( trad. bras. Alex Marins), São Paulo, Martin Claret, 2002.

Kant, I. - Crítica da razão pura ( trad. bras. de J. Rodrigues de Mereje, edição incompleta), Rio de Janeiro, Edições de Ouro [atualmente, Ediouro], 1966.

Kant, I. - Crítica da razão pura (trad. brasileira de Valério Rohden / Udo Baldur Moosburger), in “Os Pensadores”, São Paulo, Abril Cultural, 1987,1980, etc ( apareceram novas reimpressões com correções que aperfeiçoaram o texto. Utilizamos a edição da Nova Cultural, São Paulo, 2000).

Kant, I. - Crítica da razão pura (trad. portuguesa de Manuela Pinto dos Santos / Alexandre Fradique Morujão), Lisboa-Portugal, Fundação Calouste Gulbenkian, 1985.

Kant, I. - Crítica de la razón pura, ( 2 vols., trad. José del Perojo / José Rovira Armengol ), Buenos Aires-Argentina, Editorial Losada, 1º vol., 5ª ed. 1967, 2º vol., 2ª ed., 1965.

Kant, I. - Critique de la faculté de juger ( trad. de A. Philonenko), Paris-França, Librairie Philosophique J. Vrin, 1982.

Kant, I. - Critique de la raison pure ( 2 vols., trad. francesa de J. Barni), Paris-França, Flammarion, 1950.

Kant, I. - Da utilidade de uma nova crítica da razão pura, São Paulo, Hemus, 1975.

Kant, I. - Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos, São Paulo, Martin Claret, 2002. Contém, além da Fundamentação:- Que significa orientar-se no pensamento?; Resposta à pergunta: Que é “esclarecimento”?; Sobre um suposto direito de mentir por amor à humanidade; “Perfil biográfico” [de Kant].

Kant, I. - Fundamentação da metafísica dos costumes, (trad. Paulo Quintela), Lisboa-Portugal, Edições 70, 1986 (e 2001).

Kant, I. - Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita (edição bilingue, português e alemão), trazendo estudos sobre Kant de Ricardo R, Terra, Gérard Lebrun, e José Arthur Giannotti), São Paulo, Editora Brasiliense, 1986.

Kant, I. - in “Os Pensadores”, São Paulo, Abril Cultural, 1974. Este volume contém:- Crítica da razão pura ( incompleta); Prolegômenos; Primeira introdução à Crítica do Juízo; Analítica do belo (do parágrafo 43 ao 54); A Religião dentro dos limites da simples razão ( apenas a Primeira Parte).

Kant, I. - La religión dentro de los límites de la razón, Madrid-Espanha, Alianza Editorial, 1986.

Kant, I. - Lezione di etica, Roma/Bari-Itália, Editori Laterza, 1985.

Kant, I. - Lógica, (trad. brasileira de Guido Antônio de Almeida), Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, 1992 (este livro ainda traz em “Anexo” o texto de Kant “Notícia do prof. Immanuel Kant sobre a organização de suas preleções no semestre de inverno de 1765-1766” ).

Kant, I. - Métaphysique des moeurs, Deuxième partie, Introduction et traduction par A. Philonenko, Paris-França, J. Vrin, 1968.

Kant, I. - Métaphysoque des moeurs, Première partie, Doctrine du droit, Introduction et traduction par A. Philonenko, Paris-França, J. Vrin, 1971.

Kant, I. - Os progressos da metafísica, Lisboa-Portugal, Edições 70, 1986.

Kant, I. - Porque no es inutil una nueva crítica de la razón pura ( respuesta a Eberhard), Buenos Aires-Argentina, Aguilar, 7ª ed., 1981.

Kant, I. - Princípios metafísicos de la doctrina del derecho, México-México, Universidad Nacional Autónoma de México, 1978.
Kant, I. - Projet de paix perpétuelle, Esquisse de philosophie, traduction par J. Gibelin, Paris-França, J. Vrin, 1947 (esses três últimos textos em francês me foram cedidos pela nossa colega e minha ex-professora do Mestrado Acadêmico em Filosofia da UECE, Marly Carvalho Soares, pelo que agradeço).

Kant, I. - Prolégomènes a toute métaphysique future qui pourra se présenter comme science (trad. J. Gibelin), Paris-França, J. Vrin, 1963 ( este livro me foi emprestado pelo colega Paulo de Melo Jorge Filho [Petrola], de saudosa memória).

Kant, I. - Recherche sur l’évidence des principes de la théologie naturelle et de la morale / Annonce du programme des leçons de M. E. Kant durant le semestre d’hiver 1765-1766, Paris-França, J. Vrin, 1973.

Kant, I. - Transición de los princípios de la ciencia natural a la física [opus postmum - O. P. ]( trad. espanhola de Felix Duque, para a qual escreveu um “Estudio Introductório”, Madrid-Espanha, Editora Nacional, 1983). ( Esta obra me foi doada pelo colega Adauto Lopes da Silva Filho, pelo que agradeço.).

Kant, I.- Princípios metafísicos da ciência da natureza, Lisboa-Portugal / Rio de Janeiro-Brasil, Edições 70, 1990.

Kant, Immanuel – Werke in sechs Bänden, Herausgegeben von Wilhelm Weischedel, Druck und Einband: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt, Germany, 1966-1970 ( esta obra me foi emprestada pelo filósofo Manfredo Araújo de Oliveira, pelo que agradeço) [esta mesma obra foi republicada em 12 volumes sob o título de Immanuel Kant, pela Suhrkamp Taschenbuch Wissenschaft, Frankfurt am Main, 1977, existindo uma coleção da mesma na Biblioteca do Mestrado Acadêmico em Filosofia da UECE].

Kant. I. - Crítica da faculdade do juízo, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1993.

Kant. I. - Fundamentos da metafísica dos costumes, Rio de Janeiro, Edições de Ouro, 1967.

Kant. I. - Logica (a cura di Leonardo Amoroso), Roma/Bari-Itália, Editori Laterza, 1984.

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Lebrun, Gérard - Sobre Kant, São Paulo, Iluminuras/EDUSP, 1993.

Leibniz – in “Os Pensadores”, Abril Cultural, São Paulo, 1979. Contém os seguintes escritos de Leibniz: A monadologia; Discurso de metafísica; Da origem primeira das coisas; O que é a idéia; Correspondência com Clarke.

Leibniz - Novos ensaios sobre o entendimento humano, in “Os Pensadores” , Abril Cultural, São Paulo, 1980.

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Locke, J. - Carta sobre la tolerancia, Madrid-Espanha, Tecnos, 1991.

Locke, J. - Dois tratados sobre o governo, São Paulo, Martins Fontes, 1998 ( este livro me foi cedido pelo colega e amigo Oscar Guilherme Bizerril, pelo que agradeço).

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Locke, John – in “Os Pensadores”, Abril Cultural, São Paulo, 1978. Contém: Ensaio acerca do entendimento humano; Segundo tratado sobre o governo; Carta acerca da tolerância.

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Quincey, Thomas – Os últimos dias de Immaneul Kant, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1989.

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Russell, Bertrand – A filosofia de Leibniz, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1968.

Sá, Adísia – O fenômeno metafísico, Fortaleza, Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará, 1966(este livro me foi dado de presente pela Autora, que foi minha querida mestra e, depois, colega, na Universidade Estadual do Ceará).

Saldanha, Nelson – Kant e o criticismo ( no bicentenário da “Crítica da Razão Pura” ), Recife, Editora Massangana/Fundação Joaquim Nabuco, 1982.

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Schelling – Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo, in “Os Pensadores”, São Paulo, Abril Cultural, 1973.

Schopenhauer, Arthur – Crítica da filosofia kantiana, in “Os Pensadores”, São Paulo, Abril Cultural, 1980 (este texto, cujo título original é Kritik der kantischen Philosophie, foi extraído do livro Die Welt als Wille und Vorstellung [ “O Mundo como Vontade e Representação”], pp. 455-580, Atlas Verlag Köln, s/d).[Um exemplar deste livro, no original alemão, encontra-se na biblioteca da Casa de Cultura Germânica, da Universidade Federal do Ceará – UFC.].

Schultz, Uwe – Kant ( edição alemã), Rowohlt Taschenbuch Verlag GmbH, Reinbek bei Hamburg, 1965.

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Scruton, Roger – Kant, Lisboa-Portugal, Publicações Dom Quixote, 1983.

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Souza Filho, Oscar d’Alva e – Discurso em torno dos direitos: natural, positivo e alternativo ( edição tetralingue – português, espanhol, francês e inglês), Fortaleza, Editora ABC, 2000.

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Spinoza - Ética ( trad. Lívio Xavier), Rio de Janeiro, Edições de Ouro, 1965.

Spinoza – Oeuvres de Spinoza, traduites et annotées par Ch. Appuhn ( três Tomos), Paris-França, Librairie Garnier Frères, 1928-1929 ( obra pertencente à biblioteca pessoal do saudoso amigo Alcântara Nogueira).

Spinoza - Tratado da reforma da Inteligência (trad. Lívio Teixeira), São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1966.

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